TEMPO DE SER QUASE MANHÃ




















(Poemas, Editora Itacolomi, Rio de Janeiro, 96 páginas)


















Um desejo em mim sepulto
A matar-me de saudade
—— Convulsões de sangue adulto
Negando a maioridade.
Não tenho nem quero par!
Nunca mais hei-de ser "nós"!
(E as veias sempre a entoar
A canção dos braços sós.)
Sangue de orgulho e desdéns
Que me impões tua cor vã:
Fecha os olhos que não tens,
Que já é quase manhã.
São horas do Tempo ouvir:
Adormece sem pecado
—— Porque eu não posso dormir
Sentindo o sangue acordado.

* * *






TEMPO DA PAISAGEM





Cansada do caminho onde não vou
Mesmo apesar
Da fé e da coragem,
Como poeta que sou,
Pensei que um dia havia de chegar
Mudando-me em viagem...
Mas a terra prendeu-me sem magia
E acorrentou ao chão a minha ânsia...

...E lá se foi o dia
Gerado em poesia
De ser distância!



* * *

Se já me falta o luar,
Sobeja-me a flor na haste...

Como hei-de continuar
Sem Vida que chegue
Nem Morte que baste?



* * *

Dia triste, sem esperança
Nem água ou pão que o console...
Nisto, um riso de criança...

E foi a luz desse rio
Que encheu o dia de Sol!



* * * 

Hoje não quero outro clarão maior.
Não precisam meus olhos de mais luz.
Já me paguei do esforço e do suor
Que no trabalho pus.
Não preciso da alvura do Horizonte
Nem do Sol a bater numa parede:

Já me bastou a luz daquela fonte
Que me deu água quando tinha sede.



* * *

Uma luz sem cansaço,
Toda em festa,
Em vez deste Sol baço
Que não presta.
Uma outra luz, em gotas milagrosas
Matando a sede ao jardim,
Porque este Sol já não contenta as rosas
Nem a mim.



* * *

Maçã cheia de Sol, que eu tanto amo
Sem me fatigar nunca de querer-te,
Fica em paz na alegria do teu ramo
Que os meus dedos jamais hão-de colher-te.
E não é nem com medo do pecado
Nem com receio da expulsão...

...É só porque não tenho ao lado
Qualquer Adão.



* * *

Tudo é tão puro e casto sob os Céus
Na luz desta manhã profundamente calma,
Que ainda sinto em mim as mãos de Deus
A modelar-me a alma...



* * *

Flores enormes bordam os caminhos
Aqui e além dispersas
Bebendo a luz do Sol e do luar:
São as velas airosas dos moinhos
—— Cem margaridas totalmente abertas
Que o vento não consegue desfolhar.



* * *

No esplendor desta beleza
Que as nuvens não assassinam
Porque o Céu não atravessam,
Olho a noite na certeza
De que os meus olhos terminam
Onde as Estrelas começam.


* * *


Sou a dona dos meus passos:
Ninguém quis os meus desejos.
Tenho os braços e os abraços,
Tenho a boca e tenho os beijos.
Tenho tudo, alegre ou triste...
(Morri da ausência de dar...)

Ah! folha que te caíste
Antes do Outono chegar!


* * *


Passeio os olhos pela noite incalma:
Em tudo vibra um arrepio.
Este frio tão grande, é na minha alma
Ou é a noite que tem frio?



* * *

Alegria sensual da Natureza
Desde que o Sol se alevantar
E onde a única nota de tristeza
Sou eu que a dou...



* * *

Ave que entoas Sol desde a manhã nascida
—— Pérolas vindas de qualquer Ofir —— 
Não deixes nunca de cantar a Vida
Só para eu ter a Morte de te ouvir.



* * *

                                                            (Roseira branca)

Quando te vejo a caminhar no muro
Em passadas florais e cor de linho,
Todo o meu ser caminha em busca do Futuro
E pede mais caminho...



* * *

Na luz da manhã alta,
Com Sol a dar à toa,
Não é o pão de trigo que me falta,
Que a colheita foi boa.
É qualquer coisa que esbraveja
E a todos os momentos me consome
E que faz com que o pão, por mais farto que seja,
Sempre me saiba a fome.



         * * *             


Mais tarde! Quando a Vida não for Morte
E o Céu não tenha entraves.
Hoje a tormenta grita em voz tão forte,
Que fechei o meu sonho a sete chaves.
Agora, não, que a chuva me condena.
Deixa que o Sol seja uma brasa.

(Só com Céu limpo vale a pena
Ser asa...)



* * *

Era Maio a gritar nas folhas de hera
E em todos os rosais que o Sol abriu
A lembrar uma oculta Primavera
Que nunca me floriu...



* * *

Nesta manhã de Primavera
E luz suprema,
Ai quem me dera
Escrever um poema!

(Mas enquanto eu buscava as rimas, devagar,
Em palavras banais e pouco certas,
O pessegueiro no pomar
Rimava Sol com flores abertas.)



* * *

Fonte da Vida, à beira dos caminhos
Dando água a cada boca e a cada sede...
Mas —— ou cheios de rosas ou de espinhos ——
Os homens passam e ninguém a bebe.
Vendo só Morte ao fundo no Horizonte,
Todos avançam ignorando o bem
Posto ali a correr...
Ninguém tem olhos para ver a fonte
Ou já não há ninguém
Sequioso de beber?


* * *

Cravos pelo jardim, rubros, aos molhos,
Ardentes como absinto
E o Sol, no fundo dos meus olhos,
Sem dizer o que sinto.
No medo de mentiras e de agravos,
Calo a voz no meu ser...

...E a voz indómita dos cravos
Que diga aquilo que eu não sei dizer!


* * *
                       

Na luz ainda pequenina
Mas que já é farol
Em todos os caminhos
Tem a manhã-menina
Um gosto loiro a Sol
De bibe aos quadradinhos...


* * *

Chove tão docemente,
Tão sem desgosto
Nem mágoa,
Que a chuva ao aflorar-me o rosto
É uma carícia de água...


* * *

Sòzinha, entre vinhedos já sem parras
E sem um peoto amigo onde me acoite,
A voz clara das últimas cigarras
Põe um penso de luz na minha noite.


* * *

O mar chamou e eu ouvi.
(Era a aventura da espuma!)
Quebrei a amarra e parti...
O cais perdeu-se, na bruma...
Fiz-me ao largo, a maravilha!
Soprou o vento, a ralhar,
Sem descobrir qualquer ilha
Nem cabos para dobrar.
Hoje naufrago em meus ais
Sem poder achar a barra...
E eu que tinha amarra e cais,
Fiquei sem cais nem amarra!


* * *

Integrada na rústica magia,
Deixo de ouvir a minha pena vã
Para escutar sòmente a melodia
De um Sol sem nuvens a cantar manhã.


* * * 

Embora eu seja sincera,
Ninguém me semeia o pão.
Cansada de tanta espera,
Nem sequer a Primavera
Me rebenta em floração.


* * *

(E a para das minhas canseiras,
E junto ao meu desegano,
Os dedos das sementeiras
Rasgam os ventres das leiras
Num gesto cesariano.)


* * *

No sossego da rua,
Nos jardins e nos bancos,
O silêncio da Lua
A tecer sonhos brancos.
Que beleza infinita
Do Infinito a cair!

Que Lua bonita...!
...E o mundo a dormir!


* * *

Secura de quem vai só
Por um caminho presente
Nas nuvens do pó...

(E não haver um irmão
Que semeie uma nascente
Na minha solidão!)


* * *

Ser mar! Mar de expressão inquieta,
Salgadamente esquiva...
Maré-cheia, meus sonhos de poeta
E meus cabelos, algas à deriva.
Renego a terra onde maculo os pés
E os caminhos do arado e as sombras do pomar...
E, a arder na fé não sei de quantas fés,
Invento-me algas e marés
E fico toda mar!


* * *
  
Nasceu a Lua, ingénua, singular...
Com pássaros azuis em todo o ser...
Uma Lua sem olhos de acusar
Nem boca de morder.
Uma Lua-luar, cumprindo o seu destino
Sem medo ou alvará...

Se eu achasse o caminho
De me levar lá!


* * *

Se na rua tonta 
Me perco de vista,
Acrescento a conta
De mais um na lista.
Mas se olhar o Céu...
Que longe entornado!
Não sei se sou eu
Se o Céu humanado.
E fico na rua
Esquecida do rol,
Com os dedos de Lua
E braços de Sol.


* * *

Na luz inda pouco dia,
De mansinho, de mansinho,
Por tendência natural,
O veiozinho corria
E deixava no caminho
Um gosto de água sem sal.
E a nascente era tão pura,
Tão fresca a água sem mar
Nem marés a acontecer,
Que a manhã pôs-se a cantar
Para dormir a frescura
Do veiozinho a correr...


* * *

                                        (Instantâneo num jardim) 

Abelhas famintas
E asas de mil cores
Com voos poluindo
O sexo das flores...


* * *

Cheia de viço e fresca como um grito
De alegre percussão,
A rosa olhava o Infinito,
Mas presa ao chão.
Até que um dia o vento Norte
A rosa desfolhou
E as pétalas levou
Numa corrida...

Deus não devia consentir que a Morte
Fosse mais longe do que a Vida.


* * *

Ó vento forte
Que passa sem temor, altivo e nu:
Jura que a Vida não é Morte,
Ao menos, tu!
Numa fúria brutal e que ninguém demove,
Grita, escabuja, arrasa, enche a terra sòzinha!
Que a tua existência prove
A verdade da minha.


* * *

                                            (Charneca)

Neste dia de Sol —— agudo como espinho ——
A quebrar a mudez que do Infinito vem,
Só a distância azul a mendigar aos ninhos
As asas que não tem...



* * *

Num caule erguido, sem gelha,
Aberta em tons estivais,
Era uma rosa vermelha
Num jardim que era dos mais.
Flor mais linda e donairosa
Jamais o Sol aqueceu...
Mas por mais que olhasse a rosa,
O jardim não era meu...
Assim, calando o queixume
Que soltava ao deus-dará,
Comigo trouxe o perfume...
...Mas a rosa ficou lá!



* * *

Porque a noite esmaeceu,
Na distância inda dormente
Manhã cedo, cá vou eu
E o rebanho à minha frente.
Largo o cajado da mão
 —— Toda a defesa que tenho  ——
E fico agarrada ao chão
A ver pastar o rebanho.
E, enquanto um Sol encarnado
Tomba dos Céus desmedidos,
Um cordeiro sem pecado
Passeia a lã dos vestidos.



* * *

Depois de um tempo lento de mau fado,
O dia amanheceu suavemente brando,
De uma impensada calma
 —— Tão sem nuvens, tão luz, tão Céu lavado,
Que um pássaro de Sol ficou cantando
Na paisagem concreta de minha alma.



* * *

                                    (Alentejo)

Sem nuvens garridas
Na lonjura enorme
Do Infinito imenso,
De asas distendidas
Um milhano dorme
Um sono suspenso.



* * *

No sossego da noite sem falar,
As coisas estremecem de luar...

Venha outra Lua, não sei bem:
Venha não sei quê,
Mas que grite no mar, nas raízes, nas loisas...
Já chega de luar que não se dê
Mais para além
Da sensação das coisas.



* * *

Olho as ondas, as nuvens, os restolhos,
Os abismos sem fim
E sinto pássaros nos olhos
Em busca do Céu íntimo de mim.



* * *


 Na noite sem face
Dorme a calma toda nua...
Ah! se um pássaro acordasse
Revoltando a Lua...



* * *

Nesta mudez sem gelo ou brasas
E enquanto a Vida passa à toa,
Da carne do silêncio partem asas
Da cor do medo que me voa.



* * *

Na tempestade em que me não reclino,
Nesta hora sem luz de pensamento
E antes, ó Morte!, que me colhas,
Eu continuo o meu destino
De ouvir ranger o vento
Na assimetria das folhas.



* * *

Uma rosa e um jardim
Fizeram completa a paisagem.
Que eu os encontre, por fim,
E acabou-se-me a viagem.



* * *

(Mas a Vida não me finda
Nem à estrada dolorosa...
É que eu não achei ainda
Nem o jardim nem a rosa...)






TEMPO DA NOITE




Eu e a noite. Que tristes companheiras!
Outras mais riso, quem pudesse tê-las!
Ambas sòzinhas, ambas prisioneiras,
As duas sem Estrelas...
Mentira os mais, a Vida, a claridade!
Até o dia que hoje amanheceu!
Se alguma coisa existe com verdade,
É só a noite e eu...



* * *

Noite profundamente silenciosa
Que te abres nos Espaços inviolados
E vestes de sossego os fracos e os heróis,
Vem fechar os meus olhos acordados,
Ó Mater-dolorosa
De um calvário de Sóis!



* * *

Dada com caridade ou com desdém,
Nego a esmola que me não vença ou dome.
Não é de pão que a minha boca tem
Um desespero de fome.
Dêem-me uma palavra verdadeira...
O amor que já se não usa...
E os mais guardam na algibeira
O espanto de uma recusa.
Depois, as gentes dizem que sou louca
E vão noutra direcção
A rir desta boca
Sem lábios de pão.



* * *

O voo seria ao alto!
As asas podiam bem!
Era a Vida em sobressalto
Mais Vida do que em ninguém.
Porém, a voz dos escombros
Ergueu-se, chamou-me tonta...
(Pobres asas nos meus ombros
Fechadas de ponta a ponta!)
É que ao virem as procelas,
O meu chão não desistiu:
As asas, fiquei com elas...
...Só o voo é que partiu!



* * *

Minha vida não é minha!
Já não tem luz o meu facho,
Pois a vontade que eu tinha
Foi toda por água abaixo.
Não destingo noite ou dia
Nem conheço a minha lei,
Pois seu dantes me sabia,
Agora já me não sei.



* * *

Para os mais, é não ou sim:
Todos vão na sua estrada.
Gira tudo ao pé de mim:
Só eu me tenho parada.
Que gosto a Vida lhes tem:
Uma gargalhada, um ai...
Aquele vai, este vem,
Se este vem, aquele vai...
Vira-se o mundo do avesso;
Tudo em vão: eu não mudei!
Ou eu não tive inda começo,
Ou então já me acabei!



* * *

Tuca-tuca... Ó coração
Grita ao mar e grita à terra
E pede um pouco de pão
E dá todo o pão que encerra.
Mas ninguém, ninguém o escuta
Nem na terra nem no mar...

(E o coração tuca-tuca
E eu sem o poder parar!)



* * *

Neste mundo —— haja Sol, haja luar —— 
Num deserto de areia ou num jardim,
A minha vida é terra por lavrar
Onde eu só cresço em solidão de mim.



* * *

Ventura neste mundo de mãos presas
E frustrado desejo,
Não é possuir palácios nem riquezas
E ter pão de sobejo.
Ventura... (Ah! pudesse ela ser a minha
E ser esse o meu bem!)
...É ver voar no Céu uma andorinha
Sem desejar as asas que ela tem.



* * *

Quando me espedacei de encontro a vis escolhos
Numa hora infeliz,
A flor do pranto não abriu nos olhos,
Mas chorou na raiz.



* * *

Foi como ninguém tinha pensado:
Amargos de fel no que era doce...
Mas Deus tinha ordenado...
...E acabou-se!



* * *

E assim se fez noite o que era só luar...
Mas foi! E assim ficava acontecido!
Os mais resignados, foram para o seu lugar...

Só eu fiquei a pensar
No que podia ter sido!



* * *

E acabou tudo num declive!
Tudo acabou —— que os mais assim quiseram.
Se pedi asas, não as tive,
Se pedi beijos, não mos deram.
E hão-de acabar os sonhos e a miragem
E há-de ter fim o que não peço
—— Quando eu partir numa viagem

Que não saiba a regresso.



* * *

Morreu-me a alma, de ser triste!
Foi-se de mim, erma de fé.
Mas o meu corpo existe,
Vencido, mas de pé.
Ah! que inigma sem fim
Este inigma em que estou:
Se eu já parti de mim,
Quem foi que me ficou?



* * *

E tenho os olhos sombrios
E pouco sangue nas veias
E sem meta cada passo....
Ah! que dias tão vazios
Sem amarras nem cadeias
Além daquelas que eu faço!
Assim, sem que me prenda qualquer engaste,
Cada vez mais delida, mais vassala,
Cá vou vivendo presa à minha haste
Sem vida que baste
A justificá-la.



* * *

Areal sem o sorriso de uma fonte...
Ah! secura incolor que ninguém mede
Se não por metros cúbicos de mágoa!

(E nem o rasto de uma nuvem no Horizonte
Trazendo àquela sede
Uma presença de água!)



* * *

Neste inferno que dói tanto
E finge de Paraíso,
Paguei um rio de pranto
Pela margem de sum sorriso.
Depois, em noite bravia
Sem nenhuma Lua acesa,
Por um dia de alegria
Paguei noites de tristeza.
Paguei a conta pedida!
Não fui mesquinha ou avara!

Ah! por que será que a Vida
Há-de ser sempre tão cara?



* * *

A hora não trouxe nada!
Mas os outros cumpriram o seu dia.
E, a par de tanta vida realizada,
Só eu fiquei destroçada
De encontro à hora vazia.



* * *

Meu sonho de Infinito
Que a distância engoliu,
Tiveste só a duração do grito
Que nenhum eco repetiu.



* * *

Eu, a minha secura natural
E a vida sempre mais incerta.
Corpo de litoral...
...Praia deserta!

(E quando me fustigam temporais
E me desdobro em trágico lamento,
Meu corpo movediço não é mais
Do que areia batida pelo vento.)



* * *

Se diz "sim" o coração
Cheio de amor e pecados,
Mando aos olhos dizer "não"
E eles dizem "não", coitados!
E os outros vêem sem fundo
Os meus olhos só de escolhos
E de uma luz infeliz...

Oh! quem andasse no mundo
A mostrar a flor dos olhos
Até à raiz!



* * *

Noite morena, de pele transpirada...
Ó negro lençol
Que em mim tumultua
Com sedes de Sol
No sexo da Lua!
Ó noite presente
E que só eu sei:
Existes, realmente,
Ou fui eu que te inventei?



* * *

E sem um coração onde me acoite
Neste mundo oco e em rebeldia.
Eu, só, a olhar a noite
Com olhos de fingirem dia.
Eu e o meu passado vagabundo
Sem direcção,
A encher o vazio deste mundo
De solidão.



* * *

Não te posso colher, rosa encarnada
E viva como lume.
Não te posso colher, ó flo alada
Com voos de perfume!


Fica pois bem erguida e bem acesa
No mistério profundo
Do teu caule em constante movimento,
Que eu nunca mancharei tua pureza
Com minhas mãos de ter o mundo
A apodrecer-lhes dentro.



* * *

Sou mais do que essa que anda pelas ruas
Vergada a qualquer lei:
Se este desespero de ter Luas
No Céu que imaginei.



* * *

E só resta este mundo em que me enluto,
As torturas hostis que me consomem
E a dor de ver o Céu completamente sujo
Pelos olhos dos homens...



* * *

Se o mundo em voragens
Tivesse uma estrada
Sem curvas nem margens,
Só estrada, mais nada...


Mas só o travão
De um marco de espinhos
Mais esta aflição
De encontrar caminhos.



* * *

                                 (Suicida)

Homem de tormento
Que a Morte namora,
Com coragem dentro
E medo por fora.



* * *

Havia rosas vermelhas
Naquela manhã inda tão pouco dia.
Havia rosas vermelhas,
Tenho a certeza de que havia.
Mas no jardim passou uma criança
Humilde como o chão,
De boca sem luz
E de olhos sem pão.
Pés calçados da ausência de sapatos,
A sangrar pedras dolorosas...

Não me dirão aonde diabo
Se meteram as rosas?



* * *

Vida que hei-de viver de uma forma qualquer
Na preamar de todos os instintos!!!

(Quando o pão não souber
A boca dos famintos...)



* * *

Cá dentro é sempre o mesmo clima;
Lá fora, tudo quanto em vão sofri:
As Estrelas que brilham lá em cima
São as que ontem já vi.
O vento é sempre o mesmo vento;
A água, uma frescura
Na pressa de cair...

E o que mais me castiga o entendimento,
É que não sou capaz de desistir!



* * *

Vida que a Morte abraça:
Devo eu amaldiçoar o instante em que nasci,
Ou devo agradecer-te esta desgraça
De ter chegado aqui?



* * *

Tendo por fundo as horas em corrida,
(Eternidade
Que a todos nós possuis)
O Tempo traz a noite concebida
Em suas mãos diurnamente azuis.
Depois a tarde quieta, sem um grito
A amargurar-lhe o passo,
Reclinou-se na curva do infinito
        Tocando Avé-Marias de cansaço.            
Foi quando então, humana e tensa,
Dei minha carne à bruma aproximada e doce,
Toda possuída por aquela noite imensa
Que o Dia todo o dia nas mãos trouxe.



* * *

Naufragou-se o Futuro no Presente!
Ondas, asas, perfumes e luar
—— Tudo caiu, isento de mercê.
E, entre escombros de sonhos e de gente,
Só eu fiquei de pé, heròicamente,
Diante de mim mesma a perguntar
Como, quando e por quê...



* * *
Lá fora a terra canta, renovada,
Sem enxadas nem sedes,
E eu para aqui fechada,
Entre quatro paredes!
Oiros de Sol e brancos de luar,
São ondas vivas de maré suspensa...
(Se eu abrisse a janela par-em-par,
A Vida entrava, sem pedir licença.)
Ó alma onde a promessa se encastela
—— Sinho divino a ressumar Porvir——
Quebra as vidraças da janela
Que um medo humano me não deixa abrir.



* * *

No relógio do meu peito,
Minhas esperanças tombadas
Pela invernia raivosa,
São horas que se desfolham,
Como pétalas dobradas
Da mesma rosa.



* * *

Um dia quente, rubro, luzidio
—— Talvez o mais azul de todo o ano.
Mas ai!,por mais que o Sol grite de Estio,
Nada há que aquecer-me este frio
Desesperadamente humano.



* * *

Num abandono,
Voltou-me as costas todo o mundo
E eu fiquei só na estrada...
Mas no meu peito sem dono,
O que me dói cá dentro, bem no fundo,
É ver-me de mim mesma abandonada.



* * *

A cidade e o mar ao lado...
Cores limpas, todas sãs.
E o Sol num Céu sem pecadoA desdobrar-se em manhãs.
No meu peito, sem prazer, Como dói, esta saudade!

(Podem os mais lá saber
Quando é que o Sol é verdade?)



* * *

Não sou Norte nem sou Sul...
Quase mulher e menina.
Suspensa entre verde e azul,
Não há cor que me defina.
Não sou mar nem suas rondas,
Nem sou planura tranquila.
Se tenho o cabelo às ondas,
Tenho pés e mãos de argila.
Nesta luta em que esbravejo
É que se ergue a minha cruz:
Para ser sombra, sobejo...
...Não chego para dar luz.



* * *

Medo da noite alongada
Sem uma luz que em si role...
Já tenho a mente cansada
De imaginar tanto Sol.
Mas ninguém me escita a prece
Nem a treva se redime.
—— Que a noite não amanhece
Por mais Sol que eu imagine.



* * *

Menina como os mais,
Cantava porque tinha medo,
Um medo alucinado:
Era a bruxa montada na vassoura,
Era o papão em cima do telhado...
Hoje, que há tanto sou uma senhora,
O medo não partiu, numa corrida...
Não me apavora a bruxa ou o papão,
Mas tenho um medo pânico da Vida!
Apesar do meu pranto
A todo o instante em preamar,
Ante o meu próprio espanto,
Cada vez canto mais, mas quando eu canto
Inda é o medo que me faz cantar.



* * *

Luz da manhã, quem foi que te chamou?
Não quero ouvir a tua melopeia:
Deixa-me ser a escuridão que sou.
Vai para os mais impor a tua lei
—— A tua claridade em maré-cheia —— 
Que nem eu te chamei
Nem é por Sol que a minha noite anseia.



* * *

Um sonho imenso, cada vez mais fundo,
Todos os dias me aniquila o ser.
Que bom seria se habitasse um mundo
Sem distância de sonho a percorrer!



* * *

Foi essa voz inesperada
Que se esfolhou em plena Primavera,
Que conseguiu tornar inda em mais nada
O nada que eu já era.



* * *

Deitei à rua o sonho prometido
Que se perdeu nas pedras luzidias...
E só depois do sonho ter partido
É que eu olhei as mãos vazias...
Aos gritos, como alguém jamais gritou,
De nada serve arrepender-me, agora
 —— Que nunca um sonho regressou
À mão que o deitou fora.



* * *

Quis mais que os outros, bem sei!
E foi essa a perdição!
Eu própria é que fiz a lei
Sem lhe medir a extensão.
Como é que eu empreendi
A posse do que não tenho,
Se de todo me esqueci
De medir o meu tamanho!



* * *

Tinha tudo: flor, semente,
Beijos, fitas, a manhã
E uma boneca tão gente,
Que até dizia mamã.
Cresceu...
          Menina crescida,
Via o mundo da janela...
Começou a ter a Vida
Sem a Vida a ter a ela.
Depois... chegou a tristeza!
E da ventura sonhada
Apenas resta a certeza
De ter ficado sem nada.



* * *

Ninguém me disse que podia ir,
Mas a minha alma foi,
E eu que me vi partir,
Espero, numa espera que me dói.
Há-de voltar, inda que a dor a escolte.
Hoje, amanhã, sei lá!

(E eu sempre à espera que ela volte
Sem saber se algum dia voltará!)



* * *

Nasce a Lua plena de brancura
Dando ao botão da flor um tom de neve.
Tão de leve ele fala, tão de leve.
Só a mim o luar me não conforta,
Que alheia fico a todo o seu feitiço.

Mas que faz que me sinta viva ou morta?
À Lua que nasceu, isso que importa?
E a flor inda em botão, que tem com isso?



* * *

Por mim sei que não iria...
Com tanta mágoa a doer!
Sem um canto de alegria,
Que iria eu lá fazer?
Mas fui —— noite, toda um ai,
Sem rasgar a minha treva
—— Porque a folha morta vai
Até onde o vento a leva.



* * *

Uma pena chorava no meu peito:
Talvez amor, talvez saudade...
O dia subiu mais, fez-se perfeito
E já Eternidade.
Mas o Tempo, que a todos envenena,
Pisou meu ser de escrava,
Indiferente àquela pena
Que em meu peito chorava.



* * *

O mundo era o Paraíso
Sob a leveza dos passos...
Sabia que tinha risos,
Sabia que tinha braços...
Que a noite fosse caída,
Que nevasse em derredor...
Sabia de cor, a Vida
E tinha o sonho de cor.
Sabia da Primavera,
Da manhã e do prazer...

...Só desconhecia que "era"
E não voltaria a ser!



* * *

Indecisão que sou
Quando luto e esbravejo e desespero:
Quero e não vou
E vou quando não quero.
Neste combate que me traz vencida
E enquanto o sangue me arrefece,
Já nem sei bem se me apetece a Vida,
Se é apenas morrer que me apetece.



* * *

                              (Esperança)

Vejo-te, enfim, em mim sepulta
Na alma que enganaste e ainda te delira.
Hoje sei que és mentira da desculpa
E até desculpa da mentira.
Tudo eras para mim: amor e arte,
O milagre inda antes da promessa,
O sítio de onde tanta vez se parte
E onde tão poucas vezes se regressa!



* * *

Bem sei que sou igual! (Somos todos iguais!)
Igual a este e mais àquele e ao outro...
E eu caminho na terra igual aos mais
E sem encontro.
Ah! grilhetas que cingem o meu ser!
Mágoa que ninguém mede
E é meu castigo:
Se eu pudesse vencer
Esta barreira humana que me impede
De me encontrar comigo...



* * *

Venham todos aqueles que os Céus cobrem
Quando a manhã se levantou
Ou quando a tarde rui:
Venham ver se descobrem
Naquela que hoje sou
Aquela que não fui.



* * *
Ah! deserto dos meus passos
Num caminho todo pó!
Tenho fome de dois braços 
—— Dos braços onde repouse
Meu cansaço de ser só.
Entre um vendaval medonho,
Sou faminto ao deus-dará
—— Faminto que sonha o sonho
Do pão que nunca terá.



* * *

Partir? Mas como hei-de vencer esta cruz-ânsia,
Este medonho torvelinho,
Se a viagem tem medo da distância
E não transforma os passos em caminho?



* * *

Dantes, chorava a minha solidão...
Hoje odeio os irmãos que me estão perto.

(É só quando se está na multidão
Que a gente tem saudades do deserto.)



* * *

Era um sonho sem confim
Que em meu peito se albergava
E não fugia de mim
Nem a verdade o quebrava.
Mas quando o dia se abriu
Na flor que o Sol semeou,
Não sei o que me fugiu
Nem sei o que se quebrou.



* * *

Rosa mais fria do que um mausoléu,
Rosa sem cheiro nem matiz,
Que floresces no Céu
Mas que no mundo tens raiz...
Noite presente,
Dominadora,
Que vens não sei de que semente
Nem de que mão semeadora,
Tu caminhas humilde e rastejada,
A macular o chão,
Como se a própria treva ajoelhada
Nos pedisse perdão...



* * *

Tenho medo da noite e do silêncio
E a tarde, aos poucos, agoniza.
(Sobre as coisas, suspenso,
Um tom que sabe a cinza.)
Sinto a alma mais nua que um deserto
Que não tem nem promessa nem Porvir...

(E a noite cada vez mais perto
E o Sol a ver, sem me sacudir!)



* * *

Irmão que me olhas e não vais sòzinho,
Diz-me se pode haver maior desgraça
Do que ser porta aberta num caminho
Por onde ninguém passa!



* * *

E ainda tenho voz para cantar
Em todas as estradas!
Uma voz anoitecida de mil noites
Ainda irrealizadas.
E todos ouvem o meu canto imenso
Ermo de Sol, de tom, de porto...
Aquele canto nascido do silêncio
De um pássaro morto.



* * *

                                   (Lua-nova)

A noite avança nos Espaços nus,
Isentos de manhã e de conflito.
Ai a cedilha pouca luz
Na grande frase do Infinito!
A noite veste o mundo de uma túnica
Que vai esgarçando aos poucos, devagar...
Ai se eu pudesse pôr em música
A cor-menina do luar...!



* * *

Tão louco, o meu coração!
Tão desejoso de paz,
Que até a Vida vai pedir perdão
Do mal que a Vida lhe faz.



* * *

De tudo o que sonhei num desatino
Sem direcção
Nem cálculo nem centro,
Só me ficou a nítida visão
Do meu pranto a cumprir o seu destino
De água sumida pela terra dentro.



* * *

Noite que aumentas o volume às coisas
Com o inigma da tua escuridão,
Não exageres o tamanho às loisas
Nem o tormento em cada coração.
Deixa-me em paz na angústia do meu sangue
Entre abismos de escombros e suor.
A minha dor já é bastante grande:
Não venhas tu fazê-la inda maior.



* * *

Parei! Se de cansaço ou de saudade,
Não sei!
A verdadeira, a única verdade,
É que parei!
E dói-me ver-me toda morta
Quando a Vida não pára em seu traçado.

(Mas à Vida que importa
Que eu tivesse parado?)



* * *

Não havia maldade. Em tudo eu via
Um movimento de ascensão:
A noite era sòmente a mãe do dia;
Cada homem apenas um irmão.

E o castigo chegou! Veio da sina
Que trazia na carne verdadeira:
O castigo de quem ficou menina
A vida inteira.



* * *

A culpa não foi minha, que eu bem sei
Que este mundo a que ando acorrentada,
Não pedi nada
E nada recusei.
Hoje que vivo mas não vivo
E em minhas veias corre um sangue humano
Que nem é meu,
Ardo neste braseiro sem motivo
Que a Vida por engano
Acendeu.



* * *

O anseio que me devora
Na noite tranquila e baça,
É sentir passar na hora
Qualquer hora que não passa,



* * *

Não! Não! Este silêncio é impossível!
Esta expressão dramática de mudo!
O mais louco rumor é preferível
A este vazio em tudo.
Já não suporto o peso das mãos sós
Nem o silêncio que me invade
Nas trevas onde anoiteci.
Venha o eco animal de qualquer voz,
Inda que afirme uma verdade
Que eu não pedi.



* * *

Quem me livra do chão onde me arraso?
Quem vem soltar-me o grito da garganta?
É melhor ser infeliz
Do que viver neste vaso
Que deixa crescer a planta
Mas que limita a raiz.



* * *

Criador das Lonjuras siderais,
Da flor e das raízes,
Da asa que voa à cobra que rasteja,
Repara que me deste dor a mais
E agora não me dizes
Que hei-de fazer à dor que me sobeja.



* * *

Minha alma vinha de longe
—— Esta alma que era só minha ——
Mas que me importava se eu
Sabia de onde ela vinha!
Depois, a Morte passou...
Desfez tudo, como um ai...
Só agora é que me importo
—— Que não sei onde ela vai.



* * *

Que amargura desmedida!
Nem sossegos de jardim
Nem labaredas de Vida
Nem Altura conquistada!

(Desço ao mais fundo de mim
E não consigo achar nada!




* * *

Dantes, era eu e o mar...
Eu, a paisagem sem fim
E o dia que amanheceu...
Depois da Morte passar,
Ai! q8uando olhei para mim,
Era só eu!



* * *

Tenho olhos e não vejo...
Tenho boca e não falo...
Nem sinto o coração
No meu peito estagnado.



* * *



TEMPO DA VIDA



 
Dizem que a Vida apenas é vivida
Quando no sangue se derrama
Com um sabor alegre e altivo...

Se a minha vida não é Vida,
Como é então que se chama
Isto que vivo?



* * *

Mas que vida insatisfeita
Que me deslumbra e envenena!
Se o corpo me diz "Aceita!",
"Recusa!", a alma me ordena.
E os dias morrem vencidos,
Eu cada vez mais incalma...
A quem devo dar ouvidos:
Ao meu corpo ou à minha alma?
Que mau destino em mim mora
E no anseio em que me centro9,
Com voos por fora
E asas por dentro!



* * *

Nos meus longos Céus desertos,
Contra a Vida é minha queixa,
Que eu trago voos abertos
Nas asas que ela me fecha.



* * *

Eu não imagino rosas, mas há rosas
Na terra do Céu e no Céu do meu chão...

Agora compreendo:
Sou eu que invento
A minha própria imaginação!



* * *

Fome de madrugada
Que a noite me console,
E a treva acabada
No começo do Sol...
Ah! fime de alegrias
Nos Espaços incertos
De gaiolas vazias
E de voos libertos...
Fome que me consome
Em horas sempre iguais...
Fome da minha fome
Que tem fome de mais...
Fome em todo o meu ser
Sem nada que a alimente...

... Só a Lua a comer
Os telhados em frente...!



* * *

Que me falta um braço terno...
Que não devo esperar nada...
Deixem lá que seja Inverno
E que me sinta cansada!
Embora sem Primavera,
Nem sinto a minha canseira
No sonho de estar à espera
De uma espera verdadeira.



* * *

Telúrica, esbanjando Primavera
Por todo o ser
Em desalinho,
Hei-de cavar com minhas mãos a terra,
Até que as mãos me fiquem a saber
A pão e a vinho.



* * *


Via Láctea —— sinónimo de paz —— 
Que não és destes só ou só daqueles:
Ah! empresta-me os passos que não dás,
Que eu quero andar com eles.



* * *

Por mais que a Vida mate as esperanças
E ponha bem de pé o sofrimento,
Não quero ouvir o choro das crianças
Nem os gritos do vento.
Nego-me a crer que no Porvir
Apenas haja mágoas
E ausências de luar...

(Como quem tenta ouvir
Nos soluços das águas
As fontes a cantar...)



* * *

Não definas a Vida: vive apenas
A hora em que te expandes
—— Com voos grandes
De asas pequenas.

O resto, é tudo o que tiver de acontecer
Na tua estrada,
Porque a Vida, depois de analisada,
Não é mais que a certeza de a viver.



* * *

Ir contigo! Ir contigo isenta de conflitos
Que se acastelam e em mim rugem,
E embriagar-me de azuis e de Infinitos,
De imprevisto e salsugem.
Ir contigo, sem medos nem cansaços,
Na direcção de qualquer fim,
Deixando no silêncio dos meus passos
Uma estrada de espuma atrás de mim.

Mas, enquanto a minha alma em desvario
Vai presa a ti, ó barco!, e vai onde tu vais,
Quem sabe se a tua alma de navio
Não ficou presa ao cais!



* * *

Que faz meu silêncio fundo,
Esta voz que em mim habita
Mais calada do que as loisas,
Se existe sempre no mundo
Qualquer coisa que me grita
Na face muda das coisas!



* * *

Parra o Tempo, de corrida,
E eu continuo parada...
Bate à minha porta a Vida
E eu tenho a porta fechada.
Nesta horrível ansiedade
Que nem me ri nem conforta,
Por que é que a Vida não há-de 
Arrombar a minha porta?



* * *

Mais uma esperança morta?
Outra desilusão?
A mim que importa,
Se tenho vivo o coração!
Outra vez hão-de erguer-se os meus sentidos
Inda mais resolutos,
Que, embora os frutos já colhidos,
Fica a raiz sonhando novos frutos.



* * *

Mandando as penas para o largo,
Também entro no coro
—— A boca inda a saber a amargo
E vermelhas as pálpebras do choro.
Não perdendo o compasso alegre e brando,
Enjeito as dores que me quebrantam,
Que eu não podia continuar chorando
Enquanto os outros, cantam!



* * *

Esperei longamente pelo sonho
—— O corpo do meu corpo, a alma da minha alma:
Um de rastos, com laivos de medronho,
A outra vertical como uma palma.
Ó deus sem ara definida
Que vieste nas mãos da Primavera:
Eu sei que já chegaste à minha vida...
...Mas continuo à espera!



* * *

Abril em flor na caridade
Que há tanto o mundo espera.
Com sangue e veias, quem não há-de
Ser Primavera?
Ressuscitei ao Sol que me beijou
E derruiu a pena
Que pelo chão rasteja.
Não me queiram a morta que não sou!
Deixem-me ser na Vida o que ela ordena 
Que seja.



* * *

A semente aqui fica bem lançada
Consoante o coração a quis:
Uma roseira em pétalas rimada
Com sonhos na raiz.
Porém, se a terra for maninha
E mudar em pecados a virtude,
A culpa não é minha,
Que fiz tudo o que pude...



* * *

                              (Destino)

Tu, que me não dás Sol nem agasalhas
E faminta me vês e dolorida,
Dás-me tuas migalhas
Do pão da Vida.
Vendo que me recusas bem e paz
E alimentas a dor que me consome,
Eu te maldigo em minhas horas más,
Porque o pão que me dás
Inda me dá mais fome,



* * *


nMeu coração... um barco já sem velas
Nem leme nem cordame nem gajeiros...
Pobre barco batido, que as procelas
Encalharam nos picos mais certeiros.
Ó meu barco encalhado inda com fé,
Aguardando a maré que te não vem salvar:
Tu ficarás à espera da maré
Até ao fim do mar.



* * *

Mais uma vez falhei! Mas que me importa
A tempestade que me quebra o ser,
Se da rosa que o vento deixou morta
Outra rosa mais viva há-de nascer!


* * *

Vens ao compasso do teu próprio grito,
Por um caminho isento de folhagem,
Sem coragem de olhar o Infinito
Nem para olhar a Lua ter coragem.
Homem que chegas pela estrada nua
Morto do fel que a Vida te repete:
Olha o Infinito e vais buscar à Lua
O sonho eterno que ela te promete.



* * *

Hoje, nem eu sei bem o que desejo:
Qualquer coisa que venha e que depois se evole...

...E tanto pode ser um beijo,
Como um raio de Sol.



* * *

Homens! Vinde comigo! O dia é certo
E a aventura nos chama do Porvor.
Quem sabe se no mar já descoberto
Existe inda mais mar por descobrir!

Mas ninguém ouve minha voz de espuma,
Meu coração de rei, feito vassalo...
(E o marlá continua envolto em bruma
À espera de quem venha devassá-lo.)



* * *

Eu bem sei que a Morte é que me abate os passos
Esteja eu onde estiver.
Mais hei-de fugir do nó dos seus mil laços
Levantando al alto os braços
Até onde a Vida der.



* * *

                            (À Inspiração)

Quando a Lua branqueia cada palma
E cada charco fundo,
Deusa que vens engrinaldada e calma,
Bate à porta fechada da minha alma
Na hora de dar Cânticos ao mundo.



* * *

Se tudo naufragou sem rumo nem certeza,
Num gesto de pecado,
Salve-se ao menos a lírica beleza
De ter cantado!



* * *

Por que choro doidamente
Desde a hora em que nasci?
Perguntei a toda a gente
E só eu me respondi.
Pondo o coração de lado
E tendo ambas as mãos juntas,
Agora cumpro o meu fado
Sem respostas nem perguntas.



* * *

Oiço vozes... (de quem são?)
...Na mudez da Lua-cheia.
Fala-me alto o coração?
Fala o sangue em cada veia?
Oiço vozes, devagar,
Que chegam de qualquer lado...
Interrogo o Céu e o mar
E vejo o mundo calado.
Oiço vozes, quase à toa...
Busco a fonte que me embala
Enquanto a Vida se escoa
Sem eu achar quem me fala.



* * *

Qalquer coisa que chegue a qualquer fim
E que me leve desta vida morta.
Quero ser eu sem mim!
Com voos ou com folhas, que me importa?
No desejo que me abrasa
De ser feliz,
Tanto me faz ser asa
Como raiz.



* * *

Sonho além da terra dura
Sem medos nem cicatrizes:
Abrir as asas na Altura
Mas sem quebrar as raízes.
Ir à conquista da Vida
Deslumbrada de Porvir...
Que bom seria a partida
Ficando a ver-me partir!



* * *

A abraçar todo o Espaço
E entre as raivosas mãos do vento,
O dia amanheceu soturno e baço
Num Céu todo vestido de cinzento.
"Mãe..."
   E a palavra cheia de meiguice
Acendeu na penumbra um mágico farol...

Quem foi que disse
Que não havia Sol?



* * *

                           (À Vida)

No fundo, tenho a Morte sufocada
A desejar a tona ardentemente
E o anseio febril de não ser nada
Cativo na semente.
Toma na tua a minha mão cansada
E que a sina abandona
Nas escarpas do mundo.

Não deixes vir à tona
O que trago no fundo.



* * *

Mesmo contra toda a espera ,
Semeia os teus pensamentos
Seja embora seco o chão.
Lá virá a Primavera
Dizer na voz dos rebentos
Se tens ou não tens razão.



* * *

O mar azul, intérmino e sem rota,
Alheio a contracções de rima
E as asas de qualquer gaivota
A apontar para cima.
Claridade mais forte que um salerno
Embriagando a intenção de um sangue audaz.
O Sol a gritar alto que é eterno
E a noite que o desminta, se é capaz!



* * *

Ante o dia que há-de vir,
Janelas de par-em-par
Para a tristeza sair
E para a alegria entrar.
E sem noite que envenena
E fere mais do que espinho,
Que a Vida só vale a pena
Com Sol a dar no caminho.



* * *

Um pouco só de amor e de ternura,
De uma ternura humana e sã,
E as minhas asas ganham logo altura
E a minha noite uns laivos de manhã.
Se olharem para mim, todos me vêem
A mendigar num mundo verdadeiro
—— Onde qualquer migalha que me dêem
Tem o sabor do pão inteiro.



* * *

Vinha sem água e não trazia vinho,
Cansada de secura e de abandono,
Quando encontrei na beira do caminho
Uma fonte sem dono.
Se a minha sede era maior que o mar
E se a fonte foi Deus que a fez nascer,
Quem é capaz de me afirmar
Que fiz mal em beber?



* * *

A noite a escorrer luz, livre de pena,
Num fundo isento de pecado
E a Lua imensa, sonhadora e plena
Era um convite aos meus irmãos e a mim,
Ao alcance imortal de cada mão...
Ensopada em luar, disse que sim...

E venha quem quiser dizer que não!



* * *

Olhos cegos à vertigem,
Boca a recusar a sede
E em volta da carne virgem
O frio de uma parede...
Braços mortos, em defeso,
Onde os abraços murcharam...
(Asas vergadas ao peso
De voos que não voaram.)
Alma onde não entra o Sol
Porque é toda negação.

E não haver um farol
Que lhe rasgue a escuridão!



* * *
  
Mesmo contra toda a espera ,
Semeia os teus pensamentos
Seja embora seco o chão.
Lá virá a Primavera
Dizer na voz dos rebentos
Se tens ou não tens razão.



* * *

O mar azul, intérmino e sem rota,
Alheio a contracções de rima
E as asas de qualquer gaivota
A apontar para cima.
Claridade mais forte que um salerno
Embriagando a intenção de um sangue audaz.
O Sol a gritar alto que é eterno
E a noite que o desminta, se é capaz!



* * *

Ante o dia que há-de vir,
Janelas de par-em-par
Para a tristeza sair
E para a alegria entrar.
E sem noite que envenena
E fere mais do que espinho,
Que a Vida só vale a pena
Com Sol a dar no caminho.



* * *

Um pouco só de amor e de ternura,
De uma ternura humana e sã,
E as minhas asas ganham logo altura
E a minha noite uns laivos de manhã.
Se olharem para mim, todos me vêem
A mendigar num mundo verdadeiro
—— Onde qualquer migalha que me dêem
Tem o sabor do pão inteiro.



* * *

Vinha sem água e não trazia vinho,
Cansada de secura e de abandono,
Quando encontrei na beira do caminho
Uma fonte sem dono.
Se a minha sede era maior que o mar
E se a fonte foi Deus que a fez nascer,
Quem é capaz de me afirmar
Que fiz mal em beber?



* * *

A noite a escorrer luz, livre de pena,
Num fundo isento de pecado
E a Lua imensa, sonhadora e plena
Era um convite aos meus irmãos e a mim,
Ao alcance imortal de cada mão...
Ensopada em luar, disse que sim...

E venha quem quiser dizer que não!



* * *

Olhos cegos à vertigem,
Boca a recusar a sede
E em volta da carne virgem
O frio de uma parede...
Braços mortos, em defeso,
Onde os abraços murcharam...
(Asas vergadas ao peso
De voos que não voaram.)
Alma onde não entra o Sol
Porque é toda negação.

E não haver um farol
Que lhe rasgue a escuridão!



* * *

 QNão me contento só com esta margem!
Quero o mundo maior!
Quero a Vida sem fim
—— Inda mais longa do que o mar.

(Mas o pior
E esta voz que trago em mim
E que não tem coragem
De me gritar!)



* * *

Vida que nunca estás onde eu estiver
E que ardes mais que a mais ardente frágua,
Continua a ser Sol num deserto qualquer,
Mas deixa-me ser água...



* * *

"Eu não sei porque descoras
E esgarças a boca aos ais.
Por que te dói? Por que choras?
Por que não és como os mais?
Coração?
    Pois vai ao fundo
Pela tua própria mão!
Que doida! A viver no mundo
E ainda ter coração!"



* * *

Eu quero lá saber se fui ou não traída
E se há no mundo lágrimas e abrolhos:
Deixem-me olhar a Vida
Com crianças a rir dentro dos olhos.



* * *

O Céu, eu hei de encontrá-lo
Nos cantos que o mundo tem.
Não canso de procurá-lo
Aqui, ali, mais além...
De alma no prazer ungida
—— Leve o diabo a tristeza! ——
Acendo o lume da Vida
E hei-de achá-lo, com certeza.
Não desisto! Vou mais fundo,
Mais aceso o lumaréu.
De um polo ao outro do mundo,
Qualquer sítio há-de ser Céu.



* * *

Entre renúncias, negações e guerra,
O sonho amortalhou-se no meu ser
—— Flor morta já, mas a espalhar na terra
Sementes de outro sonho que há-de ter.



* * *

Todos os sonhos bons em mim habitam:
Levo-os na alma que os mais julgam vassala.
Porque me vêem só, lamentam e acreditam:
"Coitada! Sem ninguém a acompanhá-la!"

Mas eu possuo em mim a maior companhia:
Pertence-me o luar, o Sol, o amanhecer...
O Céu é todo meu, a terra é toda minha!

(Que louca alegria:
Só eu a saber
Que eu não vou sòzinha!)  



* * *

O instante morreu de frio...
Outro veio e foi também.
Qualquer deles foi vazio
—— Que não trouxe mal ou bem.
E não sucedeu mais nada!
(Nada pode suceder)
A Morte sempre parada,
A Vida sempre a correr...
Tudo caído e sem fé,
Naufragado na vasante...

E só eu fiquei de pé
Por detrás de cada instante.



* * *

Talvez a Morte ou Vida que chegou
Entre os braços da noite ou do luar...

Qualquer coisa que veio e que parou
No medo, sem motivo, de avançar.



* * *

Por mais dura que seja a minha sina
E mesmo vendo o mal que em mim se expande,
Que hei-de eu fazer, na fé que me domina,
Se não viver esta alma de menina
Que nunca soube ser de gente grande!



* * *

Já que eu não mudo a minha sorte
E em vão me agarro
A um sonho que findou,
Deixem-me construir a minha morte
Com a fúria do barro
Que se quebrou.



* * *

Irmãos: por caridade,Acudi-me depressa!
Quem me dá cinco reis de felicidade,
Um beijo, uma carícia, uma promessa?
Mas apesar do aspecto de vencida
E do bordão e da sacola,
Não há quem veja a minha mão estendida
Pedindo esmola...
Homens: embora a vossa negação
E o mal que me consome,
Continuarei a pedir a cada irmão 
Enquanto o pão for pão
E eu tiver fome.



* * *

Que me importa que os mais não sejam bons
E tenham pedra em vez de coração
Ou cantem mar nos mais diversos tons
E chorem sombra acorrentada ao chão?
A mim que importa o fim mais o começo?
Saudades do passado ou crença no Porvir?
Voltem o mundo inteiro do avesso
Mas deixem-me dormir.



* * *

De quantos sonhos eu sonhei em vão,
Apenas resta o coração
Petrificado numa longa espera...

(Ave tombada do ninho
Que não achaste caminho
Que te levasse à Primavera!)



* * *

Paga, se a Vida te conforta
Ou se a angústia te esmaga.
Paga com beijos ou dinheiro, não importa,
Mas paga!
Tens de pagar os êxtases supremos,
O vinho, o pão, o amor, a terra, o mar,
O sangue que as artérias te percorre...
Paga!, que neste mundo em que vivemos
Até é hábito pagar
O mal de que se morre...



* * *

Já não sei dizer mais nada:
O Destino não se muda.
A Vida não é culpada
Quando a Morte não ajuda.
De voz sem timbre e partida,
Num mundo que é todo nosso,
Já disse que não à Vida
E morro até onde posso...


* * *



TEMPO DE ORGULHO 
   

  Que me importa trazer as mãos chagadas
E que a dor me trespasse lado a lado!
Vim de rastros por todas as estradas
Mas na vitória do caminho andado.
Que me faz ir descalça e não ter rima
E sentir que a promessa me deixou,
Se aos meus ouvidos grita a voz que afirma
Que a Vida ainda não me derrotou!



* * *

Sei que sofres, Irmão
—— Que só penas e fel os mais te deram.
Mas é preciso acreditar no chão
E até no barro de que te fizeram.
Porque apesar da carne destruída,
Ninguém deve enjeitar a sua sorte,
Que a solução não é mandar a Vida
Ao encontro da Morte.



* * *

...E lá partiu a turba
Porque em meus olhos leu o intrépido letreiro:

Esta alma não se curva
Mesmo que a dor a parta ao meio!



* * *

Hoje, ninguém repara, mas que importa
O estado do caminho?
Traída, renegada, quase morta,
Apenas obedeço ao meu destino.
Mesmo assim não desisto da fundura
Em minha alma presente,
Que um dia alguém verá na espiga já madura
O esforço da semente.



* * *

Nem antes nem depois: só eu apenas
E mais a pena que me concebeu...
Sem horas agressivas ou serenas:
Apenas eu.
Ah! não haver alguém que o meu trilho cruzasse
Numa procura singular
E que em mim começasse
Até eu me acabar!



* * *

Que mal tem se é pecado, se for eu?
Deixem que chegue ao fim mesmo vencida
E não chore ninguém que se perdeu
Da perdição da Vida.



* * *

Não descreias no barro da semente:
Abre a tua janela
Ao sol desta verdade:
Tu és humanamente
Uma parcela
Da divindade.
Qualquer coisa sagrada em ti se não ruiu,
Pois apesar das dores que te consomem,
Foi com as mãos de um deus que Deus mediu
O teu tamanho de homem.



* * *

Perdi a alma neste mar de abrolhos!
Agora, estou mais nua!
Não a soube guardar dentro dos olhos
E caiu-me na rua!
Mas vivo tão segura e calma
Como o luar
Que inda há pouco nasceu,
Pois todo aquele que perdeu a alma,
Ou na Vida ou na Morte há-de encontrar
A alma que perdeu.



* * *

Tendo esquecido tudo, só não esqueço
Esta distância de mim
Que vai do meu começo
Ao meu fim.



* * *

Basto-me eu e a minha estrada!
Deixem-me os mais tal qual sou.
Não quero ninguém nem nada
—— Que eu sou a seta atirada
E sou a mão que a atirou.



* * *

O meu lugar não é aqui! Eu sei:
Tenho a raiz num sítio mais profundo.
Mas sou de carne e sofro a sua lei
—— Corpo de escravo, alma de rei ——
Flor de Céu que Deus quis aberta em mundo.



* * *

Quero ir além de mim e não consigo
—— Que mal tento a ascensão, logo o impulso cai.
E Tu procedes como um inimigo,
Em vez de me seres Pai.
Não te oponhas ao surto e deixa-me subir
—— Muito embora rasgando-me no tojo ——
Que só do cimo eu poderei medir
A Tua dimensão e o meu arrojo.



* * *

Não preciso que digam que fiz mal
E me atirem pedradas...
Mesmo com temporal
Há fontes nas estradas.
Que fiz mal, bem o diz meu coração chagado;
Porém, não me arrependo —— por enquanto... ——
Que, às vezes, de um momento de pecado,
Pode nascer um santo...



* * *

                          (Génio)

Quando te vejo a dilatar os mais,
Mais me aniquilo dentro da raiz.
Não tentes meus centímetros reais:
Deixa-me ser da altura que Deus quis.
Vai para qualquer sítio longo e estranho
E deixa-me ficar entregue à minha pena
—— Pois é só quando meço o teu tamanho
Que fico mais pequena...



* * *

Por mais que a mágoa na minha alma se concentre,
Tinha um dia guardado no meu ser
—— Dia que sente o Sol a palpitar no ventre
Mas tinha medo de romper.
Hoje, plena de luz, sou toda um facho
E ninguém brilha mais do que eu.
Rasguei-me de alto a baixo
E o Sol rompeu.



* * *

Em minhas mãos trago a verdade toda,
Embora em roda
Tentem encher a luz de escuridão.
Venham os meus irmãos com fel e até com ira,
Que ninguém é capaz de mudar em mentira
A verdade que eu trago em cada mão.



* * *

Só rosas, não! Venham espinhos
Duros, finos, acerados,
Deixando pelos caminhos
Meus passos ensanguentados.
Que as dores se multipliquem,
E me deixem quase exangue,
Para que os mais acreditem
Que o poeta também tem sangue.



* * *

Sou eu e aquele orgulho corajoso
Que em mim sempre existiu.
E o milagre espantoso
É que Deus inda não me destruiu.
Eu, criatura e criadora!
Eu, barro! Eu, ímpeto! Eu, suor!
Eu, que apesar de pescadora
E talvez em função dos meus pecados,
Faço a Vida melhor.



* * *

Com razão ou sem ela, isso que faz,
Se ao destino aprouver?
Só o poeta é capaz
De chegar onde quer.
Assim,
Em vez de uma pedrada desleal
Que lhe macule o ser,
Cubram de glória o único mortal
Que tem coragem de viver.



* * *

Que seja até à insensatez,
A sua fé é tanta,
Que se cair uma vez,
Outra vez se levanta.
O Homem não desiste da procura
Mesmo se o sonho lhe despirem
—— Pois todo o pássaro há-de achar a Altura
Que as asas lhe pedirem.



* * *

Se muito em cima os olhos ponho,
Irei até onde se encontra o luar
—— Eu, mais as asas virgens do meu sonho
Que nenhum desespero há-de quebrar.



* * *

Entre marés de pesadelo
E sofrimento,
Sou o pinheiro erguido junto ao mar
À espera de que um dia chegue o vento
Que há-de abatê-lo,
Sem o vergar.



* * *

Aqui estou, parada, hostil,
Neste mundo de inferno,
Com horas de Abril
E chagas de Inverno.
Aqui estou, de alma aleijada
Dos rasgões do mundo,
Quase sem estrada
Nem raízes no fundo.
Aqui estou: a Lua partida
Por ausência de fé.
Sem amor, sem destino, sem vida
Mas de pé!



* * *

Embora torturada
Ou possessa de bárbara alegria,
Deixem que eu faça versos noite e dia
E não faça mais nada.

Com Sol ou sem prazer,
Tenho a sorte do veio cristalino
Que sem protesto aceita o seu destino
De música a correr...



* * *

Tu que perdeste a fé, o amor e o Norte
E em vez de coração transportas uma loisa,
Insiste, luta, avança e, humanamente forte,
Deixa que a Vida saiba a Morte
—— Se não puder saber a outra coisa.




* * *


Do chão ou de uma alfombra,
Ergo-me sempre tão perfeita
E tão divina de ascensão,
Que até a minha sombra
Na hora em que o Sol se deita,
Se levanta do chão.



* * *

Na minha vida sem meta
(E ela não é como a pintam!)
Se eu julgo que nasci poeta,
Por favor, não me desmintam.
Que não ria ninguém dos meus cansaços
E deixem-me viver neste mundo intranquilo
A sonhar que tenho os braços
Da Venus de Milo...



* * *

Corpo de sangue imperfeito,
Sempre tão longe da paz:
Não guardes dentro do peito
O mal que a Vida te faz.
Grita, morde, barafusta!
Enche o mundo com teu lenho!
Não sufoques tua angústia
Na angústia do teu tamanho!



* * *

Entre as contradições que em mim habitam
—— Simbiose de músculos e sonho ——
Sou maior do que os outros acreditam,
Maior até do que suponho.
Isenta de receio ou sobressalto,
Ergo-me sem temor na terra escura,
Que a curva da minha alma vai mais alto
Que a linha vertical da minha altura.



* * *


   
 TEMPO DE AMOR
   

Amor maior que o Céu, maior que o mar,
Que nunca teve tempo nem idade...

(E a Vida a pensar
Que a Morte é verdade!)



* * *

Ah! quantas vezes eu cismo
Que bom seria, por fim,
Atirar o meu abismo
A um abismo sem mim!



* * *

O fundo era azul cobalto
Que os raios de Sol doiraram.
E o coração bateu alto
Quando os olhos se encontraram.
Depois, o Sol desmaiou...
Ele seguiu apressado...
... E tudo aquilo acabou
Sem nunca ter começado!



* * *

Nos olhos, um calor sem improviso
De renúncias e lágrimas e escolhos...
Mas de repente no teu rosto liso
Abriu-se o leque de um sorriso
E refrescou-me os olhos...



* * *

Quando te encontrei um dia
Entre sonhos de improviso,
Dei-te o riso da alegria
Mais a alegria do riso.
Vê lá que pouco mesquinha
Eu fui nesse amor sem lei,
Que até mesmo o que não tinha
Te dei...



* * *

Quando ergui minhas mãos, num aceno profundo
Pleno de altura
E de harmonia,
Todos pensaram que eu pedia o mundo,
Quando era apenas um pouco de ternura
Que eu pedia...



* * *

Perdi-me no teu olhar
No momento em que te vi.
E é tão grande o meu penar,
Que nem me posso encontrar
No sítio onde me perdi.



* * *

Mar, eu bem sei que sou
Com seus longes de sal e pesadelos,
Que inda há bem pouco mo afirmou
A ondulação dos meus cabelos.
Violência da maré que me engrandece
E me atira, em cachões, para os Espaços...

Ai! quem me dera que o meu mar coubesse
Entre os estreitos rios dos teus braços!



* * *

Sei que já não existes, mas existes
No mundo de saudades onde moro
—— Tu, que deixaste nos meus olhos tristes
As lágrimas sem água que inda choro.
E hás-de sempre existir, hora após hora,
Porque essa é a mais profunda mágoa
—— Quando se chora pela vida fora
E não podem as lágrimas ser água.



* * *

No teu chão deixei cair
O meu sorriso menino.
Tu serias o Porvir,
Eu seria o teu destino.
Agora, frio, insepulto,
Do que foi uma ilusão,
Só existe um pranto adulto
Entre as pedras do teu chão.



* * *

Chegou o tempo sombrio
Numa corrida malsã:
De tudo ter tanto frio,
Tornou-se noite a manhã.
Mas entre a maré de escolhos
Que anoitecem o meu ser,
Penso na luz dos teus olhos
E consigo amanhecer.



* * *

O Sol veio encontrar-nos de mão dada,
Completamente sós...

(Não digas nada, Amor, não digas nada:
Deixa a manhã falar por nós...)



* * *

Ai! pecado de amor! Em todo o lado
O mal se enraizou
Sem que ninguém o mude
——  Esse pecado que só é pecado
Porque houve um Homem que deliberou
Não lhe chamar virtude...



* * *

Numa alucinação de louca
E em loucos atropelos,
Flori rosas nos olhos e na boca
E nos cabelos.
Mas tu seguias por estradas duvidosas
E passaste a meu lado sem me veres...


—— A mim, que só flori em rosas
Para tu me colheres!!!



* * *

O teu lábio o meu beijou
Numa ânsia além da ânsia
E o Infinito ficou
Ermo de qualquer distância.
Agora, em tardes morenas,
Sou a ave regressada
Que nas asas traz as penas
De uma distância acabada.



* * *

Nosso encontro banal a pouco se resume
Num mundo que não tem nem ar nem Sol nem cor:
Em ti, tornou-se flor dissolvida em perfume,
Em mim fez-se saudade enraízada em dor.



* * *

No dia em que te encontrei
Já no alto da subida,
Às tuas mãos entreguei
Metade da minha vida.
E eu que vivia apertada
Dentro da vida que tinha,
Vivo agora mais folgada
Só na metade que é minha.



* * *

Responde-me, ó Sábio-mor,
Criador de Sóis e de Luas:
Como é que a Vida é maior
Depois de partida em duas?



* * *

Mudez de mim, que não de outro...
Mas no meu trilho cruzado
Desde que se deu o encontro,
Tilinto por todo o lado.



* * *

Que coisa tão estranha, Amor:
Toda eu vibro em tom fogoso
E nascido de improviso...
Quem havia de supor
Que o meu corpo silencioso
Tivesse a alma de um guiso?



* * *

Quando eu estava só na vida
Sendo meu princípio e fim,
Eu era mil dividida
Em mil bocados de mim.
Mas tudo mudou depois
E sem raciocínio algum:
Agora que somos dois,
É que me sinto só um.



* * *

Se a luz morre nos longes outonais,
Não receies as trevas que hão-de vir...

Tu bem sabes que a noite não é mais
Do que o Sol a dormir...



* * *

Não me quiseste quando eu tanto quis...
Hoje andas a pedir o meu amor!
Se os teus dedos quebraram a raiz,
Não posso já dar flor.
Segue, pois, o teu louco desvario
Que eu nunca mais em ti serei presente.
Ninguém tem forças de mandar ao rio
Que volte a ser nascente.



* * *

Tendo ao começo um gosto de exagero
E um sabor amaríssimo depois,
O amor é sempre o mesmo desespero
Vivido a dois...



* * *



 TEMPO DE SANGUE



Tu, vive a carne como coisa tua!
Não te importes de Estrelas ou de Lua!
Vai para além da noite que te cerca.
Vive o dia com teu sangue
Para que Deus se não zangue
E nem o dia se perca.



* * *


Um sorriso sem contorno
Na boca mais inocente...
... O Sol pouco mais de morno
A saber que há-de ser quente.
Ardência da Primavera
À espera que o Sol a inflame
E o sangue também à espera
Da primeira voz que o chame.



* * *

Venham chuvas, flagelos, desencontros;
Folhas tombadas, águas caudalosas.
Mesmo que a Primavera seja de outros,
Não desisto das rosas.
Que os mais me vejam como um réu
E julguem meus anseios proibidos.
O que eu preciso é dar um céu
Ao sol que trago nos sentidos.



* * *

                             (Desejo)

Sei que vieste, porque a noite é que te trouxe
Na sua mão agreste.
Agora que te sinto sobre mim suspenso,
Só me falta perguntar ao silêncio
De onde vieste
E por que vieste...



* * *


Chega de tons siderais!
Quero queimar-me nas brasas
Dos que não têm juízo.
Deixem-me ser como os mais,
Que estou cansada das asas
E farta de Paraíso.
Basta de luz! Venha a treva
Amortalhar a manhã
No inferno da tentação
—— Porque eu sou uma pobre Eva
Que já possui a maçã,
Mas inda não tem Adão.



* * *

Agora, não, que estou de mim ausente
E não há mal ou bem que me quebrante:
Sem a noite encontrar quem a lamente
Nem o Sol quem o cante.
Agora, não. Ousada e esquiva,
Nada sinto em meu ser material
Além desta tendência primitiva
De ser apenas animal.



* * *

Bem vês que hoje não posso. Asas alheias
Enchem meu céu de um voo morto.
Amanhã...

        Sim! Sem medos e sem peias,
Vem florir amanhã as minhas veias,
Adiada Primavera do meu corpo.



* * *

Enquanto o Sol destrói amarras aviltosas
E candeias sem fim
Que faziam a Vida menos boa,
O perfume deixou o cárcere das rosas
E agora corre no jardim
À toa...
Tudo se agita e baila e vibra, sem demora,
Instante a instante a ronda mais ousada.
Ah! quanta liberdade lá por fora,
E eu para aqui fechada!



* * *

Dantes, quando o pecado que envenena
A poucos dava o seu sabor,
Inda valia a pena
Ser pecador.
Hoje, com tanto sangue em cada rosto,
Tanta malícia em cada olhar,
Até perdeu o gosto
O gosto de pecar...



* * *

Se o sangue te não deixa adormecer,
Fecha os olhos cansados.
Que sejas tu sòmente a ver
Os teus sentidos acordados.
Fecha os olhos morenos
Tão longe ainda de qualquer aurora.
Que a noite, ao menos,
Te adormeça por fora.



* * *

Abram todas as portas!
Deixem pulsar o coração
Sem pregos nem açoites.
Afastem para lá esse caixão
Cheio de manhãs mortas
E mortas noites.
Já que o sangue as artérias percorreu
Longe de negativa ou de protesto,
Viva-se a Vida como Deus a deu
E ao diabo, o resto!



* * *

As mãos vazias, em lugar de cheias...
Sem outra boca, a boca de beijar...

(E este rio de sangue em minhas veias
Na pressa de ser mar!!!)



* * *

Essa é a minha cruz e o meu castigo é esse:
Que solidão tão grande
E como dói o mal de não ter par!

Se a companhia se vendesse,
Eu até empenhava o próprio sangue
Para a comprar!



...

  


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