ALGUNS NOCTURNOS PARA AS MINHAS MÃOS CANSADAS (1960)



























(Alguns nocturnos para as minhas mãos cansadas, MARIA HELENA, Lisboa, 1960, 
41 páginas)






Capa, Ex-libris e desenhos de
Álvaro Duarte de Almeida







MARIA HELENA



ALGUNS NOCTURNOS
PARA AS MINHAS
MÃOS CANSADAS



Lisboa
1 9 6 0










DEDICATÓRIA



Para

SOUSA COSTA











I
Mãos! Pobres mãos cansadas de implorar
O volume do Sol para aquecê-las!
Mas na janela bate apenas luar
E o pasmo indefinido das Estrelas.

Mãos que são palmas de nenhum palmar,
Pudesse o vento, ao menos, compreendê-las!
Mas nem silêncio nem montanhas ou mar...
Nada me sonha o resplendor de tê-las.

Mãos sem raiz nem florações de verde,
Que, sendo Céu, não têm Horizonte
E vivem de morrer a própria mágoa.

Mãos! Tristes mãos de que ninguém tem sede
- Fonte a brotar da negação da fonte
Onde eternizam pensamentos de água...



II
Crepúsculos de um Sol inexistente
E vagas de maré que não têm mar,
As minhas mãos parando, devagar,
Não voltam para trás nem vão em frente.

Em ambas, qualquer medo está presente:
Ou Morte ou Vida, trevas ou luar...
Um medo intenso, sem razão nem par,
Dia a dia mais medo, mais latente.

A chuva, lenta, cai num arrepio...
Tenho os dedos molhados e com frio...
...São dez folhas caídas e amarelas.

Gotas beijam-me a carne em gestos vãos...
Não sei se a chuva é que me encharca as mãos,
Se apenas é meu pranto a chover nelas...



III
Tenho as mãos já quebradas, de vencidas;
Dedos ermos de Sol e de Amplidão.
Já mal pressinto a Vida em tantas vidas
Que me vestem de Morte cada mão.

As estradas, já todas percorridas...
O voo, sem azul nem ascensão...
Sempre a saudade atroz das coisas idas
Com o Tempo e o meu próprio coração.

De mãos abertas, sem punhal ou escudo,
Dei o Céu, dei a terra, dei o mar,
Numa alucinação que ninguém mede.

Mãos vaidosas que, de alto, deram tudo,
Agora só as sabe consolar
A humildade ajoelhada de quem pede.



IV
Por mais que o Tempo seja de veludo,
A mágoa há-de ser sempre onde eu estiver.
Mãos que se dão ao mar, à terra, a tudo,
Não são da terra nem o mar as quer.

Dei-as ao vento, ao seu abraço rudo...
À neve toda em flor de um malmequer...
Mas nada soube ouvir o apelo mudo...
Mãos todas penas... Asas de mulher!

Vêm as noites, vão-se as madrugadas
E as minhas mãos, as minhas mãos cansadas,
Morrendo à espera de um sonhado bem...

Dor infernal das minhas mãos sòzinhas:
Mãos todas noutras mãos! Menos as minhas...
Até as tuas as deixaram, Mãe! 



V
Que triste a minha vida de negada!
Que mãos tão frias! Minhas pobres mãos!
Quantos passos perdidos pela estrada!
Quantos encontros, sempre todos vãos!

Sei lá se existe ainda a madrugada
Rosando Alturas, fossos e desvãos!
Só sei, oh sei!, que sou a deserdada
Da noite, da manhã, dos meus irmãos!

Só sei que tenho mundo e tenho vida
E vida e mundo têm-me vencida
No mesmo abraço gélido e profundo.

Só sei que nesta luta em que esbravejo
Se eu pudesse viver como desejo,
Nem a vida chegava nem o mundo.



VI
Desenhador supremo desta argila
Que se fez carne por divina graça,
Deus é uma névoa na Amplidão tranquila,
Enquanto corre o Tempo e a Vida passa.

Em vão devassa o Céu minha pupila
- Céu que é agora bem, depois ameaça...
E o azul todo estremece e a luz oscila
Ante a pressão humana da devassa.

Como Deus se me esconde, também eu
Fujo do alcande do Senhor do Céu
E escondo quanto tenho e quanto sou.

Ah! que procura, em horas alongadas:
Deus busca as mãos por Ele desenhadas,
Eu quero achar o Deus que as desenhou.


VII

Penetra o Tempo todos os desvãos:
As horas passam lentas ou fugazes...
Já o Sol se fez noite em minhas mãos,
Já se perdeu o aroma dos lilases.

São cada vez mais vãos os sonhos vãos
E são as realidades mais audazes...
E os meus dedos tão débeis, tão irmãos,
De prenderem o Sol, não são capazes.

No mais completo e trágico abandono,
As folhas tombam-se em nenhum Outono...
O silêncio as naufraga, como um mar.

Sem forças já e com os dedos nus,
Bato à porta da Morte, truz, truz, truz...
Porém a Vida não me deixa entrar!



VIII

Não tenho nada! Nada que me doa
Ou que dentro de mim cante em hossanas.
Sem noite ou dia, as minhas mão humanas
- Que a Vida não me é trágica nem boa.

Falta-me a voz que reza ou amaldiçoa;
Montes sinuosos, superfícies planas;
Minutos de fervor, horas profanas,
Sonho que vem e que se vive à toa.

Não tenho nada! Água sem marés,
Sinto a terra vencida sob os pés
E a vencer-me uma abóbada intocada.

Não tenho nada! Nem calor nem frio...
Mas como a Vida assim sabe a vazio
E como dói a dor de não ter nada!



IX
Que fundo mal, tão cheio de por quê!
Que névoa densa, na manhã crescida!
A Vida é graça e bem, sonho e mercê,
E, apesar disso, como custa, a Vida!

Um terror que eu não vejo e ninguém vê
Em mim se integra e leva de corrida...
Que me importa que o corpo grite: "Sê!",
Quando eu sinto que sou, mas sou vencida!

Sem a bênção de afagos e confortos,
As minhas mãos enxugam Astros mortos
Onde o pranto nasceu e não rolou.

Agora, ninguém mais morre de mágoa,
Que havia nos meus olhos tanta água,
Que a própria Morte neles se afogou.  




X

Essas mãos que hoje tenho não são minhas.
Não conheço estes dedos alongados,
Estas palmas tão cheias de cuidados,
Da certeza da Morte tão vizinhas.

Mãos que dançaram e plantaram vinhas;
Depois colheram goivos encarnados...
Mãos de escrava, de pulsos amarrados,
Mãos livres, como livres andorinhas.

Trago um mistério fundo em cada mão...
Sei que não passo de continuação,
Que o Destino que sofro, não é meu.

Já que eu não sou princípio nem sou fim,
Depois de mim, quem viverá por mim ?
Antes de mim, quem foi que me viveu ?



XI
Abro as mãos na incerteza do momento...
Nada que valha a pena arrecadar!
Carícias breves que me fez o vento,
Aromas que me deu qualquer pomar...

Promessas que tombaram sem alento
Cansadas de insistir e de esperara...
Talvez nos dedos friuos do relento
Um sabor a brancuras de luar...

Ao pé do malde haver chorado tanto,
As mãos me tombam lívidas de espanto
Por estas mágoas em que me concentro.

E por que sei de cor minhas tristezas,
Cravo as unhas nas palmas indefesas,
Na raiva de as sentir sem nada dentro.



XII
As mãos, tinha-as cheias de ternura
E de azuis, e de sonhos e de cantos...
E dei-me inteira a cada criatura
E em troca recebi só fel e prantos.

Fui dar-me às nuvens, à maior altura...
A todos os botões... Sei lá a quantos!
E dei-me aos lamaçais da terra escura
E à luz que doira todos os recantos.

Tendo dado folhagens e raiz,
Recusaram-me os mais, nada me quis,
E eu fiquei nua no meu próprio ser.

Agora que me dei a tudo e a todos,
Desde o Infinito à podridão dos lodos,
Dentro de mim, sem mim, que hei-de fazer?!






XIII
Uma luz doida escorre do Infinito
E eu toda, deslumbrada, me alvoroço.
Sinto que posso mais do que acredito
E que acredito menos do que posso.

Oh! a vertigem de sentir bem nosso
Tanto faz o silêncio como o grito!
Oh! bem hajam as mãos com que destroço
O pranto nos meus olhos em conflito.

Hoje trago nas mãos - minhas mãos tontas! - 
Uma Estrela carnal de cinco pontas
- Remate dos meus braços de eleição.

Bendito seja Deus pela alegria
De, em vez da noite que as escurecia,
Ter uma Estrela acesa em cada mão.



XIV

Mãos que sonhos no mármore talharam
Numa frescura de algas e de limos...
Mãos que são duas asas que voaram
Na conquista magnífica dos Cimos;

Mãos que al alto se ergueram e voltaram
Sem o auxílio de amparos ou de arrimos
E que na terra, quando regressaram,
A todos deram bens, calor ew mimos...

Mãos quase astrais, de transparências raras,
Vós que tocais a cor das noites claras,
As manhãs e os seus castos apogeus;

Mãos que sois mãos ou de anjos ou de heróis,
Que afagais nuvens ou perfis de Sóis,
Poisai-vos, sem temor, nas mãos de Deus.



XV

Maio já canta a Vida em ascensão.
A chuva já morreu, de chorar tanto.
E dessa própria morte e desse pranto
É que brota a promessa do botão.

Depois, as rosas abertas em cachão
Enchem de aroma e luz cada recanto.
E um silêncio divino, quase santo,
Em toda a parte entorna uma canção.

Colo rosas à doida e a meu contento
E, enquanto as colhem minhas mãos ungidas,
São as rosas seu único prazer.

E eu não sei distinguir nesse momento
Se elas nasceram para ser colhidas,
Se fui eu que nasci para as colher.



XVI

Sonho impossíveis, eu bem sei que sim!
Quero a Vida cinsiante a imagino:
Dentro da alma, um anseio que é divino...
No meu corpo, um desejo sem confim.

Trava-se a luta, hercíela, dentro em mim,
Não sei se por vontade ou por destino.
Sei que enquanto a minha alma canta um hino,
A carne grita, sôfrega e ruim.

A altura, essa me chega das raízes;
Porém o corpo, aberto a cicatrizes,
Tem direitos humanos e pagãos.

Assim me passa a Vida sempre incalma,
Ao hino que é de menos em minha alma
E ao grito que é de mais nas minhas mãos.


XVII

Já liberto das trevas e da cruz
Que o sufocavam num abraço ardente,
Hoje o dia acordou golfando luz
- Hemoptise de um Sol adolescente.

Vestiram-se de cor os longes nus
E cobriu-se de sonho toda a gente...
E o mundo vibra, alteia-se e reluz,
Cada hora mais dia e mais contente.

Florescem rosas tontas de perfumes...
Nas alturas dos Céus florescem lumes...
Tudo floresce, numa exaltação.

Entre a loucura bárbara e feliz,
Até meus dedos ermos de raiz
Se abriram numa flor de solidão.


XVIII

Com minhas mãos afago os Céus distantes:
A cor da aragem, o perfil dos Astros,
Enquanto o corpo, tão ousado dantes,
Isento de ascensão, fica de rastros.

Um tom divino e azul nesses instantes
Me veste as mãos, erectas como os mastros,
Fazendo-as esquecer águas cantantes,
Peso do lenho, aroma dos mentastros.

As minhas mãos, que os outros não quebrantam,
Riem, latejam, brilham, rezam, cantam,
Ao esplendor dos mais altos fogaréus.

Depois... Ah! mãos cansadas desta guerra:
Como eu as sinto ainda mais de terra,
Quando regressam de afagar os Céus!



XIX

Na escuridão pregada numa cruz
Por um luar que mais e mais se alteia,
São minhas mãos crisântemos de luz
Abertos no jardim da Lua-cheia.

Em tom maior, cantam-me os dedos nus
Não sei que estranha e clara melopeia...
E eu que escuto a canção, nada a traduz,
Fechada, como está, em cada veia.

Afeitas ao ergástulo do pranto,
As minhas pobres mãos tremem de espanto
Libertas pelas mãos de uma luz sã.

Logo, nas minhas mãos já sem segredos,
Vibra agora, na noite dos meus dedos,
Uma oculta promessa de manhã.



XX

Sem ti, ó Sol, as minhas mãos tão frias
Morreriam da neve que as abraça.
Sem ti, seriam noite os próprios dias,
Roubando o fruto à flor e à flor a graça.

Os meus dedos, cansados de agonias,
De tanta hora cada vez mais baça,
Tombariam à míngua de alegrias
Numa vida que vem e logo passa.

Assim, na cor vibrante que as invade,
As minhas duas mãos em claridade
Latejam oiro, espedaçando a treva.

Ó Sol: sempre serás, na minha fome,
O divino clarão que me consome,
O caminho da luz que a Deus me leva.



XXI

Qualquer coisa de mim há-de ficar
Insepulta num canto do universo...
Talvez uma pressão do meu olhar,
Talvez a carne musical de um verso.

Qualquer coisa de mim há-de ficar:
Cabelo às ondas pelo mar disperso,
Gesto das mãos -  das minhas mãos sem par - 
Meu Destino tão longo e tão adverso.

Talvez as mágoas que hoje se condensam...
Calor em cruz da derradeira bênção...
O pó da estrada que levou meus pés.

Sei lá! Talvez que ao fundo da paisagem
Fique o meu sangue humano a dar coragem
Às veias vegetais dos aloés.




EPÍLOGO



XXII

Antes que tudo morra de tristeza
E as coisas desta vida ponham luto...
Antes que o mar imenso fique enxuto
E se apague no Céu a Lua acesa...

Antes que falte o pão em cada mesa
E tombe no pomar o último fruto
E o látego de um vento resoluto
Sem compaixão castigue a Natureza...

Antes que as minhas mãos fiquem mais tristes,
Mais cansadas e frágeis e tão nuas
Como as ervas rasteiras e singelas,

Amor que inda não tenho, mas que existes,
Ri ao prenderes minhas mãos nas tuas,
Já que eu tanto chorei por causa delas.






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