DE MÃOS DADAS (J.G. de Araujo Jorge & Maria Helena) - 1962

























(DE MÃOS DADAS, J. G. de Araujo Jorge & Maria Helena, CASA EDITÔRA VECCHI, 
Rio de Janeiro, 1962, 178 páginas)



















I



Maria Helena e eu não nos conhecemos pessoalmente. Nunca nos apertamos as mãos. Entretanto, já nos encontramos através de nossas poesias; e de nossas poesias, agora, poderíamos dizer que andam

"de mãos dadas..."


Vive ela em Lisboa, à rua de Alcolena, ou então, no verão, perto do mar, em seu Chalet Altair, em Monte Estoril. Lembro-me do Estoril: ainda estudante, em caravana por Portugal, estive no seu Cassino e visitei a linda praia. Não é sem razão que o mar e as marés pulsam e se espraiam em símbolos e imagens, pela poesia de Maria Helena.


Vivo eu também perto do mar: em Copacabana, no Rio, a cidade que outro poeta, Olegário Mariano, chamou de maravilhosa, e que, queiram ou não os "brasilienses", (os de Brasília), continua sendo, de fato, a capital do Brasil.


Longe, portanto, nos encontramos um do outro. Acontece que um dia, meus versos, em meus livros, chegaram às praias do Estoril, como as vagas atlânticas. E recebeu-as a alma desta melodiosa poetisa portuguêsa, cujas ânsias, místicas ou profanas, dão à sua poesia uma grande beleza dramática.


Tudo poderia eu esperar de minha mensagem poética que tem chegado ao mais íntimo do coração e da alma brasileira. Não podia, entretanto, admitir que, atravessando o oceano, levada pelas "correntes" do mesmo idioma, fôsse dar a praias distantes, e, imprevistamente, multiplicar-se.




* * *


Êste livro é, digamos assim, um irmão mais novo de "Concêrto a 4 mãos". Vocês que já leram o "Concêrto" conhecem a história dessas duas poesias "de mãos dadas..."


* * *


Mas há os que não leram aquêle livro. Para êsses, faço um ligeiro resumo da história:

Um dia, no mês de outubro de 1955, recebi de Portugal, em meio à minha correspondência, um punhado de versos assinados por um pseudônimo: "Musa Triste". Eram versos feitos em resposta a outros meus, dos livros "Amo!" e "Festa de Imagens".

Tão logo terminara a leitura do primeiro poema e já me convencera de que me encontrava diante de uma grande poetisa. Em vão, entretanto, intentei identificá-la. Inexplicàvelmente, as antologias e seleções portuguêsas sofrem do mesmo mal das nossas: são feitas por espíritos sectários, que "selecionam" os amigos e transformam os livros em "cirandas" inócuas e acanhadas.

Maria Helena, tal como eu, é uma franco-atiradora. Não se amolda a rodinhas nem se presta a vassalagens diante de supostos críticos ou poetas enfeitados pelas "glórias" oficiais.

Não figurando seu nome na maioria das antologias (?) portuguêsas, não consegui identificar-lhe as feições literárias. Fernanda de Castro, Natércia Freire ou Virgínia Victorino têm estilos diversos, com características marcantes.
Maria Helena me levava a pensar em Florbela Espanca, mas esta grande poetisa desaparecera em 1936.
Tinha, pois, que conformar-me com o mistério. 

Mandei-lhe livros meus e recebi novos poemas respondendo também a versos de "A Sós..." E foi logo após remeter-lhe êsse livro, sugerindo-lhe a publicação conjunta dos nossos poemas, que ela afinal  revelou-se, mandando-me seis volumes de suas obras.
Eis —— em poucas palavras, —— a história de "Concêrto a 4 mãos" —— nosso primeiro livro, —— já em nova edição.



II


Recentemente voltei a enviar-lhe outro livro: "Espera..." E, mais uma surprêsa: chegaram-me, mancheias de  versos! Difícil, realmente, tentar explicar o que novamente senti ao ler êsses versos, esgalhados dos meus.
Não poderia imaginar que a minha poesia mais subjetiva pudesse dar motivos de inspiração a alguém que, tão distante, me conhece apenas nas palavras e no canto.

Meus desafetos literários hão de morder os lábios diante desta demonstração da receptividade da minha obra poética. O gesto de Maria Helena há de confundir-lhes os espíritos.

* * *


Que dizer dos versos de Maria Helena? Os leitores talvez, melhor que eu, encontrem uma explicação, se é que há necessidade de alguma. Somos duas personalidades inteiramente diversas: na vida, nas idéias, no plano subjetivo ou no terreno das ações. Pelo que conheço de sua alma e do seu espírito é uma pessoa profundamente religiosa.

Eu, sou um agnóstico, não digo um ateu, porque para mim negar e afirmar são uma mesma coisa. Quem nega, afirma em sentido contrário, e vice-versa. E Deus nunca chegou a ser, felizmente, (porque geralmente só nos lembramos dêle nas horas amargas e tristes) uma preocupação, mas um tema suscestível de debates mais ou menos filosóficos, ou de invocações poéticas.
Apenas, como é natural, respeito a fé e as crenças de quem quer que seja. E, sem dúvida nenhuma, no plano moral, posso considerar-me um cristão.

Sou um homem atirado à vida. O meu clima é o dos sentidos, da agitação. E êste é o mundo que justamente se reflete em minha poesia. Maria Helena dá-me a impressão  de um espírito ascético, enclausurado. Isto mesmo lhe digo nos dois sonetos que lhe fiz e que abrem êste volume. 
Para mim, a vida é a grande criadora, a matriz de tôda gestação. "Primeiro viver, depois filosofar", já ensinavam os velhos romanos.
Foi o que também já escrevi neste outro sonêto:




A GRANDE CRIADORA

Podes dar tratos à imaginação,
e conceberes o que se afigura
a ti mesmo, um absurdo, uma loucura,
coisa além dos sentidos, da razão;

podes imaginar uma aventura

a mais estranha, sem ter céu nem chão,
e o que de mais ousado na criatura
chegue às raias da tua concepção;

podes tudo pensar, tudo criares

em histórias e cantos singulares,
o que o sonho não pode a alma não deve,

—— e ainda assim, hás de ver que não és louco,

que tudo o que pensaste é nada e é pouco
ante o que a própria Vida vive e escreve!




Maria Helena, ao contrário, faz um reino fantástico de sua imaginação. E no travesti maravilhoso de suas imagens e das palavras, cria sêres que amam, vivem, sofrem, cantam, nos deleitam, e que nos sabem a figurações de lendas.

Faz mágica. A um só tempo lúcida e visionária, lúcida pelo que a vida já lhe deu, visionária pelo que dela lhe toma por não ter alcançado, em lances de sonho e de poesia, contróe seu mundo e sua festa, multiplicando-se em si própria, como uma personagem num espelho de mil faces.

Mas nossas poesias têm afinidades instrumentais. Seu verso e o meu traem uma formação clássica, nos ritmos, nas figuras de linguagem. Somos ambos românticos, a nosso próprio jeito. Minha poesia, mais sensorial; a sua, mais mística. Seu misticismo, entretanto, não esconde raízes, e anseia por terra; meu sensorialismo deixa entrever êxtases místicos, gestos vagos, desejos de infinito. 

Daí, na poesia de Maria Helena, certos arroubos, certos desabafos, certas confissões. Daí, na minha poesia, certo tom penitente, e essa constante do amor, —— pessoal e universal, —— que empresta aos meus versos às vêzes (não sei se há modéstia na afirmação) —— uma eloqüência apostolar ou um lirismo bíblico.





III


Que dizer dêstes versos de Maria Helena? 
Ela se situa num plano tôdo ideal para sentir e responder aos meus poemas. Deixo-me aqui a imaginar como repercutiriam seus versos na alma daquela que um dia foi o madeiro queimado pelo amor, foi a brasa de onde se elevaram as chamas dêsse "Espera..." brasa desfeita em cinzas, pelas cicunstâncias e pelo tempo...
Entretanto, Maria Helena recebeu como seus os poemas que escrevi. E, de certa forma, passam a ser seus, pelo que nêles encontrou, pelo que dêles tirou.

A verdade é que, com essa minha poesia, tão arrancada da vida, e com a sua, tão feita de imaginação, (realizada em função de uma singular transposição de valores íntimos) conseguimos um livro que dá a idéia de completo, pela sua dupla face, como uma medalha: verso e reverso.
Na carta em que me anuncia a feitura do livro, ela escreveu:


(para melhor ler as cartas de Maria Helena, dê Ctrl +, no teclado, uma ou mais  vezes)









* * *


Interessante como Maria Helena recebeu minha mensagem e a fêz "sua".
Como sua imaginação, soprada por meus versos, despertou íntimas vivências (quem sabe lá que emoções submersas?) e criou todo um novo mundo que se eleva como um castelo, de altos e dourados torreões, musicado de sinos e clarins. Um castelo encantado, levantado sôbre a argamassa da minha poesia...

Dei-lhe a palavra incolor de um libreto e ela fêz a "ópera", criou a música, o canto. E interpretando-a, como "prima-dona", encarnou a personagem com tal realismo e de tal forma, que, dentro de si mesma, já não saberá dizer onde começa a ficção e onde termina a realidade. Sentiu, sofreu, amou, viveu as emoções, as dores, os gozos, as lágrimas, a vida da personagem de meu pobre libreto.
Fêz-se o positivo, de um negativo irrevelado.

E realmente, me deixo admirado, de que alguém que não aquela que realmente inspirou êsse "Espera..." sem mais esperanças ou desespêros, possa ter incarnado seu papel, sem tê-lo vivido; sua vida, sem tê-la sentido, e responder por ela, com sua voz, sem tê-la conhecido.



* * *


Preferi chamar a êste "diálogo lírico" de poesias: "de mãos dadas"... O título sugerido por Maria Helena ficaria  longo demais, e confundiria o leitor desavisado. 
Que me perdoe se a escolha não lhe agradar.

Que pensarão os meus leitores dêsse passeio a dois, pelo reino da poesia e da imaginação?

Sei que hão de reconhecer na "música" e no canto de Maria Helena sôbre os versos do meu "libreto", uma "ópera" digna dos mestres compositores, cheia de belezas, fantasias e de ideações que trazem a marca das obras-primas.

Ela compôs em resposta ao meu poema "Lírica n°38", uma ária da qual tiro êstes dois versos:


"pois nos meus olhos foi que a claridade engravidou a noite".

Quando haveria eu de pensar que a vaga claridade de minha poesia engravidaria a noite de sua criação, e o resultado seria essa "via-láctea" de sonoras constelações?


J. G. 







(TRECHOS  DA CORRESPONDÊNCIA
que troquei com Maria Helena
a propósito dêste livro):




* * *

Ao receber os versos de Maria Helena, respondi-lhe aceitando a sugestão de publicarmos juntos um novo livro e sugeri o título: 'DE MÃOS DADAS...", em substituição a "Concerto a quatro mãos —— Andamento —— APPASSIONATO", lembrado por ela. Da carta que lhe escrevi, destaco o seguinte trecho:


"Você manteve nesse segundo volume a mesma fôrça de criação e a mesma beleza, características de sua poesia. Mas, realmente, deixa-me intrigado diante dêsse levantar vôo de seu espírito de pouso tão restrito. Não entendo, principalmente, como minha poesia lírica, —— essa de caráter tão subjetivo, —— poude lhe sugerir desdobramentos do seu eu e de sua sensibilidade, com tamanha espontaneidade e com essa tão forte expressão de "realismo".

Vale a pena transcrever o trecho da carta de Maria Helena em que ela explica êsse seu contra-canto com a minha poesia. Aceitando o título de "DE MÃOS DADAS..."  para êste livro, comenta adiante:

















* * *



Mas eu poderia dar, talvez, outra "explicação":

tenho em meu sítio, em Nova Friburgo, que eu batisei de "Cantão de Itoroquem", no sopé do maciço de montanhas da Caledônia, alguns pessegueiros de bons e gostosos frutos, iguais aos europeus. O sistema para cultivá-los é bem interessante: planta-se um pessegueiro bravo dêsses que dão pêssegos amargos que só servem para doces, —— e depois corta-se o pé, deixando-se apenas o tronco. Habilmente então enxertam-se ramos de pessegueiros de qualidade.
E o milagre da natureza: o pessegueiro bravo empresta sua haste para esteio e veículo do "bom" pessegueiro, e os ramos dêste se enchem de lindas e coloridas flores, de suculentos e sedosos frutos.
A poesia de Maria Helena belamente floresce e frutifica sôbre o "cavalo bravo" de minha poesia, pessegueiro agreste e amargo.

Ela própria diz num verso:



"Agora que eu sou flor e tu és haste." 

Bendito encontro êste que justifica o trabalho das raízes e dar uma razão à haste desgraciosa e rude.

J. G.
(Rio, 15/VII/61)






SONETOS PARA MARIA HELENA


I

Tu que por crenças vãs a Vida arrasas
e ante o espelho não queres ver quem és,
que imginas viver abrindo as asas
e te esqueces de andar com os próprios pés...

Que transformas o Sonho num revés

mesmo a acender o fogo em que te abrasas,
e te algemas as mãos, as mãos escravas,
como as dos prisioneiros das galés.

Tu que te enganas a falar de alturas

com as palavras mais belas e mais puras
e te imolas num gesto superior,

não percebes, nessa ânsia de suicida,

que nada há enfim mais alto do que a Vida
quando a erguemos nas mãos, ébrios de amor!



II


Que importa o sangue quente se a alma é fria?

Que importa haja no peito um coração,
se a vida sem amor, sem alegria
sabe a clausura triste, a solidão?

Que importa exista o sol se não há dia,

se a noite é cega, e é densa a escuridão?
Que importa ser raiz na terra fria
se o ramo oscila nú, sem um botão?

Que importa a inquietação, a ânsia contida

se não chegamos a colhêr a vida,
se a vivemos sem ser, no singular?

Que importa êsse alto sonho que se expande

se sem a Vida não há sonho grande
nem vale a pena se poder sonhar?




...De mãos dadas

Ando na vida de mãos dadas
com a tua lembrança...
—— E para que falar em esperança?

Não sei onde me leva esta ansiedade,

ou esta melancolia
cheia de humildade,
a me envover como uma cerração...

Para a loucura?

Para a felicidade?
Ou para êste morrer de cada dia
de quem vai tateando em noite escura...
... Cego do coração?

............................................


Que fazer? Ando na vida

como quem anda
—— perdido, andando em vão...

Ando na vida de mãos dadas

com a tua lembrança,
a fazer roda em silêncio... numa triste ciranda
sem canção...


              J. G.





... De mãos dadas...


Poeta sem esperança
De alma chagada em todos os desvãos,
Não andes de mãos dadas com a lembrança:
Aqui tens minhas mãos.

Deixa que uma vez mais te vença a fé
E encha de luz teus prantos derradeiros,
Que eu sou como o Sol é:
Rasgo nevoeiros.
Que te importa pisar um solo duro
E a pele corromper no mais agudo espinho?
Quando se põe os olhos no Futuro,
Qualquer sonho é caminho.
Não ignores o aceno que te chama
Das raízes da noite fugidia.
Cego do coração, floresce e ama
E acenderás o dia.
Se em tuas horas sós,
Apenas a mudez povoa a tua cela,
Não oiças o silêncio! Eu te dou minha voz:
Canta com ela!
Não penses nas saudades ou na dor
Que te limitam como uma prisão.
Se à tua vida falta um fim, de novo o amor
Lhe dará direção.

Não te feches em ti, de ti ausente,
E veste de calor o sangue nu.
Se tens o mundo aberto à tua frente,
Que mais precisas tu?
Quebra o cárcere estreito
Onde penas e raivas te consomem.
Sê o Homem humaníssimo e perfeito
Que apenas sente a dilatar-lhe o peito
A glória de ser Homem!

M.H.

        



Perdido

A verdade é que estou perdido, mesmo avançando;
estou bêbedo, sem beber,
vou cantando, sem música,
e olho tudo, sem ver.

Quando não há mais razão, como explicar a gente

... Ser?


        J. G.





Cântico da vitalidade plena


E além de tudo, Ser!
Sem pensar nos tormentos já vividos,
No sangue mudo na prisão das veias.
Com os braços erguidos
Ou de pulsos pesados de cadeias.
Ser com fé, com ardir, com permanência,
Numa vontade forte:
Para cá da verdade da existência
E para além da incógnita da Morte.
Ser no grito de maldição ou troça
E no silêncio confidente;
Na lágrima chorada que é só nossa
E no sorriso que é de toda a gente.

Além de tudo, Ser!
Sem nada que nos dome
Ou entre reis ou entre a plebe,
Com o pão que se come
E o vinho que se bebe.
Além de tudo, Ser!
Sem prenúncios de guerra ou mau agoiro,
Sem promessas banais e de sentidos falsos:
Com o Sol a vestir-nos a alma toda de oiro
E com os pés descalços.
Mas Ser! Além de tudo, Ser
Entre a cor espinhosa das roseiras
De qualquer roseiral;
Na fúria vertical das cachoeiras,
Nas lagoas de calma horizontal.
Ser na curva das asas dos pardais
E na traição de todos os venenos;
Ser com beijos a mais
Ou com beijos a menos.

Além de tudo, Ser!
Num uivo de terror, em qualquer carme,
Numa explosão de som, na terra realizada.
Ser no chicote que retalha a carne
E no sangue da carne retalhada.
Além de tudo, Ser!
Nas asas fora já do aconchego dos ninhos
Sem que receio algum possa detê-las;
No humilde pó de todos os caminhos,
Na altiva luz de todas as Estrêlas.
Além de tudo, Ser!
Ser nas águas do mar, na frescura do pomo,
Na manhã, no luar, no entardecer.
Ser por Ser! Sem fraquezas! Num assomo!
Ser não importa como,
Mas não deixar de Ser!!!

M. H.

     





Lírica  1

Tanta coisa me deste, e eu nada te pedi.
Qual de nós foi mais criança?

Poderias, pois, levar tudo, como fizeste...


Que direito teria eu para esperar que deixasses

alguma coisa, além da lembrança?


J. G. 





Lírica 1

Nesse fado que te cansa
E que Deus, do Céu, governa,
Deixei-te apenas lembrança,
Mas uma lembrança eterna.
Sabias os meus segredos
Que não tinham medo ou lei...
(Deixei-te a cor dos meus dedos
Numa rosa que te dei.)
Dos dois eram os cansaços
Da nossa amorosa lida...
(Deixei-te o som dos meus passos
Na estrada da tua vida.)

De encontro aos mesmos escolhos
Naufragou quanto sonhámos...
(Deixei-te a cor dos meus olhos
Na Lua que ambos olhámos.)
Fôsse Inferno ou Paraíso,
De ambos era a ânsia louca...
(Deixei o tom do meu riso
Na escala da tua bôca.)
Se desejos vãos os tinhas,
Também eu os tinha vãos...
(Deixei-te a fórma das minhas
Na fórma das tuas mãos...)
Quando estás ardente e langue,
De mim tens as horas cheias...
(Deixei-te o Sol do meu sangue
A aquecer as tuas veias.)
Se te sentes sem guarida,
Que esta idéia te conforte:
Deixei em ti minha vida
À espera da tua morte.

M. H.




Numa tarde como esta...


Ouço a chuva cair, e ninguém pode
saber, quanto a minha alma está sòzinha...

...........................................................................................


Lembro-me bem: chovia assim, chovia.

—— Num tarde como esta ela foi minha.
E enquanto não chegava, eu me dizia:
"—— Vai molhar-se todinha, o meu amor...
Tão frágil, que receio ao vento e à chuva,
antes dos beijos meus, se desintegre...
Onde estará neste momento ainda?
E enquanto não chegar, nada há de ver..."

E lá fora aumentando a chuva, e a chuva

me olhando, indiferente ao meu sofrer...

(Na penumbra do quarto, as coisas tôdas

eram sombras vazias, esperando.)

De repente: seus passos. Sim! Seus passos...

Adivinho-lhe os olhos: não mentira.
E quando a porta se fechou, pensei
por um momento ainda, que não era,
—— que eu é que louco imaginara tudo.

Encostou-se ao meu peito, e o coração,

vaga escondida, contra o meu batia.

Beijei-lhe a bôca... e então bebi-lhe as gotas

no pescoço, no rosto, nos cabelos...

"—— Criancice, meu amor!... —— molhada e fria

esta roupa há de até lhe fazer mal..."

Tão débil era o amor a aconchegar-se:

quase uma criança entre medrosa e alegre...

Ah, e a chuva que a molhou!... e eu fui cuidá-la...

e em pouco, éramos dois, ardendo em febre...

..........................................................................


Numa tarde como esta ela foi minha,

molhada e trêmula a colhi nos braços.

Hoje, chove... A minha alma está sòzinha...

E nunca mais hei de escutar seus passos...


J. G.





Tarde de chuva...

Naquele dia
De chuva que tombava sem ruído
Numa cadência desigual,
Quando cheguei, molhada e fria,
A tua voz cantou ao meu ouvido:
"Essa roupa há de até lhe fazer mal..."

E voltei outra vez e outra ainda,
De coração em festa.
E tu me vias linda, ai! cada vez mais linda
De uma beleza que o amor empresta.
E foi uma alegria consentida
De risadas sonoras
Acrescentando o rol.
E no relógio desta vida,
Caíam as horas
Como uma rosa que se esfolha ao Sol.
Porque os meus braços o pediam,
Isentos de receios ou cansaços,
Todos os dias os meus braços iam
Ao encontro amoroso dos teus braços.
Porém, naquela tarde junto ao lume,
Enquanto a chuva tinha um som exangue,
Tu fizeste uma cena de ciúme
E eu fiquei magoada até o sangue.

Porque partiste os doces laços
Cravando em mim o mais injusto espinho,
Nunca mais voltarás a ouvir meus passos
Cantando na certeza do caminho.
Se à tua foi minha alma companhia
E hoje a sentes viúva,
Nossos fados o Tempo modelou,
Pois se a chuva me trouxe um certo dia,
Foi essa mesma chuva
Que um certo dia me levou...

M. H. 



A diferença...

E afinal há uma sutil diferença
em nosso amor,
(ninguém o diz...)

Tu, queres ser feliz...
Eu, quero... te fazer feliz!

J. G.




A diferença...

Houve uma diferença em nosso amor!
Tão grande, que encurtou os nossos dias:
De tuas mãos, eu só recebi dor...
As minhas, só te deram alegrias.

Eu soube encher-te a alma de ternura;
Sem o buscar, fiz-te feliz na estrada...,
Enquanto que buscando-me ventura,
Tu soubeste fazer-me desgraçada.

M. H.




Tudo estranho...

Sim, quantas vêzes, por íntimo pudor,
por orgulho talvez, amor-próprio, vaidade,
escondemos no riso a nossa dor...

............................................


—— Coisa estranha, a felicidade!
—— Estranha coisa, o amor!

J. G.




Tudo estranho...

Achas estranho o amor desmesurado
Como é estranha a ventura sem tamanho...

...........................................

O que eu estranho é que nunca houvesses estranhado
Como na Vida tudo é estranho...

M. H.




Ateu

Ateu do amor
tu me converteste.

Agora
temo te ver,
porque não creio em milagres.

J. G.




Crente

Por que hás-de duvidar do meu amor tão certo
E até descrer de mim, que te oiço sem queixume,
Quando só porque vês um cravo entreaberto
Crês no milagre do perfume?

M. H.




Ilha de coral...

Por momentos me deste a sensação
de terra firme.
Cansado da inquietação do mar,
do balanço das ondas, dos horizontes unumeráveis,
eu me atirei a ti, como um náufrago,
e teu corpo não me soube apenas à praia providencial,


mas a um país de tranqüilidade
há tanto tempo esperado...

Ilusão. Eras uma pequena ilha, de morna areia
e traiçoeiros corais,
onde todo me feri na ânsia de salvar-me
e que logo desapareceria sob a maré cheia,
para nunca mais...

J. G.




Íntimo navio

És triste como eu sou, Irmão de horas aziagas,
Mas teu destino é quase brando
A par das minhas lágrimas sem fim:
Tu inda tens um mar onde naufragas,
Mas eu vou naufragando
Na solidão de mim...

M. H.





Culpado

Não consigo chegar. Estou sempre partindo.

Absolutamente incapaz para a felicidade,

vou inutilizando cada amor, tão de pronto
o sinto meu...

Não protesto, nem reclamo: é um simples reconhecimento

da verdade,
—— o culpado sou eu.


J. G.





Absolvição

A culpa de eu ser triste e de tu seres triste,
Temo-la nós, meu destronado rei:
Tu, porque há muito já partiste,
Eu, porque ainda não cheguei...

M. H.




Olho as mãos... e penso...

II

Estas mãos, que foram guias, cicerones
em viagens maravilhosas
ao redor de nós mesmos
mãos que inùtilmente carrego:

—— agora,

m/aos insônes
mãos nervosas,
são como guias de um cego.


J. G.





Olho as mãos... e penso...

Ah! minhas pobres mãos tristemente serenas
Sem Sol nem sangue nem brasas,
Que adormeceram com penas
Mas acordaram com asas.

Mãos sob o manto gelado de um lençol
Que as não deixava ser,
No medo horrível de que o Sol
As pudesse aquecer.
Mãos vazias, exangues, vacilantes,
Perdidas em qualquer estrada,
E apenas transbordantes
Da presença de nada.
Mãos sangrando dos golpes do açoite
De uma viuvez precoce.
Mãos possuídas pela noite
E à qual o dia foi roubar a posse.
Mãos sem pecado concebidas
E que se encheram de pecado
Batendo a todas as portas.
Mão-jardim abandonado,
Com mil rosas nascidas
De mil rosas já mortas.

Mãos que eram de barro frio, sem Primavera,
Isentas de contorno ou desenlace,
Que mesmo sem saber, estavam à espera
Do artista que as moldasse.
Mãos onde poisava o luar
Como poisando em matagais.
Mãos que eram tão rectas como o alto mar
E que já se arredondam em perfis marginais.
Mãos que o Destino maltratou
E de lágrimas vestiu.
Mãos que a dúvida fechou
E que a certeza abriu.
Mãos que não tinham Norte
E lentamente tombaram
A meio da subida.
Mãos que foram tocadas pela graça da Morte,
Mas que ressuscitaram
Para a graça da Vida!

M. H.







Testemunha

II

Ah, se êste mudo espelho
tivesse memória e voz...

O que não diria de nós?

J. G.




Testemunha

Pois que havia de dizer
Neste anseio que nos leva?
Que continuamos a ser
Os filhos de Adão e Eva...

M. H.




Quando chegares...

Não sei se voltarás,
seo que te espero.

Chegues quando chegares,
ainda estarei de pé, mesmo sem dia,
mesmo que seja noite, ainda estarei de pé.

A gente sempre fica acordado
nessa agonia,
à espera de um amor que acabou sendo fé...

............................................

Chegues quando chegares,
se houver tempo, colheremos ainda frutos, como ontem,
a sós;
se fôr tarde demais, nos deitamos à sombra
e perguntaremos por nós...

J. G.




Quando eu chegar...

Alegre como um colibri,
Quando eu chegar, depois
De muitos passos pouco resolutos
E de muitas estradas que lutei
Para vencê-las,
"—— Estamos aqui",
Responderei aos dois
—— Sendo de dia,
Colhendo frutos;
Sendo de noite,
Colhendo Estrelas.

M. H.





Ilha de cantos

Sei que não há solução, que pouco resta
do marinheiro que um dia se perdeu
em miragens e espantos...

Às vêzes já me pergunto: afinal, quem sou eu?
Só ficou a poesia, a transformar a solidão
em festa
—— e o coração:
ilha de cantos!

J. G.




Ilha sem cantos

Que diferentes são as naturezas!
Como são desiguais nossas gargantas:
Uma em notas sombrias,
Outra num tom melódico e sonoro.

É que tu, cheio de tristezas,
Cantas!
Eu, mesmo cheia de alegrias,
choro!

M. H.





Então, sim...

Não morri, porque sei que ela tarda.

Então, sim,
morrerei de amor.

J. G.




Agora, não...

Morrer? Diluir em noite o Sol nascente?
Tornar mais brancos do que os linhos
O azul da Primavera,
Quando temos a Vida à nossa frente
E todos os caminhos.
À nossa espera?
Morrer? Agora que voltou o alento?
Agora que acabou o drama
E se acabou a dissonância?
Morrer neste momento,
Quando o mundo nos chama
Com gritos de distância?
Agora, que já temos um farol?
Que espedaçamos as desilusões
Como nossas mãos miraculosas?

Quando o Sol é mais Sol
E todos os botões
Se tornam rosas?
Morrer, não tendo cárcere nem gritos?
Com mil horas serenas
Aquecidas à chama de mil brasas?
Morrer, olhando os Infinitos,
Quando todas as penas
Agora são asas?

Morrer, quando a alegria é que nos leva
Por estradas seguras
E canta em nossa voz?
Agora, que findou a treva
E todas as Estrelas das alturas
Se acendem para nós?
Agora, que eu sou flor e tu és haste
E em nós está presente
O amor e sua lei?
Quando tu finalmente me encontraste
E quando finalmente
Eu te encontrei?
Não desprezes as vozes que nos chamam,
E seremos depois
Uma certeza toda em flor.
Deixa morrer aqueles que não amam,
Que até o fim dos séculos, nós dois
Viveremos de amor.

M. H.






Distraído?

Levo sempre êsse ar de quem vai conversando
com alguém...

Entretanto
sigo sòzinho
e não vejo ninguém...

Tão fácil o mistério:
tu me acompanhas por tôda parte,
mas eu apenas sei disro...

J. G.




Motivo

Que seja noite ou madrugada,
Quando percorres o caminho
Em qualquer direção,
Como não hão-de os mais ver-te sòzinho,
Se tu me levas tão fechada
Dentro do coração!

M. H.



Lírica n° 21

II

(Em vão tento gritar ao sofrimento
que me suplicia: basta!)
—— Até hoje me pergunto a razão por que tu, que eras a crente humilde e fiel,
de repente te tornaste a iconoclasta?

J. G.




Lírica 21

Se fui humilde como a cerração,
Sou hoje altiva como um Sol de Julho,
Pois para a minha humana condição,
Nada há que me dê maior orgulho
Do que atirar um deus ao chão.

M. H.





Era eu

Dei asas aos momentos que colhemos,
ouvi músic nas palavras que trocamos,
eu sempre é que imaginei tudo o que aconteceu...

Não fôste tu que fôste minha,
eu só é que fui teu.

J. G.




Era eu

Em momentos de risos ou de abrolhos,
Todos os dias, nestes ou naqueles,
Que a hora fosse feia ou fosse linda,
Se não te dei meus olhos,
Eu te dei toda a luz que havia neles
—— Que é mais ainda.

Quando tu me prendias pela haste

Num movimento agreste
E humanamente louco,
Se nunca me beijaste,
Dei-te o sonho do beijo que não deste,
E não dei pouco.
Se em minutos convulsos, quase vãos,
—— Mas que a saudade touca ——
Tua boca beijava as minhas mãos,
As minhas mãos beijaram tua boca.
Na fogueira que de ambos se extravasa
Em rajadas de cor,
Tu sempre foste a brasa,
Mas eu era o calor.
Se voavamos os dois, pelas distancias nuas,
Num jeito que inda agora eu abençoo
E na luz moribunda das tardinhas,
Talvez as asas fossem tuas,
Mas era meu o ímpeto do voo
E as penas eram minhas.

Inda que fosse Inverno,

Nesse jardim de amor
De lírico matiz,
Eu era o aroma eterno
Da flor
Da qual tu eras a raiz.
Pensa como me doi a tua aleivosia
Que apenas se resume
Ao fel que no teu peito se insinua:
Se te dei tudo aquilo que em mim havia
De luz, de sonho, de alma e de perfume,
Como é que não fui tua?

M. H.





Lírica n° 30

Em vão tento vingar em outras
o amor perdido.

Só consigo ir multiplicando
a tua falta.

J. G.




Lírica 30

Numa insistência hostil, quase feroz,
Inda que muito lutes,
Tu ficarás a ouvir a minha voz
Em qualquer voz que escutes.

Entre desejos e atropelos,

Sem convicção nem paz,
Ai!, sempre hás-de encontrar os meus cabelos
Nos cabelos que em vão desmancharás.
Sempre serei contigo em toda a parte,
Em plenitude, como as marés-cheias:
Eu, a vibrar, humana, em tua arte;
Eu, a correr-te, líquida, nas veias.
De pé, concreta, para além de mim,
Numa presença sem abdicações:
Eu, que fui teu princípio e sou teu fim;
Eu, a abrir rosas no jardim
Das tuas sensações.
Eu, no jeito fugaz da tua mão;
Eu, tirando-te os cravos e os espinhos;
Eu, a dar direção
Ao teu caminho sem caminhos.
Sim!, eu, que ainda vejo
Que em mim tens uma crença que não cansa
E que ela vai destruindo o teu desejo
De um inútil desejo de vingança.

Muito embora o teu último comando

Que hora após hora mais se exalta,
Tu só consegues ir multiplicando
A minha falta.
Tu podes bem viver cem e cem bodas
Escaldantes de Sol ou frias de luar.
Venham estas e aquelas, venham todas, nelas,
Que só a mim hás-de encontrar.
Se Deus mandou que eu fosse o teu amor,
Desfaz o teu desejo em fumo
E pára esse combate sem parceiro,
Pois que nem tu nem eu seja lá quem for
Pode mudar o rumo
Ao rumo que tem Deus por timoneiro.

M. H.





Declaração de amor

Eu podia morrer
todos os dias em que não te vejo.

J. G.




Declaração sem amor

Morrias por a não ver,
Se andava de ti perdida...
Só eu não posso morrer,
Porque nem chego a ter vida!

M. H.





Lírica n° 36

Tão grande êste amor, entretanto, tão frágil.
Um tênue sopro de vento o derrubou...
E eis-nos infelizes...

Tão depressa cresceu, que não teve tempo sequer
de criar raízes...

J. G.




Lírica 36

Deixa que hoje sejamos infelizes!
Que já não seja meu senhor
Nem eu a tua escrava...
Em negócios de amor,
Para quê, as raízes,
Se o perfume chegava?

M. H.





A pior solidão

Pior do que a solidão pura e simples,
a solidão dos ascetas
ou dos insanos,

(a mansa solidão, tôrre de êxtase e prece
—— ou a áspera solidão que aterra e apavora,)

é esta povoada pelo fantasma de um amor
que havemos de carregar pelos anos afora...

J. G.




A pior solidão

Ah! quem me dera a mim teu sofrimento,
Essa dor que nem chega mesmo a dor,
Essa agonia que é tão pouco uma agonia
—— Que a pior solidão é caminhar no Tempo
Sem que o fantasma de qualquer amor
Nos faça companhia...

M. H.







Lírica n° 38

Que voltes antes do anoitecer...
Antes que s sombras desçam irremediàvelmente
sôbre o coração.
Que eu ainda te possa ver refletida em meus olhos,
e aonde reconheça as pegadas de antes
indeléveis, no chão.

J. G.




Lírica 38

Não sejas tonto, Amor, não sejas tonto!
Que importa a noite realizada,
Se quando vou ao teu encontro
Meus passos iluminam toda a estrada!

Que importa a treva sôbre nós suspensa

E sobre o dia que morreu...
Mesmo na escuridão mais densa,
O teu sangue não grita que sou eu?
Por que me pedes coisas vãs
E a escuridão te dói feito um açoite,
Quando a minha presença abre manhãs
No coração da mais fechada noite!
Por que temes o escuro e os pesadelos
E ficas anelante,
Se quando me desprendes os cabelos
Cem mil lumes se ateiam nesse instante?
Deixa que a negridão te abrace
E em volta rujam as procelas,
Que a Lua se estagnou em minha face
E em meus dedos cintilam dez estrelas.

Deixa que a treva seja uma verdade

Que na terra e no mar viva e se acoite,
Pois nos meus olhos foi que a claridade
Engravidou a noite.
Mortos embora os últimos luzeiros,
Ainda que no Céu não haja um só farol,
Entre penumbras e nevoeiros
Sempre os meus beijos saberão a Sol.
Que a hora seja negra e malfazeja
E se levante contra nós, irada...
No meu corpo, por mais noite que seja,
Qualquer coisa haverá de madrugada.
Depõe o mêdo, o anseio e a cruz,
E crê no que há já muito aconteceu:
Quando Deus ordenou que se fizesse a luz,
Nesse momento nasci eu.


M. H.





Conquista

Debruçado sôbre teus olhos, ainda ofegante
de escalar alturas
e prêso ainda aos teus cabelos para não cair,
eu me punha a falar como sonâmbulo
num deslumbramento de vertigem...

E então tu me apertavas contra o seio,
como se eu acabasse de ser salvo
em tua vida,
e me revelavas que aquelas palavras que eu dizia
sem nexo, como um tonto,
não eram palavras,
eram poesia...

J. G.




Conquista

Naquele instante de fugaz magia,
Sem dimensão nem lei,
Era poesia, sim! era poesia
Quando com minha vida eu te salvei.

Se a noite longa nos Espaços nus
Derramava luar em cada alfombra,
Era poesia a cantar luz
No silêncio da sombra.
Quando o teu corpo ousado
De cansaços e febre se morria,
Era poesia o cimo conquistado
E a queda vertical, era poesia.
E não havia mágoa nem abrolhos,
E só havia rimas e doçuras,
Quando te debruçavas nos meus olhos
Inda ofegante de escalar alturas.
A Vida era a promessa realizada;
A terra, um Céu em nós imerso...
Se até mesmo a vertigem deslumbrada
Tinha o sabor de um verso...

Era poesia que depois se erguia
Dos nossos dedos presos e revoltos,
Como existia
Uma imensa poesia
Nos meus cabelos soltos.
Na noite sempre mais escrava
Da rainha-manhã suavemente bela,
Era poesia o Sol que despertava
E batia à janela.
No mais profundo enleio
Ante o fulgor do novo dia,
Eu te apertava contra o seio
Num gesto de poesia.
Era poesia o amor na minha alma vencida;
Era poesia o teu abraço forte;
Era poesia a luz que a escuridão vencia.
Nós éramos poesia, era poesia a Vida
E até a própria Morte, até a própria Morte,
Era poesia!

M. H.




Lírica n° 48

Dou a impressão, como tôda gente,
de que estou me dirigindo para algum lugar.

Entretanto,
onde quer que me encontre,
meu destino é você.

J. G.




Lírica 48

Mesmo com temporal, a arder em pressa,
Eu acancei de encontro ao redemoinho,
Porque havia um aceno de promessa
Na curva do caminho...
Apesar das folhagens que, de rastros,
O vento agonizava nas ladeiras,
Eu caminhava erecta como os mastros
Onde riem bandeiras.
Em derredor, a chuva era cerrada;
No entanto, sem notar a dissonância,
Os meus passos vestiam a calçada
Ébrios de apelos e distância...
Nesses momentos sem bonança,
Era tão grande a luz que do sangue me vinha,
Que o poder criador de uma esperança
Abria Sol na hora que o não tinha.
Tudo cantava e me abraçava o ser
E sabia a Futuro —— por meu mal!
As próprias ondas inda por nascer
Tinham um não sei quê de litoral.
O Céu era mais Céu, o mundo ria,
Ungidos por meus dedos imortais.
Até nas rosas presas de invernia
Eu via liberdades estivais.

Na minha alma de escrava
Vibrava um som cantante na hora certa...
Era a lonjura que chamava
Com voz de estrada aberta!
Mas eis que a minha vida já se turva
E anoiteceu o dia que me enleia,
Que eu só achei, depois de ultrapassada a curva,
A presença desértica da areia...
Mantido o apelo que por mim gritava!
Tornadas choro, as pérolas de Ofir,
Porque a voz que eu ouvia não passava
Do desejo que eu tinha de a ouvir.
Agora, já sem fé, tardam-me os passos,
Pois apesar dos meus anseios vãos,
Não há braços que aguardem os meus braços
Nem mãos erguidas para as minhas mãos.
De tanto sonho bom, de tanta Estrela acesa
e da promessa que do longe vinha,
Ai! só me resta a trágica certeza 
De caminhar sòzinha.
Assim, sem crença já, já seca a fonte,
Isenta de chamadas e de Além,
Aqui ou acolá, onde quer que me encontre,
Meu destino é ninguém.

M. H.




Lírica n° 56

 Se quisesses voltar, não te receberia...

E por estranho que pareça, não te receberia
porque te quero ainda...

J. G.



Lírica 56

Eu sei que o teu amor o Amor o fez eterno
E o encheu de valia;
Sei que a Vida sem mim é um Inferno
Onde ardes noite e dia.

Sei que quando olhas para o Céu, de rastros,
Ferido em humaníssimos escolhos,
Tu não encontras o fulgor dos Astros,
Mas a luz dos meus olhos.
Sei que seguindo a intérmina viagem,
Os teus passos anseiam os meus passos
Como sei bem que olhando os braços da folhagem,
Te crucifica a ausência dos meus braços.
Sei que escutando as notas impolutas
De uma fonte chorando as suas mágoas,
É minha voz que escutas
Na vibração das águas.
Se vês o mar dançando em verdes rondas
De perfis brancos,
Sei que adivinhas no mover das ondas
O flexível recorte dos meus flancos.

Sei que te envolves nos piores combates,
Numa batalha louca,
Porque encontras nas rosas escarlates
O perfume sensual da minha boca.
Sei que os teus dias são revoltos,
Escabujando mil paixões,
E sei que vês os meus cabelos soltos
Nas cabeleiras soltas dos chorões.
Sei que sucumbes de saudade e dor;
Conheço a palidez da tua face,
A tua alma chagada de agonias.
Sei que tens medo do teu próprio amor,
E só por isso, só por isso, se eu voltasse
Não me receberias.

M. H.




Lírica n° 58

Se te encontrasse...

Nem mesmo quero pensar
no que sentirei, quando voltar a ver-te...

Morrerei, ou apenas tu terás morrido?

J. G.




Lírica 58

Viva! Bem viva tu me encontrarás,
Coroada de loiros ou de espinhos;
Nas horas boas e nas horas más,
Nas alturas dos Céus, nas pedras dos caminhos.

Viva, no derramado leite do luar
Rasgando sombras a teus pés;
Viva, na dimensão movediça do mar,
No fluxo e no refluxo das marés.
Viva no que já foi, no que há-de vir
Na mais humana das estradas;
Viva, nas rosas por abrir
E até nas rosas desfolhadas.
Viva, no fundo de qualquer passagem
De variadíssimos matizes:
Nas mãos erguidas da folhagem
E na fundura das raízes.
Viva, no solo em combustão
Pelo arado fendido,
E no sabor do pão
Que inda não foi colhido.
Viva, na cor puríssima dos linhos
E no vermelho de expressão devassa;
Viva, na fonte à beira dos caminhos
E na secura de quem passa.

Sim! Viva em todas as penugens;
Nas asas dos pardais ou das abelhas;
No algodão das nuvens
E na lã das ovelhas.
Viva, nos séculos futuros;
Viva, no tempo já passado;
Viva, nos olhos cândidos dos puros,
Viva, nos olhos dos culpados.
Viva, na cruz de um temporal medonho
E nos oiros de um Sol contente e farto;
Viva, na oculta luz de cada sonho
E nas dores maternais de cada parto.

Viva, sim!, sem promessa ou evasiva,
Que os dias que hão-de vir, são todos meus.
Viva da Vida em minhas mãos cativa,
Instante a instante cada vez mais viva,
No mar, na terra, em mim, em ti, em Deus!

M. H.




Amor fora do tempo

O tempo —— esponja e inverno,
tédio e rotina,
epitáfio e adeus,
irremediável partida sem partidas,
destilação de ausência ——

para nós, é teia e amarra,
—— fusão.

O tempo é que se ausenta
e à margem dêle, estamos eternos,
dois a viverem
num coração

J. G.




Amor dentro do tempo

Que importam horas ou momentos?
A ti que importa o Tempo e a mim que importa,
Se hoje somos os líricos rebentos
De uma roseira morta?!

Se tanto nos queremos,
Se eu em ti moro e em mim tu moras,
Vai para além das horas que vivemos
O nosso amor sem horas.
Que faz que o mundo tenha muitas rotas,
Quando o caminho é um, longe de quaisquer vistas?
Se mudámos a mais humana das derrotas
Na mais divina das conquistas?
Se é certo que a alegria nos sobeja
E espedaçámos a neblina
E nos teus olhos tens os meus,
Deixa que o Tempo seja
Tédio e rotina,
Epitáfio e adeus.

De olhos enxutos,
Vivendo cada qual a sua arte
Na fé imensa com que nos amamos,
Pela estrada complexa dos minutos,
A Vida parte,
Mas nós ficamos.
Ficamos em certeza e valimento
Neste esplendor de Sol que nos invade.
Ficamos a jurar a cada momento
Que o nosso amor, no coração do Tempo,
Fica a pulsar Eternidade.

M. H.



Lírica n°  61

Parte,
Abandona-me depressa.

E se chegares a ser saudade,
eu talvez perceba, embora tarde,
que também fôste amor.

J. G.



Lírica 61

Se já estás farto,
Se não passo de "agora" sem promessa,
Parto,
Mas sem rancor nem pressa.

Parto para teu mal e teu castigo,
Com minhas mãos leais
E a imensa verdade do meu ser.
Parto, mas levarei comigo
A certeza do dia que jamais
Para ti há-de amanhecer.
Parto, escutando já o teu queixume
De rastos a meus pés,
Porque sem mim
Nõ haverá perfume em teu jardim
Nem as Estrelas terão lume
Nem as ondas, marés.
Se o teu amor já me não touca
E me expulsou do Paraíso,
Parto, mas levo em minha boca
A sonora presença do teu riso.

Parto, mas tua vida há-de ser sempre incalma
Do desespero em cruz que de ti se avizinha;
Parto, mas deixo impresso na tua alma
O desenho da minha.
Na direção do Sol e do luar,
Já toda a luz em mim presente,
Parto sem pressa nem rancor,
Para quando a saudade te matar,
Possas então saber, nìtidamente,
Até que ponto eu fui amor.

M. H.




Intervalo

Desconfio desta paz,
pressinto que estás perto.

Tenho a nítida impressão de que me encontro
num intervalo de concêrto.

Se voltares com teu amor,
—— inclusa sinfonia ——
como há de ser o "final"?

—— Um "alegro con fuocco",
um suave "adágio"?
Ou um "réquiem", com presságio
de um funeral?

J. G.




Concerto

Sim, grande Amor: quando eu chegar, em qualquer dia,
Com os meus braços em humano excesso,
Na mais estranha e louca sinfonia,
Os "metais" gritarão toda a alegria
Do meu regresso.

E as asas voarão pelos Espaços
Libertas já do ergástulo dos ninhos.
E venceremos zangas e embaraços
E o ritmo voltará aos nossos passos
Na escala dos caminhos.
Sim, grande Amor! os dois temos de cor
As claves, os bemóis, o contraponto...
E enquanto nos amamos, em redor
As "cordas" tocarão em tom maior
Os acordes sensuais do nosso encontro.
Envoltos já em musicais fragrâncias,
Pedindo à Vida o que ela tem de bom,
Chegada das mais íntimas distâncias,
A harmonia será sem dissonâncias
E sem  mudar de tom.

E numa pausa de um fulgor preciso
—— Sem acidentes maus ou atropelos —— 
Vivendo em pleno Paraíso,
Tu acharás timbales no meu riso
E verás cordas de harpas em meus cabelos,
Ao compasso do nosso coração
Todo êle aberto em flor, como os jardins,
Nosso beijo será uma canção
—— Longo, como uma nota em suspensão,
Vermelho, como a alma dos clarins.
Nossas horas sòzinhas
Hão-de fugir ao desbarato,
Quando —— viris como as gavinhas —— 
As tuas mãos prenderem bem as minhas
Num andamento "appassionato".
Sim, grande Amor! Meus dedos nus
Hão-de vencer as noites e abatê-las,
Quando, depostas a treva e a cruz,
O meu olhar cantar em síncopes de luz
A eterna melodia das Estrelas.

E o "final", como um canto de magia,
Seremos nós, das folhas à raiz.
E será tão perfeita a sinfonia,
Que o próprio Deus que fez a noite e o dia,
Dos Céus distantes, há-de gritar: "Bis!"

M. H.



Poema cinzento

Eu hoje estou cinzento...

Êste dia de chuva está da côr
do meu pensamento,
solidário com essa tristeza,
no coração
como profunda raiz...

E só por isso —— com certeza —— 
não me sinto tão só,
tão infeliz...

Me sinto como êste dia de chuva
que com seus olhos molhados
vem me olhar...

Êste dia de chuva está chorando,
no céu,
ns coisas,
no ar...
E porque choram árvores, vidraças, fios,
tudo...

Já não preciso chorar...

J. G.





Poema azul

Eu hoje estou azul! Nas minhas mãos nervosas
Os dedos são azuis, longos e delicados.
O perfume é azul nas pétalas das rosas
Como o sumo é azul nos frutos sazonados.

Azul sem dimensão, do polo Norte ao Sul,
Cai nas águas do mar, nas distâncias sem fim,
E eu toda me deslumbro olhando o intenso azul
—— Que na curva do Céu, nunca houve um azul assim.
O mundo, em derredor, em doida convulsão,
Lateja o mesmo tom em tom mais destemido.
Até a própria noite ainda em formação
Tem um nítido gosto a azul inconcebido.
Do mais sombrio vale à serra mais erguida,
Alagando extensões e searas e pauis,
A estrebuchar de cor, é azulada a Vida,
Porque o Tempo, de azul, faz as horas azuis.
O azul impõe-se, alastra, exorbita-se, é rei:
Transborda cada vaga, inunda cada palma...
De tudo ser azul (tão azul!) eu nem sei
Se o meu corpo é azul ou se é azul minha alma.

Bem no fundo de mim, num azul em demência
Que se alteia em cachões hora a hora mais loucos,
Esta saudade enorme e que é negra de ausência,
Dentro do coração vai azulando aos poucos.
Porque a cor é mais cor e subjuga de excesso,
Há pedaços de Céu desfolhados nos charcos
E no cais pedra-azul, quando a hora é regresso,
Tem um quê de azulino a chegada dos barcos.
Azul pelos desvãos, em todas as alturas...
Não há sítio nenhum onde se não concentre.
De tudo ser azul, até as mães futuras
Sentem gestos azuis a germinar no ventre.
Vão-se tornando azuis as verdades e os sonhos
Sem pedir a ninguém licença nem conselho...
No corpo do pomar, a carne dos medronhos
Tem um sabor azul que se tornou vermelho.
Azul que se distende ao longo do jardim;
Que vive na raiz e em cor se realizou.

Um azul tão azul, que nunca terá fim,
Como, de tão azul, nunca principiou.
Azul do abismo fundo à cor dos Infinitos
Sem o deter ninguém, sem nada que o anule.
Azul os mundos e eu e os santos e os malditos,
Azul sempre maior, em turbilhões, aos gritos,
Azul o próprio Deus que fez o azul, azul.

M. H.  



Reencontro com a bonança...

Ao fim de tudo, esta sensação de quem chega a algum lugar
depois de penosos descaminhos,
e desfaz-se de todo o supérfluo, e se sente leve
como se estivesse sem corpo.

Esta solidão é boa, como uma aragem fresca numa fronte 
[febril,
e estende sôbre mim suas ramagens
como pejada árvore de sombras
em que todo me abrigo.

Bom é afinal estar deitado, e deitado sòzinho,
com as nuvens distantes, no olhar
ou as estrêlas trêmulas e entorpecentes.

E chego a me perguntar se não valerá mais
esta bonança em que todo me reconstruo,
em que volto a tantas belezas desprezadas: 
—— as outras mulheres, as noites dormidas,
as simples manhãs de sol, sem madrugadas?

—— se não valerá mais esta inefável paz onterior.
A alma assim como um pátio de mosteiro,
com rumores castos de água, em sussurros de confessionário,
—— que aquelas angústias de temporal desarvorando noites e
    [dias
e aquêle louco amor me consumindo inteiro,
—— amor incendiário?

Ainda bem que o destino faz às vêzes por nós
pausas imprevistas
como que nos obrigando
a conter o coração,
para não nos deixar morrer de amor, como cigarras
atordoadas de canto
explodindo em canção...

J. G.




Reeencontro com a luta...

Ao fim de tudo, a Vida erguida em maré-cheia,
Sangue em rebentação, carne gostosa a sal.
Um tumulto de mar dentro de cada veia
E no corpo estendido, um quê de litoral.

Ao fim de tudo, a Vida em bárbaros matizes
De um carmesin audaz, sensual e todo em flor.
A Vida, a latejar no ritmo das raízes.
Em ímpetos de forma e dádivas de cor.
Ao fim de tudo, a Vida a arder como uma frágua
Numa fogueira humana em pele e sonho erguida.
A Vida a ser oceano em cada gota de água,
A Vida a ser jardim, em cada flor nascida.
Ao fim de tudo, a Vida, aqui ou noutro lado
Com trabalho e suor a indicar-lhe um sentido.
A Vida igual a Deus, depois do beijo dado,
No sonho maternal de um ventre concebido.
Vida no azul do Céu, nos caminhos, no pão,
No orgulho dos heróis que alcançam mil conquistas.
Vida em três dimensões, explodindo em canção,
Sem mudanças de tom nem pausas imprevistas.

Anseio de viver que em tudo se insinua,
Da certeza do chão, à Estrêla que nos guia...
Assim eu quero a Vida, a minha vida e a tua,
Ao luar da mesma noite, ao Sol do mesmo dia.
Se o caminho do amor já te enerva e te cansa
E recusa ao teu ser qualquer soma de bem,
Antes quero a batalha à paz de uma bonança
Que não chega a ser paz nem reconstrói ninguém.
Pois que venha o madeiro, o fel de uma agonia
E fira e despedace o nosso coração.
Antes um pranto-dor chorado em companhia
Do que um riso-prazer sorrido em solidão.
Porque a minha alma ousada, erma de quaisquer parras,
Toda nua se entrega, em múltiplas cantigas,
Prefiro o canto ao Sol de todas as cigarras
À solene mudez de todas as formigas.

Vida poemas-de-amor, com títulos maiúsculos,
Carne da nossa carne e luz da nossa lida.
Vida aberta em manhã, isenta de crepúsculos,
Vida nas mãos, na voz, nas pálpebras, nos músculos,
Mas Vida em ti e em mim, profundamente Vida!!!

M. H.  



...  

       

Nenhum comentário:

Postar um comentário