(POESIA, J.G. de Araujo Jorge & Maria Helena,
Casa Editôra Vecchi Ltda, Rio de Janeiro, 1a. edição, 1959, 165 páginas)
(POESIA, J.G. de Araujo Jorge & Maria Helena,
Casa Editôra Vecchi Ltda, Rio de Janeiro, 3a. edição, 1966, 171 páginas)
ESTE LIVRO TEM UMA HISTÓRIA
(por J. G. de Araujo Jorge
20-05-1914-Tarauacá, Acre - 27-01-1987-Rio de Janeiro)
(por J. G. de Araujo Jorge
20-05-1914-Tarauacá, Acre - 27-01-1987-Rio de Janeiro)
Foi no mês de Outubro de 1955 que recebi em meio à minha correspondência, um punhado de belos poemas, mandados de Portugal. Os poemas vinham datados de 20 de Setembro, e assinava-os um pseudônimo: "Musa Triste". No verso do envelope um curioso enderêço: Chalet Althair, Monte Estoril, Lisbôa."
Quem será "Musa Triste", pensei. E escrevi e publiquei na ocasião, uma pequena crônica para assinalar o fato. Transcrevo-a, porque faz parte da história, e posso considerá-la mesmo como o seu primeiro capítulo. Ei-la:
I
QUEM SERÁ "MUSA TRISTE?"
Quase tôdas as manhãs, encontro sôbre a minha mesa duas ou três cartas. E confesso que o dia me parece diferente se acaso fica em branco, se elas não chegam. Nesses dias releio às vêzes as que falaram mais de perto ao meu espírito e ao meu coração.
(...) A alegria dêstes encontros ao acaso, com almas e espíritos que captaram o esperanto da minha poesia, é como a de alguém que em país estranho, ouve um conterrâneo falar a sua língua, recordar a sua paisagem, identificar nas lembranças de amor os mesmos sêres e e coisas.
"Musa Triste" foi o meu último encontro. Hoje sei, pela revoada de poemas que já mandou, que se trata de uma grande poetisa portuguêsa. Mas persiste em se esconder no pseudônimo.
Não posso dilatar os limites desta crônica. Vou citar entretanto um dos seus poemas. Trata-se de uma resposta ao poemeto "Sôbre a alegria" que se encontra em meu livro "Amo!":
SÔBRE A ALEGRIA...
(J. G. de Araujo Jorge)
(Deliciosa ironia!
Acaso alguma vez também já te espantaste
quando riste?
Pois bem, minha alegria
é às vezes uma exótica maneira
de ser triste!
E o poema de "Musa Triste" que acompanhou, com outros, a sua carta:
Irmão que vives para além do mar
afastado de mim por tantos nós;
que tens na alma a alma do luar
e nas veias o sangue dos cipós;
irmão que segues de olhos deslumbrados
e não vês risas sem poder colhê-las,
e trazes nos cabelos desmanchados
a carícia noturna das estrêlas;
tu, que tens os sentidos bem despertos
e uma chama a pulsar no coração
e enches todo o silêncio dos desertos
com o grito escaldante do sertão;
tu, que te levas por caminhos sábios
e que não andas pelo mundo à-tôa
e mataste a secura dos teus lábios
beijando os lábios frescos da garoa;
tu, que não te naufragas em cansaços
nem receias surprêsas na viagem
e tens no ritmo aéreo dos teus passos
a musical cadência da folhagem;
tu, que sonhas à margem dos escombros
e dos loucos vasios de ideal
e que apenas suportas nos teus ombros
o pêso da loucura tropical,
irmão: se mesmo quando a dor te assiste
abres na bôca o riso de uma aurora,
já que eu só sei chorar quando estou triste
vem-me ensinar a rir quando se chora!
("Musa Triste")
***
"Musa Triste" se servia dos meus versos para inspirar-se tomando-os, às vêzes, como motes, e cada um dos seus trabalhos era uma espécie de resposta ou de glosa, aos meus poemas.
O grifo é meu. Não é uma beleza? Quando se pode, com a poesia, inspirar tais versos, então corre-se o risco de se pensar que realmente está justificado o nosso destino.
Na sua primeira remessa ela respondia a "Ideal de amor", "Sôbre a alegria" e "Eu te queria tão diferente", poesias do livro "Amo!"
Agradecendo-lhe o interêsse pela minha obra, mandei-lhe exemplares de outros livros. Ela escreveu-me então a sua primeira carta. Aqui a transcrevo para que os leitores acompanhem mais um capítulo da história:
Agradecendo-lhe o interêsse pela minha obra, mandei-lhe exemplares de outros livros. Ela escreveu-me então a sua primeira carta. Aqui a transcrevo para que os leitores acompanhem mais um capítulo da história:
II
A PRIMEIRA CARTA
III
Confirmava-se, portanto, a minha primeira impressão. A sua poesia, a prosa da sua correspondência, denunciavam uma escritora dona de seu instrumento de comunicação, com uma forte personalidade, amadurecida pela vida. Convenci-me logo de que se tratava não apenas de uma grande poetisa portuguêsa, mas da mais alta expressão do lirismo português de nossos dias. Além do domínio absoluto da linguagem, da densidade lírica, da riqueza de vocabulário, da espontaneidade do canto, havia principalmente poesia em tudo o que me mandava. Poesia, essa coisa sem explicação, emoção primária e superior, sem definição, que queima como fogo, ilumina como luz, emociona como o amor.
E não podia evitar que uma lisonjeira emoção me empolgasse, pelo fato de saber que os belos poemas que de longe me chegavam às mãos, batiam asas para seu largo vôo, da terra estreita da minha poesia.
Repreendi-me pelo desleixo de minhas leituras literárias. Não conseguia identificá-la nem pelo estilo, nem pelas características de sua criação. Para mim, os grandes poetas modernos de Portugal eram quase todos homens, de Cezario Verde a Fernando Pessoa. Está claro que se estivesse a par da vida intelectual portuguêsa contemporânea, não poderia ter dificuldades em levantar o véu que lhe velava as feições literárias. Para tanta beleza, bastaria os olhos a descoberto, e eu deveria adivinhar o resto.
Consultei os exemplares da poesia moderna portuguesa em minha estante. Nada. E quando afinal, mais tarde ela revelou sua identidade, admirei-me de que sua obra não figurasse nas coletâneas e antologias. Seu nome não se encontra, por exemplo, nas "Líricas Portuguesas", (1a. e 2a. séries) compiladas por José Régio e Cabral Nascimento. E o que é de admirar, uma grande poetisa brasileira, Cecília Meirelles, cometeu a mesma injustiça, não incluindo seus poemas, na seleção que publicou sob o título: de "Poetas Novos de Portugal". Por quê?
Cheguei à conclusão, comigo mesmo, que em Portugal, como no Brasil, a literatura vive em função de grupos e "igrejinhas", mais ou menos fechados, espécie de "ação entre amigos." Aqui, para citar o meu caso, a não ser nas Antologias preparadas pela Casa Editôra Vecchi, isto é, o meu editor, não figuro em nenhum trabalho no gênero. Não poderia talvez aspirar a inclusão do meu nome numa obra pomposa como a antologia de Manuel Bandeira "Obras Primas da Lírica Brasileira", onde aliás se incluiu, não apenas por ser primo, mas por ser o autor mesmo da obra) mas as seleções, coletâneas, boletins biobibliográficos, fazem absoluta questão de desconhecer a minha presença literária. Constato apenas o fato.
Enquanto o povo sabe de cor os meus versos; enquanto minhas poesias se multiplicam espontâneamente nos albuns e cadernos de poesia dos moços, são difundidas intensamente em programas literários por emissoras de todo o Brasil; são declamadas nos recitais; enquanto meus livros se encontram com 11, 12, 13 edições, totalisando mais de 1 milhão de exemplares vendidos, e têm tiragens de 10 mil exemplares; êles me sabotam, tentam silenciar-me, e inventam críticas (êles que não me lêem) e pretendem diminuir-me com afirmações curiosas, que até me lisonjeiam: "é o poeta das môças", "sua poesia se vende", e quejandas.
Quando, inclusive, com a minha poesia política, lutava isoladamente no Brasil contra o fascismo de casa, e publicava livros como "O Canto da Terra" e "Estrêla da Terra", êles faziam silêncio... ou rondós aos cavalinhos e aos sabonetes...
Mas, voltemos à "Musa Triste".
De qualquer forma me censurei por não conseguir identificá-la. Afinal, verificaria depois: ela tem publicados 14 livros (13 de poesia) e sua obra chega às livrarias brasileiras que importam livros europeus.
Tão atarefada, entretanto, continua a minha vida, às voltas com as mais prosaicas atividades, que não encontrei outro remédio senão solicitar-lhe que retirasse espontâneamente o véu, para que pudesse conhecê-la. Bem que pensei em Florbela Espanca, que transbordara a ardente inspiração em páginas de intensa e incontida beleza - interrompera bruscamente seu itinerário em 1930. Tratava-se evidentemente de uma outra florbela, flor da poesia, igualmente bela na exuberância do estro, na fôrça das revelações, deslumbrada às vêzes, outras vêzes intimidada com a vida.
Porque a grande poetisa que me escrevia, bem poderia ter sido a autora daqueles tercetos de "Ambiciosa":
"Minha alma é como a pedra funerária
erguida na montanha solitária,
interrogando a vibração dos céus.
O amor dum homem? Terra tão pisada,
gôta de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? Quando eu quero o amor dum Deus!"
Ou daqueles outros tercetos, dedicados ao santo e poeta de Assis, "Il Poverello":
"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã água..."
Ah! Poverello! Em mim, essa lição,
perdeu-se como vela em mar de mágoa
batida por furiosos vendavais!
Eu fui na vida a irmã de um sói irmão,
e já não sou a irmã de ninguém mais!"
Cito Florbela Espanca intencionalmente. Não poderia pensar em Fernanda de Castro, em Natércia Freire, —— ou qualquer outra poetisa moderna de Portugal,—— pois apresentam estilos bem diversos. Poderia pensar talvez em Virgínia Victorino. A poetisa de "Musa Triste" era mais forte, uma espécie de fusão das duas, Florbela Espanca e Virgínia Victorino: a força dramática da primeira, a espontâneidade lírica da segunda. Mas ao lê-la, foi em Florbela Espanca que pensei. Eram as mesmas as medidas das asas, do coração, da alma.
Na poesia que me chegava imprevistamente, e se escondia, encontrava a mesma angústia, a mesma tristeza, a mesma forte expressão.
E algo mais. Sua inspiração era um pêndulo a oscilar entre a vida e o sonho, entre o Ser e o Não-Ser. Enclausurada ——, sei lá por que estranhas grades, —— seu verso é fuga e penitência. Uma oração profana, pelo que deseja; mística e dolorosa, pelo que renuncia.
Mando-lhe agora êstes 14 versos:
Por vêzes, sua poesia me dá a impressão de um mero jôgo de palavras. De uma alma a fazer prestidigitação para si própria, como quem quer apenas criar distrações para as atribulações do espírito ou os tédios inevitáveis. Mas convenci-me - mais atento - que as palavras não são apenas as pedras de um jôgo inconseqüente. Há raízes sob elas, palpitam, não têm culpa de sua exuberância, de seu colorido, de sua musicalidade.
Nesta época de versos frouxos e frouxa inspiração, a poesia de "Musa Triste" é tensa como uma corda distendida. E, tocada, ainda que de leve, vibra nítida, inconfundível, com a beleza das notas tiradas por dedos de "virtuoso" em privilegiado instrumento.
O que admira em sua obra, não é tanto a naturalidade de coisa que nasce, cresce, corre, canta, como planta, como água, como nuvem, como pássaro. É a tessitura forte, dentro da espontâneidade, a contextura densa de todos os seus versos. O artífice e o impulso criador se fundem na obra de tal modo que é impossível distingui-los. E sua arte independe de qualquer esfôrço, como independem dos cristais as leis de cristalografia.
E que perdulária de imagens! Esbanja as mais belas figurações, como quem estivesse apenas brincando com as palavras, despercebida das formas e dimensões que nascem de seu espírito. Plasma em símbolos como se trabalhasse com areia. E, - oh! milagre da fôrça criadora! - uma vez plasmadas, as imagens de areia ganham a solidez, a beleza e o brilho do mais fino mármore, e da imortalidade.
Por isto lhe perguntou, seu velho amigo e mestre Teixeira de Pascoais. - "Que dizer-lhe dêstes poemas - "Para além da Vida?" Que são a única obra poética dramática depois, no tempo, dos sonetos de Antero."
Não me furto ao desejo de citar um sonêto seu, do último livro "E a carne se fêz verbo!", que é para mim um dos trabalhos que melhor a definem, por dentro e por fora, no conteúdo e no continente, na alma e na arte.
Tinha razão Teixeira de Pascoais!
Em fevereiro de 1956, recebi sua segunda carta. Nova messe de louros e ricos poemas colhidos sôbre a terra magra da minha poesia. Desta vez eram respostas a "Lirismo", "Sonêto a Ariel", "Naturismo", "Colegial", todos do livro "Amo!", e a "Canção do meu abandono", do livro "Festa de Imagens". Mandou-me também dois esplêndidos sonetos:"Adagino" e "Depois da leitura dos teus versos", os quais, me informaria posteriormente, foram inspirados pela leitura da série de sonetos: "Variações sôbre um tema banal", do livro: "Festa de Imagens".
Eis a segunda carta:
Houve então um longo, mas explicável silêncio em nossa correspondência. Certifiquei-me, dois anos após, quando lhe escrevi novamente, que minha carta anterior se extraviara.
Publicando meu último livro "A Sós", mandei-lhe um exemplar. E na carta que acompanhava o volume, pedia-lhe duas coisas: que não persistisse escondida em seu pseudônimo, e que me autorizasse a apresentá-la aos meus leitores e amigos do Brasil, publicando seus versos e os meus num mesmo volume. A idéia me ocorrera enquanto lhe escrevia, e me pareceu interessante. Afinal, os trabalhos que me mandava, e que não sei se cogitaria de incluir em algum livro, mereciam maior divulgação. Não seria suficientemente egoísta para aprisionar as alegrias que me proporcionaram. E as minhas leitoras, - pensei nelas, - elas principalmente haveriam de gostar de uma poesia, nascida numa alma de mulher, paràfrase de minha poesia, que elas tanto têm distinguido.
Sugeri então a "Musa Triste", vários títulos para que escolhesse um, no caso de concordar com a idéia. Mandei-lhe: "Dueto lírico", "Canto e contra canto", "Canção a duas vozes" e "Concêrto a 4 Mãos". Ela escolheu o último. E foi assim que mais uma vez, como no versículo bíblico, o último ficou sendo o primeiro. E êste livro se chamou de "Concêrto a 4 Mãos".
Quando novamente me escreveu, ela se revelou finalmente Maria Helena. Mandou-me vários de seus livros e um folheto publicado pela Portugalia Editôra, com a relação de suas obras, e opiniões de escritores portuguêses e brasileiros sôbre a sua poesia. "Musa Triste" estava agora, não apenas com os olhos a descoberto, mas com a face que Deus lhe deu.
Transcrevo mais uma de suas cartas, retirando-lhe apenas o pedido inicial onde se refere à doença grave em pessoa da família, fato que a preocupava e a absorvia inteiramente.
—— Eis aí, através de três cartas e alguns comentários, a história dêste livro. Um poeta do Brasil, dos menores, dos mais silenciados nas tôrres altas, feliz, porém, porque dos mais festejados nas praças e nas ruas, foi despertar na alma de uma grande poetisa portuguesa belos e imortais acordes. Milagre da poesia.
Seus versos bateram asas, de inóspita ilha, como perdida gaivota, e foram procriar altos cantos em horizontes distantes, em terras imprevistas.
(Para José Guilherme)
Egoísmo
Não compreendo que tragas um passado,
tu devias esperar-me
devias adivinhar que eu chegaria em tua vida...
Não devias trazer na beleza tristonha
dos teus olhos castanhos
vultos estranhos;
nem nas tuas mãos, inquietas como folhagens
invisíveis tatuagens
como rastros de carícias que passaram;
essa unidade das flôres
que já desabrocharam...
Queria que as tuas mãos fôssem fôlhas em branco
à espera da minha inspiração;
que os teus olhos fôssem ingênuos como os das crianças
ingênuos como a expressão da tua face;
e a tua bôca, —— uma fruta de vez
que o pássaro do desejo respeitasse...
Eu queria que a tua alma, numa perpétua festa,
fôsse irmã daquela fonte muito clara, muito límpida,
que mora na floresta...
Não compreendo que tragas um passado
que te lembres de cousas que eu não sei
nem que tragas vestígios de outro amor
em teu olhar,
—— não te perdôo nunca o não teres adivinhado
que nasceste afinal, só para sêres minha
e que eu havia de te encontrar...
...........................................................................................
E eu que sou teu presente e serei teu futuro
sinto-me paradoxalmente amargurado,
com êste egoísmo pueril... e êste ciúme doentio
do teu passado...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Ideal de amor
Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu...
Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
àquela que procuro e que há de ser só minha...
Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestógio de afeição sequer...
—— se para êle eu não fôr o seu sonho primeiro,
desde já renuncio a outro lugar qualquer...
Sòmente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor sòmente assim posso sentir...
—— hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esprança feliz que doure o seu porvir...
Para um perfeito ideal... para encher minha vida
ser tôda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquêle amor que um dia não foi meu!
Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
—— para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!...
J. G. (Do livro "Amo!")
Eu te queria tão diferente...
Há muito eu te esperava...
Mas eu queria que quando chegasses
trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua bôca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fôssem como as fôlhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fôsse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sôbre a terra as águas não correu...
E tu chegaste...
Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua bôca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que
[murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vêzes me parece pálida e amarela,
como uma fôlha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
.....................................................
Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como um louco
um doente.
encontro em teu amor, às vêzes casualmente,
os restos de outro amor!
J. G. (Do livro "Amo!")
Naturismo
Foi aprendendo a ler que aprendi a pensar
e hoje pelo pensar sou um degenerado,
—— já foi puro o meu ser, tal como luz e o ar,
como o ar e a luz de um céu sereno e descampado...
Bem que podia ter êsse olhar encantado
do homem que não sabia onde parava o Mar...
Sendo bruto, talvez eu me fizesse amado!
Bruto, —— que importa!? —— ao menos poderia amar!
Teria por meu templo o côncavo profundo
dos céus, e a religião que acaso professasse
correria sem deuses, livre, pelo mundo...
No pedestal da ciência: —— a beleza sem véus!
E o mais sábio seria o ignorante que amasse
a música da terra e a poesia dos Céus!
J. G. (Do livro "Amo!")
Não, depois de te amar não posso amar ninguém!
Que importa se as ruas estão cheias de mulheres
esbanjando beleza e promessas
ao alcance da mão?
Se tu já não me queres
é funda e sem remédio a minha solidão.
Era tão fácil ser feliz quando estavas comigo!
Quantas vêzes, sem motivo nenhum, ouvi teu riso
rindo feliz, como um guiso
em tua bôca?
E todo momento
mesmo sem te beijar eu te estava beijando:
—— com as mãos, com os olhos, com o pensamento, numa ansiedade louca!
Nossos olhos, meu Deus! nossos olhos, meus
nos teus,
os teus
nos meus,
se misturavam confundundo as côres
ansiosos como os olhos
que se dizem adeus...
Não era adeus, no entanto, o que estva em teus olhos
e nos meus,
era êxtase, ventura, infinito, langor,
era uma estranha, uma esquisita, uma ansiosa mistura
de ternura com ternura
no mesmo olhar de amor!
Ainda ontem, cada instante era uma nova espera...
Deslumbramento, alegria exuberante
e sem limite...
E de repente,
de repente eu me sinto triste como um velho muro
cheio de hera
embora a luz do sol num delírio palpite!
Não, depois de te amar não posso amar ninguém!
Podia até morrer, se já não há belezas ignoradas
quando inteira te despi,
nem alegrias incalculadas
depois das que senti...
Depois de te aamar assim, como um deus, como um louco,
nada me bastará, e se tudo é tão pouco...
... eu devia morrer...
Sonêto a Ariel
Arquiteto do sonho, escultor da Poesia,
desenhei num projeto de ilusão dourada,
o templo de cristal da minha fantasia
à beira de uma fonte irrequieta e encantada.
Ergo o meu templo ao alto, sôbre a escadaria
das minhas emoções —— e o mármore da escada
é rubro, —— e vou fazendo essa obra, na alegria
do sonho, e na tristeza da alma já cansada...
Há colunas de pé, hieráticas, serenas,
relembrando a visão do Partenon de Atenas
num tempo em que os heróis eram deuses no céu...
E quem entra, percebe, no interior em calma,
o esbôço de uma estátua, onde plasmo a minha alma
feota apenas de luz... como a estátua de Ariel!
J. G. (Do livro "Amo!")
Menina dos olhos verdes
Ó menina dos olhos verdes que `tardinha
estás sempre à janela à hora da minha volta...
Que cousas pensarás? Que fazes aí sòzinha?
Por que regiões de sonho a tua alma se solta?
Sempre que dobro a esquina encontro o teu olhar
e o teu claro sorriso adolescente ainda...
Habituei-me a te ver, —— e és tão criança e tão linda
que sem querer, também, sorrio ao te encontrar...
Menina dos olhos verdes... A quem esperas
com teus olhos gritando a côr das primaveras?
Queres versos? Pois bem,êstes são teus, recolhe-os!
Escrevi-os pensando em ti, tímida e bela,
—— a menina dos olhos verdes da janela
debruçada à janela verde dos meus olhos.
J. G. (Do livro "Amo!")
Caminhos...
Nos teus lábios há dois beijos,
nas tuas mãos há dois ninhos,
nos teus olhos: dois desejos,
no teu destino: caminhos...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Traição
O teu rosto é puro e oval
imaterial como o luar...
—— o que te trai afinal
é o teu olhar...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Elegia
Ontem
dando-te o verde dos meus olhos,
quis pintar de esperança o nosso sonho
que hoje morre... sem côr...
Dá-me, pois, o negro dos teus olhos,
quero vestir de luto o nosso sonho
de amor...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Pensamento
Hoje, na nossa grande felicidade luminosa,
descobri em meu pensamento uma única nuvem
talvez:
—— "Que pena, meu amor, nunca mais poder te olhar
[com os olhos
da primeira vez...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Instantâneo no. 1
Há por certo inconsciência, maldade, ironia,
no destino que um dia cruza duas vidas
e alheio a uma tragédia imensa:
—— põe numa, uma grande amor,
e noutra, a indiferença!
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Dúvida
E êle tinha uma vontade louca de segurar as ondas
no seu vaivém...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
E não podia evitar que uma lisonjeira emoção me empolgasse, pelo fato de saber que os belos poemas que de longe me chegavam às mãos, batiam asas para seu largo vôo, da terra estreita da minha poesia.
Repreendi-me pelo desleixo de minhas leituras literárias. Não conseguia identificá-la nem pelo estilo, nem pelas características de sua criação. Para mim, os grandes poetas modernos de Portugal eram quase todos homens, de Cezario Verde a Fernando Pessoa. Está claro que se estivesse a par da vida intelectual portuguêsa contemporânea, não poderia ter dificuldades em levantar o véu que lhe velava as feições literárias. Para tanta beleza, bastaria os olhos a descoberto, e eu deveria adivinhar o resto.
Consultei os exemplares da poesia moderna portuguesa em minha estante. Nada. E quando afinal, mais tarde ela revelou sua identidade, admirei-me de que sua obra não figurasse nas coletâneas e antologias. Seu nome não se encontra, por exemplo, nas "Líricas Portuguesas", (1a. e 2a. séries) compiladas por José Régio e Cabral Nascimento. E o que é de admirar, uma grande poetisa brasileira, Cecília Meirelles, cometeu a mesma injustiça, não incluindo seus poemas, na seleção que publicou sob o título: de "Poetas Novos de Portugal". Por quê?
* * *
Cheguei à conclusão, comigo mesmo, que em Portugal, como no Brasil, a literatura vive em função de grupos e "igrejinhas", mais ou menos fechados, espécie de "ação entre amigos." Aqui, para citar o meu caso, a não ser nas Antologias preparadas pela Casa Editôra Vecchi, isto é, o meu editor, não figuro em nenhum trabalho no gênero. Não poderia talvez aspirar a inclusão do meu nome numa obra pomposa como a antologia de Manuel Bandeira "Obras Primas da Lírica Brasileira", onde aliás se incluiu, não apenas por ser primo, mas por ser o autor mesmo da obra) mas as seleções, coletâneas, boletins biobibliográficos, fazem absoluta questão de desconhecer a minha presença literária. Constato apenas o fato.
Enquanto o povo sabe de cor os meus versos; enquanto minhas poesias se multiplicam espontâneamente nos albuns e cadernos de poesia dos moços, são difundidas intensamente em programas literários por emissoras de todo o Brasil; são declamadas nos recitais; enquanto meus livros se encontram com 11, 12, 13 edições, totalisando mais de 1 milhão de exemplares vendidos, e têm tiragens de 10 mil exemplares; êles me sabotam, tentam silenciar-me, e inventam críticas (êles que não me lêem) e pretendem diminuir-me com afirmações curiosas, que até me lisonjeiam: "é o poeta das môças", "sua poesia se vende", e quejandas.
Quando, inclusive, com a minha poesia política, lutava isoladamente no Brasil contra o fascismo de casa, e publicava livros como "O Canto da Terra" e "Estrêla da Terra", êles faziam silêncio... ou rondós aos cavalinhos e aos sabonetes...
* * *
Mas, voltemos à "Musa Triste".
De qualquer forma me censurei por não conseguir identificá-la. Afinal, verificaria depois: ela tem publicados 14 livros (13 de poesia) e sua obra chega às livrarias brasileiras que importam livros europeus.
Tão atarefada, entretanto, continua a minha vida, às voltas com as mais prosaicas atividades, que não encontrei outro remédio senão solicitar-lhe que retirasse espontâneamente o véu, para que pudesse conhecê-la. Bem que pensei em Florbela Espanca, que transbordara a ardente inspiração em páginas de intensa e incontida beleza - interrompera bruscamente seu itinerário em 1930. Tratava-se evidentemente de uma outra florbela, flor da poesia, igualmente bela na exuberância do estro, na fôrça das revelações, deslumbrada às vêzes, outras vêzes intimidada com a vida.
Porque a grande poetisa que me escrevia, bem poderia ter sido a autora daqueles tercetos de "Ambiciosa":
"Minha alma é como a pedra funerária
erguida na montanha solitária,
interrogando a vibração dos céus.
O amor dum homem? Terra tão pisada,
gôta de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? Quando eu quero o amor dum Deus!"
Ou daqueles outros tercetos, dedicados ao santo e poeta de Assis, "Il Poverello":
"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã água..."
Ah! Poverello! Em mim, essa lição,
perdeu-se como vela em mar de mágoa
batida por furiosos vendavais!
Eu fui na vida a irmã de um sói irmão,
e já não sou a irmã de ninguém mais!"
Cito Florbela Espanca intencionalmente. Não poderia pensar em Fernanda de Castro, em Natércia Freire, —— ou qualquer outra poetisa moderna de Portugal,—— pois apresentam estilos bem diversos. Poderia pensar talvez em Virgínia Victorino. A poetisa de "Musa Triste" era mais forte, uma espécie de fusão das duas, Florbela Espanca e Virgínia Victorino: a força dramática da primeira, a espontâneidade lírica da segunda. Mas ao lê-la, foi em Florbela Espanca que pensei. Eram as mesmas as medidas das asas, do coração, da alma.
Na poesia que me chegava imprevistamente, e se escondia, encontrava a mesma angústia, a mesma tristeza, a mesma forte expressão.
E algo mais. Sua inspiração era um pêndulo a oscilar entre a vida e o sonho, entre o Ser e o Não-Ser. Enclausurada ——, sei lá por que estranhas grades, —— seu verso é fuga e penitência. Uma oração profana, pelo que deseja; mística e dolorosa, pelo que renuncia.
Mando-lhe agora êstes 14 versos:
Tu que por crenças vãs a Vida arrasas
e ante o espelo não queres ver quem és,
que imaginas viver abrindo as asas
e te esqueces de andar com os próprios pés...
Que transformas o Sonho num revés
mesmo a acender o fogo em que te abrasas,
e te algemas as mãos, as mãos escravas,
como as dos prisioneiros das galés.
Tu que te enganas a falar de alturas
com as palavras mais belas e mais puras
e te imolas num gesto superior,
não percebes, nessa ânsia de suicida,
que nada há enfim mais alto do que a Vida
quando a erguemos nas mãos, ébrios de amor!
Por vêzes, sua poesia me dá a impressão de um mero jôgo de palavras. De uma alma a fazer prestidigitação para si própria, como quem quer apenas criar distrações para as atribulações do espírito ou os tédios inevitáveis. Mas convenci-me - mais atento - que as palavras não são apenas as pedras de um jôgo inconseqüente. Há raízes sob elas, palpitam, não têm culpa de sua exuberância, de seu colorido, de sua musicalidade.
Nesta época de versos frouxos e frouxa inspiração, a poesia de "Musa Triste" é tensa como uma corda distendida. E, tocada, ainda que de leve, vibra nítida, inconfundível, com a beleza das notas tiradas por dedos de "virtuoso" em privilegiado instrumento.
O que admira em sua obra, não é tanto a naturalidade de coisa que nasce, cresce, corre, canta, como planta, como água, como nuvem, como pássaro. É a tessitura forte, dentro da espontâneidade, a contextura densa de todos os seus versos. O artífice e o impulso criador se fundem na obra de tal modo que é impossível distingui-los. E sua arte independe de qualquer esfôrço, como independem dos cristais as leis de cristalografia.
E que perdulária de imagens! Esbanja as mais belas figurações, como quem estivesse apenas brincando com as palavras, despercebida das formas e dimensões que nascem de seu espírito. Plasma em símbolos como se trabalhasse com areia. E, - oh! milagre da fôrça criadora! - uma vez plasmadas, as imagens de areia ganham a solidez, a beleza e o brilho do mais fino mármore, e da imortalidade.
Por isto lhe perguntou, seu velho amigo e mestre Teixeira de Pascoais. - "Que dizer-lhe dêstes poemas - "Para além da Vida?" Que são a única obra poética dramática depois, no tempo, dos sonetos de Antero."
Não me furto ao desejo de citar um sonêto seu, do último livro "E a carne se fêz verbo!", que é para mim um dos trabalhos que melhor a definem, por dentro e por fora, no conteúdo e no continente, na alma e na arte.
Tinha razão Teixeira de Pascoais!
A carne, nem violenta nem altiva;
os olhos, até onde o olhar permite,
ponho a teus pés minha alma em carne viva
e tôda a crença que nessa alma habite.
Ando no mundo aos tombos, à deriva
sem encontrar alguém que me limite,
e por ti chamo, numa rogativa,
e tu ficas alheio ao meu convite.
Deus que moras tão longe e lá tão alto,
dissipa-me e incerteza e o sobressalto
e rasga as trevas deste negro véu.
Responde à minha voz molhada em ânsia
e acaba de uma vez com a distância
que separa o meu barro do teu céu.
IV
"MUSA TRISTE": MARIA HELENA
Em fevereiro de 1956, recebi sua segunda carta. Nova messe de louros e ricos poemas colhidos sôbre a terra magra da minha poesia. Desta vez eram respostas a "Lirismo", "Sonêto a Ariel", "Naturismo", "Colegial", todos do livro "Amo!", e a "Canção do meu abandono", do livro "Festa de Imagens". Mandou-me também dois esplêndidos sonetos:"Adagino" e "Depois da leitura dos teus versos", os quais, me informaria posteriormente, foram inspirados pela leitura da série de sonetos: "Variações sôbre um tema banal", do livro: "Festa de Imagens".
Eis a segunda carta:
V
CONCÊRTO A 4 MÃOS
Publicando meu último livro "A Sós", mandei-lhe um exemplar. E na carta que acompanhava o volume, pedia-lhe duas coisas: que não persistisse escondida em seu pseudônimo, e que me autorizasse a apresentá-la aos meus leitores e amigos do Brasil, publicando seus versos e os meus num mesmo volume. A idéia me ocorrera enquanto lhe escrevia, e me pareceu interessante. Afinal, os trabalhos que me mandava, e que não sei se cogitaria de incluir em algum livro, mereciam maior divulgação. Não seria suficientemente egoísta para aprisionar as alegrias que me proporcionaram. E as minhas leitoras, - pensei nelas, - elas principalmente haveriam de gostar de uma poesia, nascida numa alma de mulher, paràfrase de minha poesia, que elas tanto têm distinguido.
Sugeri então a "Musa Triste", vários títulos para que escolhesse um, no caso de concordar com a idéia. Mandei-lhe: "Dueto lírico", "Canto e contra canto", "Canção a duas vozes" e "Concêrto a 4 Mãos". Ela escolheu o último. E foi assim que mais uma vez, como no versículo bíblico, o último ficou sendo o primeiro. E êste livro se chamou de "Concêrto a 4 Mãos".
Quando novamente me escreveu, ela se revelou finalmente Maria Helena. Mandou-me vários de seus livros e um folheto publicado pela Portugalia Editôra, com a relação de suas obras, e opiniões de escritores portuguêses e brasileiros sôbre a sua poesia. "Musa Triste" estava agora, não apenas com os olhos a descoberto, mas com a face que Deus lhe deu.
* * *
* * *
—— Eis aí, através de três cartas e alguns comentários, a história dêste livro. Um poeta do Brasil, dos menores, dos mais silenciados nas tôrres altas, feliz, porém, porque dos mais festejados nas praças e nas ruas, foi despertar na alma de uma grande poetisa portuguesa belos e imortais acordes. Milagre da poesia.
Seus versos bateram asas, de inóspita ilha, como perdida gaivota, e foram procriar altos cantos em horizontes distantes, em terras imprevistas.
J. G. DE ARAUJO JORGE
Março, 1959
Nova Friburgo - Brasil
(Cantão de Itoroquem)
PÓRTICO
Pela publicação dêste livro recebi
de Maria Helena o belo sonêto
que inclui como "Pórtico" a partir
da segunda edição.
J. G.
AÇÃO DE GRAÇAS
(Para José Guilherme)
Depois de tantas dúvidas custosas
—— Já pensando que sim, depois que não ——
Aqui tens minhas mãos cheias de rosas
Que te vão coroar de gratidão.
Aqui tens as palavras calorosas
Que vai dizer ao teu, meu coração:
Deus te encha a vida de horas venturosas,
Amigo bom, meu Poeta e meu Irmão.
Neste mundo cruel, de idéias turvas,
Que o teu caminho nunca tenha curvas
E que jamais encontres quem te dome.
Bem hajas tu, que com tamanha calma,
Fôste buscar à tua própria alma
O pão com que mataste a minha fome.
Lisboa, 1959
Dia de Nossa Senhora da Conceição
Variações sôbre um tema banal
I
Não te esqueças que a vida é um momento que voa
um efêmero instante de beleza e alento;
vive pois sem temor e com desprendimento
o que ela te ofertar, sem maldizê-la à-toa!
É uma nuvem que muda aos caprichos do vento!
Se hoje a perdes... O tempo nunca te perdoa!
Vida! Repara bem com a palavra soa!
Não temas pronunciá-la com deslumbramento!
Há alguém, não sei quem é, mas disto estou seguro,
que nos há de intimar num remoto futuro
a dar conta da vida que um dia ganhamos...
E após tal julgamento estranho, com certeza
havemos de sofrer e pagar, em em defesa
não dermos as razões porque a desperdiçamos...
II
O que a vida te der, seja migalha embora,
se é migalha de amor, de prazer, de alegria,
—— colhe-a! que esta migalha é o pão de cada dia,
e há de um dia chorar quem hoje a jogar fora!
Quem muito quer, despreza o pouco, sempre chora,
ou quem indiferente segue, de alma fria,
há de um dia parar e há de lembrar-se um dia
do clarão que se foi numa longínqua aurora!
Então nada haverá... nem mais frutos nos ramos,
nem migalhas de amor —— se outrora as desprezamos, —
e a indiferença de ontem sofre arrependida...
E ante a sombra que vem velar nosso desgôsto
procuramos em vão uma aurora perdida
na luz que desespera e morre num sol-pôsto!
III
Hás de te arrepender sempre tarde demais
dos momentos de amor e de puro prazer
que com mêdo talvez, não quiseste colhêr
e ficaram em branco... inúteis, para trás...
Vive com todo o ardor de que fores capaz
e a essa paixão entrega, em êxtase, teu Ser.
Ah! bem pior do que a dor vivida, podes crer,
é a dor de não poder vivê-la nunca mais!
Não receies sofrer, que é vida o sofrimento.
Receia, e com razão —— cada dia perdido
sem que o amor te arrebate ou te perca um momento.
De nada há de servir-te o desespêro teu,
pois mais vale chorar o amor que foi vivido
que lastimar o amor que um dia se perdeu!
IV
Quantas vêzes já ouvi amargamente
quando a noite do tempo chegou sem alarde:
"só agora depois que o coração não arde,
não arde o coração... e a alma já não sente...
—— vejo, quanto perdi, irremediàvelmente,
por ter sido na vida, um tímido, um covarde!
Ah! se pudesse ser o que fui, novamente!
Quantas vêzes já ouvi dizer... mas muito tarde...
Sofrimento absurdo êsse arrependimento
de tudo ter podido alcançar num momento
e tudo ter perdido sem erguer a mão...
E abatido ir sentindo a invasão dêsse tédio
que vai enregelando aos poucos, sem remédio:
a alma, o sonho, a esperança, a vida, o coração!
V
Antes se arrepender do que se fêz um dia
por sincero prazer pondo tudo de lado,
do que o arrependimento de se ter deixado
de fazer, por temor... —— se o coração pedia.
Se colheste a emoção com intensa alegria
e se fôste feliz e marcaste o passado,
bendiz êsse segundo ou essa hora —— êsse dia
em que o mundo foi teu, vencido e conquistado...
A vida é uma aventura e é preciso vivê-la!
Nada há que justifique uma abstinência ao mundo,
—— ergue a mão para o céu e colhe a tua estrêla!
E' a hora do Natal... A estrêla é o teu presente!
Mesmo que ela cintile apenas um segundo,
contigo hás de levá-la indefinidamente...
VI
Escreve com teu sangue o teu próprio romance
enche-o com teu amor, misto de sonho e vinho,
mais vale ter no peito enterrado um espinho
depois —— que a solidão até onde a vista alcance...
Sofrimento é afinal perceber, de relance,
que já estamos ao fim de um imenso caminho
e que tudo que estêve um dia ao nosso alcance
passou... E olhar em tôrno, e se sentir sòzinho...
Não, não tentes voltar, porque a vida não volta...
Jogarás contra o vento a angústia e o desespêro
e em espumas verás tua inútil revolta...
Vive, pois..., E se assim te falo, e isso te digo,
é que poderás ver no instante derradeiro
que se a vida foi vã a memória é um castigo!
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
DEPOIS DA LEITURA DOS TEUS VERSOS
Para J. G. de Araujo Jorge
—— o Poeta que admiro
—— o amigo que não conheço.
Maria Helena
I
Dou-te a vida o fulgor da própria Vida:
Aos teus pés deu caminhos ignorados
E ofereceu-te aos olhos namorados
A apoteose da manhã nascida.
Fêz-te mais plana a íngreme subida
Pondo na estrada girassóis dobrados,
E aos teus lábios de Sol iluminados
Deu o mel da ternura repartida.
A mim, não me pôs dia em cada mão:
Ao meu Céu incolor não deu luar...
Nem de mim se lembrou... Nada me deu!
Quem me dera mostrar-te o coração!
Talvez assim pudesses calcular
Até que ponto a vida me esqueceu.
II
Se inda tens olhos para ver o mar
E lhe entendes a voz de maré-cheia;
Se vestes a tua alma de luar
E o sangue te palpita em cada veia;
Se o teu corpo mortal encontrou par
E vês erguida a chama da candeia,
E te descansa a sombra de um palmar
E ergues um sonho, mesmo sôbre a areia,
Prende nas tuas mãos o bem da Vida!
Nega a dúvida atroz que te consome
E te deixa sem fé o coração,
Que a Vida só não deve ser vivida
Quando se é pão para nenhuma fome
E se tem fome quando não há pão.
(M. H.)
Sôbre a alegria
(Deliciosa ironia!
Acaso alguma vez também já te espantaste
quando riste?)
Pois bem, minha alegria
é às vêzes uma exótica maneira
de ser triste!
J. G (Do livro "Amo!")
Sôbre a tristeza
Irmão que vives para além do mar
afastado de mim por tantos nós;
que tens na alma a alma do luar
e nas veias o sangue dos cipós;
irmão que segues de olhos deslumbrados
e não vês risas sem poder colhê-las,
e trazes nos cabelos desmanchados
a carícia noturna das estrêlas;
tu, que tens os sentidos bem despertos
e uma chama a pulsar no coração
e enches todo o silêncio dos desertos
com o grito escaldante do sertão;
tu, que te levas por caminhos sábios
e que não andas pelo mundo à-tôa
e mataste a secura dos teus lábios
beijando os lábios frescos da garoa;
tu, que não te naufragas em cansaços
nem receias surprêsas na viagem
e tens no ritmo aéreo dos teus passos
a musical cadência da folhagem;
tu, que sonhas à margem dos escombros
e dos loucos vasios de ideal
e que apenas suportas nos teus ombros
o pêso da loucura tropical,
irmão: se mesmo quando a dor te assiste
abres na bôca o riso de uma aurora,
já que eu só sei chorar quando estou triste
vem-me ensinar a rir quando se chora!
(M. H.)
Egoísmo
Não compreendo que tragas um passado,
tu devias esperar-me
devias adivinhar que eu chegaria em tua vida...
Não devias trazer na beleza tristonha
dos teus olhos castanhos
vultos estranhos;
nem nas tuas mãos, inquietas como folhagens
invisíveis tatuagens
como rastros de carícias que passaram;
essa unidade das flôres
que já desabrocharam...
Queria que as tuas mãos fôssem fôlhas em branco
à espera da minha inspiração;
que os teus olhos fôssem ingênuos como os das crianças
ingênuos como a expressão da tua face;
e a tua bôca, —— uma fruta de vez
que o pássaro do desejo respeitasse...
Eu queria que a tua alma, numa perpétua festa,
fôsse irmã daquela fonte muito clara, muito límpida,
que mora na floresta...
Não compreendo que tragas um passado
que te lembres de cousas que eu não sei
nem que tragas vestígios de outro amor
em teu olhar,
—— não te perdôo nunca o não teres adivinhado
que nasceste afinal, só para sêres minha
e que eu havia de te encontrar...
...........................................................................................
E eu que sou teu presente e serei teu futuro
sinto-me paradoxalmente amargurado,
com êste egoísmo pueril... e êste ciúme doentio
do teu passado...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Ideal de amor
Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu...
Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
àquela que procuro e que há de ser só minha...
Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestógio de afeição sequer...
—— se para êle eu não fôr o seu sonho primeiro,
desde já renuncio a outro lugar qualquer...
Sòmente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor sòmente assim posso sentir...
—— hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esprança feliz que doure o seu porvir...
Para um perfeito ideal... para encher minha vida
ser tôda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquêle amor que um dia não foi meu!
Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
—— para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!...
J. G. (Do livro "Amo!")
Eu te queria tão diferente...
Há muito eu te esperava...
Mas eu queria que quando chegasses
trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua bôca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fôssem como as fôlhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fôsse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sôbre a terra as águas não correu...
E tu chegaste...
Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua bôca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que
[murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vêzes me parece pálida e amarela,
como uma fôlha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
.....................................................
Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como um louco
um doente.
encontro em teu amor, às vêzes casualmente,
os restos de outro amor!
J. G. (Do livro "Amo!")
Não a querias diferente
Por que aceitas o Sol, sem resistência,
E não rasgas o peito em frases vãs,
Se vês o Sol poluído de insistência
De tôdas s manhãs?
Por que esperas da bôca já falada
A pureza da luz e das safiras,
Se a tua própria bôca está manchada
de tôdas as mentiras?
Por que pedes estradas verdadeiras,
Isentas de bassaltos e de espinhos,
Se tens nos pés o sulco das poeiras
De todos os caminhos?
Por que exiges uns olhos sem pecado
Numa paisagem transbordante de ânsias,
Se até o vento tem o olhar culpado
De tôdas as distâncias?
Por que olhas as mãos "dela" com desprêzo
—— Porque os seus dedos já não são intactos ——
se as tuas mãos se vergam sob o pêso
De todos os contactos?
Por que não negas o esplendor da Lua
Na beleza das noites singulares,
Se traz desflorações na carne nua,
De todos os luares?
Por que tentas impor limitação
Aos passos que seguiram sem clausuras,
Se as próprias asas medem a extensão
De tôdas as alturas?
Por que pensas tornar-lhe o rosto langue
E as artérias alheias a matizes,
Se nas veias da terra grita o sangue
De tôdas as raízes?
Não levantes o horror de uma procela
Que fatalmente mataria os dois,
Faz-te a ti mesmo e ao mundo dignos "dela"
E quere-lhe depois.
(M. H.)
Naturismo
Foi aprendendo a ler que aprendi a pensar
e hoje pelo pensar sou um degenerado,
—— já foi puro o meu ser, tal como luz e o ar,
como o ar e a luz de um céu sereno e descampado...
Bem que podia ter êsse olhar encantado
do homem que não sabia onde parava o Mar...
Sendo bruto, talvez eu me fizesse amado!
Bruto, —— que importa!? —— ao menos poderia amar!
Teria por meu templo o côncavo profundo
dos céus, e a religião que acaso professasse
correria sem deuses, livre, pelo mundo...
No pedestal da ciência: —— a beleza sem véus!
E o mais sábio seria o ignorante que amasse
a música da terra e a poesia dos Céus!
J. G. (Do livro "Amo!")
Humanidade
Irmão distante e de alma irrequieta
Que voas, nem tu sabes a que altura
E em ti mesmo andas disperso,
Não invejes os brutos! Sê Poeta,
Que nada vale a ventura
De poder chorar em verso.
(M. H.)
Canção do meu abandono
Não, depois de te amar não posso amar ninguém!
Que importa se as ruas estão cheias de mulheres
esbanjando beleza e promessas
ao alcance da mão?
Se tu já não me queres
é funda e sem remédio a minha solidão.
Era tão fácil ser feliz quando estavas comigo!
Quantas vêzes, sem motivo nenhum, ouvi teu riso
rindo feliz, como um guiso
em tua bôca?
E todo momento
mesmo sem te beijar eu te estava beijando:
—— com as mãos, com os olhos, com o pensamento, numa ansiedade louca!
Nossos olhos, meu Deus! nossos olhos, meus
nos teus,
os teus
nos meus,
se misturavam confundundo as côres
ansiosos como os olhos
que se dizem adeus...
Não era adeus, no entanto, o que estva em teus olhos
e nos meus,
era êxtase, ventura, infinito, langor,
era uma estranha, uma esquisita, uma ansiosa mistura
de ternura com ternura
no mesmo olhar de amor!
Ainda ontem, cada instante era uma nova espera...
Deslumbramento, alegria exuberante
e sem limite...
E de repente,
de repente eu me sinto triste como um velho muro
cheio de hera
embora a luz do sol num delírio palpite!
Não, depois de te amar não posso amar ninguém!
Podia até morrer, se já não há belezas ignoradas
quando inteira te despi,
nem alegrias incalculadas
depois das que senti...
Depois de te aamar assim, como um deus, como um louco,
nada me bastará, e se tudo é tão pouco...
... eu devia morrer...
J. G.
Canção da minha esperança
Não! A gente não morre quando quer,
Inda quando as tristezas nos consomem.
Há sempre luz no olhar de uma mulher
E sangue oculto na intenção de um homem.
Mesmo que o tempo seja apenas dor
E da desilusão se fique prisioneiro.
Vai-se um amor? Depois vem outro amor
Talvez maior do que o primeiro.
Sonho que se afogou na baixa-mar,
De nôvo se há-de erguer, cheio de fé,
Que mesmo sem ninguém o suspeitar,
Volta a encher a maré,
Não penses que jamais hás-de achar fundo
Nem que entre as tuas mãos não terás outra mão.
Pode a Vida matar o sonho e o Sol e o mundo,
Mas não nos mata o coração.
(M. H.)
Colegial
Gosto de vê-la, sim... Quando à tarde ela vem
fisionomia suave, ingênuamente franca...
Tôda a rua se alegra, e eu me algero também
como o seu vulto feliz, saia azul, blusa branca...
Quandos nadas de sonho o seu olhar contém!
A luz viva do olhar ninguém talvez lhe arranca...
—— Gosto de vê-la, sim... E ficam-lhe tão bem
aquela saia azul, e aquela blusa branca...
Azul: —— azul é a côr da vida que ela sonha!
E branca: —— branca é a côr da sua alma de criança
onde ela própria se olha irrequieta e risonha...
Feliz... Não tem presente e ainda nem tem passado...
Só o futuro, —— e o futuro é uma imensa esperança
um mundo que ainda fica oculto do outro lado!
J. G. (Do livro "Amo!")
Gosto de vê-la, sim... Quando à tarde ela vem
fisionomia suave, ingênuamente franca...
Tôda a rua se alegra, e eu me algero também
como o seu vulto feliz, saia azul, blusa branca...
Quandos nadas de sonho o seu olhar contém!
A luz viva do olhar ninguém talvez lhe arranca...
—— Gosto de vê-la, sim... E ficam-lhe tão bem
aquela saia azul, e aquela blusa branca...
Azul: —— azul é a côr da vida que ela sonha!
E branca: —— branca é a côr da sua alma de criança
onde ela própria se olha irrequieta e risonha...
Feliz... Não tem presente e ainda nem tem passado...
Só o futuro, —— e o futuro é uma imensa esperança
um mundo que ainda fica oculto do outro lado!
J. G. (Do livro "Amo!")
Uns metros mais à frente
De blusa branca e saia azul, lá vai
Na luz da tarde, a caminhar, contente,
Sem ver que a noite, lentamente cai
E cai também o Tempo, lentamente.
A bôca sem a contração de um ai,
Enche de sonho e cânticos o poente...
Nem amanhã nem ontem... E lá vai
Na vivência gloriosa do Presente.
Passa à tardinha, numa espera franca,
Menina ingênua e doce e incorrompida
—— De saia tôda azul e blusa branca.
O mundo só é mau e triste e duro,
Quando na rua trágica da Vida
Já se dobrou a esquina do Futuro.
(M. H.)
Lirismo
Eu quero ser o poeta da ternura
o poeta dos carinhos, da meiguice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...
O poeta dos castelos e dos beijos
quando vivemos longamente, a sós,
—— que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe "abat-jours" na própria voz...
Eu quero ser o poeta que te enleia
e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
—— que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz!
O poeta que em teus olhos, num momento
acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslimbramento
deslumbrado com as próprias emoções...
Eu quero ser o poeta dos anseios,
dessa minha alma irrefletida e louca,
—— e desnudando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua bôca.
Quero ser êsse poeta que tu queres
e os meus versos —— assim como um perfume,
hão-de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento... o teu ciúme...
O poeta que põe alma nos sentidos
e as belezas incógnitas desvenda,
que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sôbre o amor em tom de lenda...
Eu quero ser o poeta da ternura
que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal tôda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!
O poeta a quem tua alma se prendeu,
êste que chamas louco e sonhador,
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!
J. G. (Do livro "Amo!")
Eu quero ser o poeta da ternura
o poeta dos carinhos, da meiguice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...
O poeta dos castelos e dos beijos
quando vivemos longamente, a sós,
—— que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe "abat-jours" na própria voz...
Eu quero ser o poeta que te enleia
e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
—— que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz!
O poeta que em teus olhos, num momento
acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslimbramento
deslumbrado com as próprias emoções...
Eu quero ser o poeta dos anseios,
dessa minha alma irrefletida e louca,
—— e desnudando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua bôca.
Quero ser êsse poeta que tu queres
e os meus versos —— assim como um perfume,
hão-de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento... o teu ciúme...
O poeta que põe alma nos sentidos
e as belezas incógnitas desvenda,
que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sôbre o amor em tom de lenda...
Eu quero ser o poeta da ternura
que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal tôda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!
O poeta a quem tua alma se prendeu,
êste que chamas louco e sonhador,
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!
J. G. (Do livro "Amo!")
Lirismo... inconsiguido!
Eu quis ser o poeta alheio à mágoa
De primeiro ser só, triste depois,
Mas foi a solidão que não deu água
À minha sêde lírica de dois...
Eu quis ser o poeta do Sol alto,
Do dia claro, das manhas sem fim,
Mas foi a noite que tomou de assalto
O Céu oculto que eu trazia em mim.
Eu quis ser o poeta que chamou
A Vida numa voz vibrante e erguida,
Mas foi a Morte imensa que escutou
O imenso apêlo que eu fazia à Vida.
Sonhei correr o mundo lés-a-lés
Desde o primeiro alvor da minha infância.
Mas foi o chão que me acorrenta os pés
Que acordou o meu sonho de distância.
Eu quis ser o poeta do mar largo
Buscando a côre de inéditas paisagens,
Mas foi o rio, num travor amargo,
Que me obrigou à sujeição das margens.
Eu quis ser o poeta dos Espaços
Voando numa Amplidão que fôsse minha,
Mas foi a realidade dos meus passos
Que me indicou as asas que não tinha.
Então, num grito que ninguém concebe,
Dei-me tôda ao luar, num abandono,
Mas foi a insônia que alagou de febre
Os meus olhos abertos e sem sono.
Quis as Estrêlas e com gestos sãos
Ergui as mãos aos Céus, para colhê-las.
Mas foi o pó, presente em minhas mãos,
Que encheu de si a ausência das estrêlas.
Mal haja o meu destino singular
Que me privou de versos e de bem,
Que a minha dor não me deixou cantar
Nem rimou com a dor de mais ninguém.
Mal haja esta alma sôfrega de ideais,
Tão única, tão vil, tão incompleta,
Que não podendo ser igual às mais,
Nem conseguiu, ao menos, ser poeta!
(M. H.)
Sonêto a Ariel
Arquiteto do sonho, escultor da Poesia,
desenhei num projeto de ilusão dourada,
o templo de cristal da minha fantasia
à beira de uma fonte irrequieta e encantada.
Ergo o meu templo ao alto, sôbre a escadaria
das minhas emoções —— e o mármore da escada
é rubro, —— e vou fazendo essa obra, na alegria
do sonho, e na tristeza da alma já cansada...
Há colunas de pé, hieráticas, serenas,
relembrando a visão do Partenon de Atenas
num tempo em que os heróis eram deuses no céu...
E quem entra, percebe, no interior em calma,
o esbôço de uma estátua, onde plasmo a minha alma
feota apenas de luz... como a estátua de Ariel!
J. G. (Do livro "Amo!")
Desnível
Mais alto do que o meu, o teu sonho de poeta;
Maior que a tua dor, foi a minha agonia,
Que eu também desenhei dentro da alma inquieta
"O templo de cristal da minha fantasia".
Um caminho busquei, translúcido e sem meta
Que me levasse até onde se gera o dia
Com um fervor humano e na fé de um asceta
À procura de Deus que a fé lhe prometia.
Quis desenhar o Sol e dêsse intento vão
Nasceu a grande noite, o báratro medonho
Que fêz da minha vida a cruz de um pesadelo.
És mais feliz do que eu, ó Poeta meu Irmão:
Os mais viram em luz todo o teu lindo sonho
E o meu sonho de luz... nem eu consegui vê-lo!
(M. H.)
Menina dos olhos verdes
Ó menina dos olhos verdes que `tardinha
estás sempre à janela à hora da minha volta...
Que cousas pensarás? Que fazes aí sòzinha?
Por que regiões de sonho a tua alma se solta?
Sempre que dobro a esquina encontro o teu olhar
e o teu claro sorriso adolescente ainda...
Habituei-me a te ver, —— e és tão criança e tão linda
que sem querer, também, sorrio ao te encontrar...
Menina dos olhos verdes... A quem esperas
com teus olhos gritando a côr das primaveras?
Queres versos? Pois bem,êstes são teus, recolhe-os!
Escrevi-os pensando em ti, tímida e bela,
—— a menina dos olhos verdes da janela
debruçada à janela verde dos meus olhos.
J. G. (Do livro "Amo!")
Fala da menina debruçada à janela
verde dos teus olhos
Porque tentas saber, quando vens à tardinha
E julgas que à janela aguardo a tua volta,
Que coisa pensarei? Que faço ali sòzinha?
Por que regiões de sonho a minha alma se solta?
Louco! Louco que vais andando de corrida!
Ah! que me importa a mim que passes, que me importa?
Não é por ti que espero, espero é pela Vida
Que um dia há-de passar, por fôrça, à minha porta,
Então hei-de chamá-la e quebrarei os gelos
Que hoje fazem de mim um ente singular,
E quando ela me ouvir, soltarei meus cabelos
E os deitarei no chão para ela passar.
Então eu lhe darei minhas faces divinas
Mais frescas do que a chuva a embebedar as secas
E hei-de estender-lhe as mãos —— as minhas mãos ——
[meninas ——
Onde há cordas ainda e uns restos de bonecas.
Tôda me entregarei, numa ansiedade louca,
Ao seu poder vital sem negações nem lei
E, numa hora de sonho, há-de provar-me a bôca
Que inda deve saber ao leite que mamei.
Nesse instante fugaz e com rosas aos molhos
Que Deus fará brotar onde a Deus aprouver,
Olha-me bem no fundo e verás em meus olhos
A menina a morrer e a nascer a mulher.
Repara bem em mim e no jeito sincero
Com que me libertei da cruz de mil esperas
Que tu passes ou não... Não é por ti que espero
Com meus olhos gritando a côr das primaveras.
A ela sim, a ela é que eu espero ainda
E espero-a, vê lá tu!, desde que amanheci.
Por ela —— que há-de vir! —— eu sou criança e linda,
Por ela é que me rio ao rir-me para ti.
Se à minha rua vens e numa exaltação
Vês que afasto, a tremer, a ponta da cortina,
Os meus olhos de mel têm outra direção
Se encontras meu olhar quando dobras a esquina.
Que pretendes de mim nesta hora suprema
Quando um mundo de sonho avassala o meu ser?
Queres versos? Pois bem: aqui tens um poema
Que para ela fiz, mas que te deixo ler.
Agora podes ir, que já te elucidei
Porque sou tôda Sol, porque me cora a face,
Segue o teu fado, pois, que eu cá me ficarei
A espreitar à janela até que a Vida passe.
(M. H.)
Caminhos...
Nos teus lábios há dois beijos,
nas tuas mãos há dois ninhos,
nos teus olhos: dois desejos,
no teu destino: caminhos...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Vedação
Nos lábios trago o Infinito,
Mas o coração, sòzinho,
Que neste mundo onde habito
Não tenho e não dou caminho.
(M. H.)
Traição
O teu rosto é puro e oval
imaterial como o luar...
—— o que te trai afinal
é o teu olhar...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Motivo
Tudo o que eu trago no fundo
Dizem meus olhos culpados...
—— Por isso é que ando no mundo
De olhos fechados...
(M. H.)
Elegia
Ontem
dando-te o verde dos meus olhos,
quis pintar de esperança o nosso sonho
que hoje morre... sem côr...
Dá-me, pois, o negro dos teus olhos,
quero vestir de luto o nosso sonho
de amor...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Arco-Íris
Que seja num tom risonho
Ou com laivos de amargor
—— Que para pintar um sonho
Nunca me importou a côr...
(M. H.)
Pensamento
Hoje, na nossa grande felicidade luminosa,
descobri em meu pensamento uma única nuvem
talvez:
—— "Que pena, meu amor, nunca mais poder te olhar
[com os olhos
da primeira vez...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Sentimento
Afasta o pensamento singular
Que tanto mal te fêz,
Que a pena, a grande pena, a maior pena é olhar
Pela última vez...
(M. H.)
Instantâneo no. 1
Há por certo inconsciência, maldade, ironia,
no destino que um dia cruza duas vidas
e alheio a uma tragédia imensa:
—— põe numa, uma grande amor,
e noutra, a indiferença!
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Fundura
Pode, ainda o Destino, aprofundar o mal,
Quando, num incontido e duro anseio,
Põe em dois corações amor igual
E a Morte de permeio...
(M. H.)
Dúvida
E êle tinha uma vontade louca de segurar as ondas
no seu vaivém...
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Certeza
Senhor:
Despe-me a humanidade que me apouca
E dá-me um maior bem,
Que eu tenho uma vontade louca
De segurar as ondas
No seu vaivém...
Dize à minha fraqueza que se afaste
Ou se prostre a meus pés
E à minha voz dá força que lhe baste
Para mandar na força das marés.
Deixa-me ser, isenta de embaraço,
Mais do que as outras gentes:
Que sem entraves nem cansaço
A energia do meu braço
Afaste ou aproxime os continentes.
Quero ser eu marcando as rotas
E dando aos ventos direção
E que no Espaço o vôo das gaivotas
Obedeça ao sinal da minha mão.
Quero ser eu na noite inteiramente nua
Sossegando as espumas ao luar,
Quando a sêde branquíssima da Lua
Vai beber água ao mar.
Que se morram em mim prantos e agravos
Que o Destino gerou:
Quero ser eu dobrando os cabos
Que inda ninguém dobrou.
A ardem em ânsia,
Meus dedos imortais
Desenharão no enigma da Distância
O sinuoso perfil dos litorais.
Quando a tradinha naufragar em oiro,
Aos areais pelo vento despenteados,
Hei-de-lhes dar o movimento loiro
Dos meus cabelos desmanchados.
De tal maneira me darei ao mar
Nas meias tintas dos crepúsculos,
Que hei-de sentir meu sangue a palpitar
Nas veais dos moluscos
E na fé que me exalta
E que em mim mesma floresceu,
Hei-de ser eu na maré-alta
Como na maré baixa hei-de ser eu.
Senhor dos Céus
Que tão bem vês as mágoas que consomem
A minha carne limitada,
Faze de mim um deus
Que ser apenas homem
Não chega para nada!
(M. H.)
Escrevo dentro da noite
Estou escrevendo para não gritar. Para não acordar
os que dormem felizes lado a lado,
os que repousam, aconchegados,
os que se encontram e continuam juntos
e não precisam sonhar
porque não dizem adeus...
Estou escrevendo para não gritar. Para enfunar o
[coração ao largo...
E as palavras escorrem salgadas como um córrego de
[águas mortas
num silencioso pranto.
Tão perto, e nem percebes minha insônia. Nem ouves
[a confidência
que põe nódoas no papel para não ter que acordar-te
e ser transmuda em palavras, que são estátuas de sal.
Estou escrevendo para não gritar. Para não ter tempo
[de acompanhar a noite,
para não perceber que estou só, irremediàvelmente só,
e que te trago comigo
sem outra alternativa que o pensamento,
—— cela em que me debato a olhar a Lua entre grades ——.
Estou escrevendo para não gritar. Para não perturbar
[os que se amam
e se juntam, e se estreitam, e sussurram na sombra
e passeiam ao luar,
para que as palavras chovam num dilúvio,
silenciosamente
e me alaguem, e me afoguem, e me deixem pela noite
[a dentro
como um corpo sem vida e sem alma,
a flutuar...
J. G. (Do livro "A Sós")
Quando escreves dentro da noite
Eia! Irmão! Deixa o trilho doloroso!
Foge da treva imensamente vã
E olha-me, que num surto vitorioso,
Meu corpo é noite que acordou manhã.
Tendo o sangue mais quente do que as brasas
A aquecer Infinitos e caminhos
Meu canto penetrou tôdas as asas
E a minha voz é Sol atravessando os ninhos.
Eia! Irmão! Vive em risos, em tropel!
Levanta as mãos cativas
Porque as minhas palavras são do mel
de uma nascente de águas vivas.
Abre os teus olhos ensonados
E escuta a minha voz de sombra nos desertos
—— Voz que ontem era cruz nos girassóis fechados
E hoje é esplendor nos girassóis abertos.
Deixa que a noite sêca e nua
Se funda em alegria,
Que êste poema é Lua
Que se fêz dia.
Enxuga o pranto;
Canta num tom de tal maneira ousado,
Que despertes na escala do teu canto
Os que dormem felizes lado-a-lado.
Olha que a Vida pode ser risonha
Se colhêres os cravos que são teus
E sonha, Sonha, Sonha, SONHA!
Digas ou não adeus.
Irmão: rasga o teu peito bem ao centro
E mostra ao coração a manhã tutelar,
Que eu não quero deixar-te pela noite a dentro
Como um corpo sem vida, a flutuar...
(M. H.)
Desânimo
olho para os meus olhos entulhados de escombros
que a luz em vão escancara.
Apóio as minhas mãos sôbre os meus próprios ombros
e grito para mim mesmo, para a minha bôca
com a voz cansada e rouca:
—— Pára!
................................................................................
Sensação de vazio, de morte, de paz...
Para que seguir mais? Para que seguir mais?
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Ímpeto
Vai até onde a mágoa te levou,
Entre procelas
E desalinhos...
O vento que parou
Não volta a encher as velas
Nem a girar moinhos.
Mesmo que a Vida esteja quase morta,
Ergue os braços humanos
Até às nuvens de cambraia
E vai! A ti que importa
Que a dor tenha a extensão dos oceanos
E a altura do Himalaia!
Sejam as horas vitoriosas,
Sejam sem côr,
No coração chagado.
Coroado de espinhos ou de rosas,
Vai para a frente seja como fôr...
Mas não fiques parado!
Vence as renúncias e os escombros
Que a sina te impuser
E não apoies as mãos nos próprios ombros,
Mas em outros quaisquer.
Numa ansiedade que te apouca,
Encharcando de raiva e de suor
Os lábios sós,
Não grites "Pára!" à tua bôca,
Que a tua bôca sabe já de cor
O som da tua voz.
Antes, numa expressão ousda
Sem frieza ou desdém,
Canta àquele que passa em tua estrada,
"VEM!"
Chama, liberto de qualquer quebranto
Ou de qualquer receio,
E sentirás na escala do teu canto e de gorgeio
Um misto de certeza
Alegre e destemido,
Não recuses o frêmito da origem!
Deixa a quentura do ninho!
Inda que o mundo inteiro esteja possuído,
Há sempre terra virgem
Para os que têm fome de caminho.
Se as nascentes da noite são malsãs,
Esquiva a bôca mole
Ao vinho dos crepúsculos:
Bebe a côr das manhãs
E hás-de sentir o Sol
A engrandecer-te a alma e a retesar-te os músculos,
Deixa esta margem pela outra margem
Que te estende mil braços
E funde na ousadia da viagem
A indecisão que te escraviza os passos,
Vai num ritmo sem par, sempre mais fundo
E cada instante mais veloz,
Que Deus não nega os atalhos do mundo
À tentação de cada um de nós.
Não maldigas os ímpetos que domem
A pele ardente e farta.
Já que és de argila, vive como um homem
E sem temer que a argila parta.
Desânimo, por quê e para quê
A alma te concebeu,
Se tudo aquilo quanto o olhar te vê
Pode ser teu!?
Irmão: anda comigo além das coisas rasas!
Entoa o canto que eu entôo
E onde me excedo e tôda me alvoroço,
Que é o nosso vôo
E são nossas as asas
E o Céu também é nosso!
Despe o manto cruel da desventura
E vive como tôda a gente
Num mundo por ti mesmo edificado.
Junto do chão ou conquistando Altura!
Seja lá como fôr!, vai para a frente!
O que não podes é continuar parado!
(M. H.)
Perguntas de Natal
O´! Senhor de humildade e de candura
de beleza infinita, humna e pura,
de fraternos princípios ideais...
O'! Senhor que pregaste sempre a paz
num amplíssimo gesto sôbre a terra,
que condenaste o despotismo e a guerra,
O´! Senhor de paciência e de perdão:
—— Onde andará perdido o nosso irmão?
O'! Senhor cujo amor igualitário
gera o humanismo de um missionário
e nunca distinguiu plebeus e nobres.
O'! Senhor que morreste pelos pobres
pelos pequenos e desprotegidos,
pelos humildes, pelos perseguidos,
O'! Senhor que pregaste ao coração:
—— Onde andará perdido o nosso irmão?
O'! Senhor que ideaste o nosso mundo
sem fronteiras, tal como o céu profundo,
cheio com a festa das constelações,
O'! Senhor das mais límpidas lições
de humanidade e de fraternidade
num hino ao homem bom e à liberdade,
O'! Senhor, por quem sou forte e cristão:
—— Onde andará perdido o nosso irmão?
..............................................
Diante do mundo em convulsões de guerra
e os homens loucos devastando a terra
com o fogo da metralha e dos obuses;
nesta terra que ainda ergue as tuas cruzes
neste mundo a teimar que ainda é cristão,
julgo te ouvir também, com a voz cansada,
numa angústia de dor, desesperada,
a perguntar numa alucinação:
—— Onde andará perdido o nosso irmão?
J. G. (Do livro "Festa de Imagens")
Resposta a "Perguntas de Natal"
Por que me buscas para além dos mundos
Que teus sonhos criaram,
Se eu estou presente nos abismos fundos
E na Altura que as asas conquistaram?
Por que perdes, aos poucos, a coragem
De encontrar novas diretrizes,
Se eu vivo nos acordes da folhagem
E no silêncio das raízes?
Por que interrogas, em palavras vãs,
Pesads como açoites,
Se me encontras no riso das manhãs
E no pranto das noites?
Por que vacilam, entre tantas mágoas,
Os teus passos incertos,
Se permaneço no rumor das águas
E na secura dos desertos?
Por que te crucificam mil anseios
Em cada hora mais tenazes,
Se eu canto em todos os gorjeios
E até nos versos que tu fazes?
Por que te negas a seguir a viagem
No pavor dos escolhos,
Se eu estou no fundo de qualquer paisagem
E até no fundo dos teus olhos?
Por que hás-de desistir da caminhada
Julgando o fim já perto,
Se eu caibo numa pétala fechada
E num vulcão aberto?
Por que pensas que não me hás-de encontrar
Por mais que acendas o farol,
Se eu moro na brancura do luar
E no rubro do Sol?
Levanta bem os sonhos que são teus
E que a descrença naufragou,
Que me encontras no mar, na terra e até no Deus
A quem perguntas onde estou.
(M. H.)
Contradição
Para Maria Helena
Sou a contradição de duas almas, —— trago-as
gêmeas no mesmo corpo e unidas num só "Eu":
—— uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsia e de gritos
num sorriso, que às vêzes, sem querer... sorri...
Uma que crê no mundo e que trabalha o belo,
que constrói com paciência, pelas próprias mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
nôvo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra, que sabe rir e escarnecer de tudo!
Quando fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais!
Uma, que quando a sós, o olhar longe povoa
de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingênuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz!
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
—— diz que Deus é um brinquedo de filosofias,
a invenção de algum louco em momento de tédio!
Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,
julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, —— o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela!
Uma que não cresceu e se sente criança,
irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo;
outra, —— que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vêzes sente mêdo...
.........................................................
Aquela é a voz feliz das planícies contentes
matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim que às vêzes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas!
.........................................................
Sou a contradição de duas almas, —— uma
onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, —— a alma que crê que não tem alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-Cristo!
Duas margens debruando a risca de um caminho;
duas almas; se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa na terra... a outra se ergue, no céu...
Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, é só sal... a outra é doce, é só mel!
J. G. (Do livro "Eterno Motivo")
Plenitude
Para José Guilherme
De alma em festa ao contacto do nascente,
Mordendo a côr dos longes matinais,
E pisar terra ainda sem semente
Com a vertigem dos primeiros pais.
Não poluir rosas castas e modestas
Que se erguem, a tremer, da terra dura,
Mas profanar o corpo das florestas
Com duas mãos famintas de aventura.
Ir por estradas firmes e reais
Num ritmo tão audaz, quanto profundo,
Tendo nos olhos sôfregos de mais,
Uma janela aberta para o mundo.
Sorver o mel de tôdas as fragrâncias,
Achando, embora, convulsões de espinhos,
De olhos feridos de vencer distâncias
E pés cansados de medir caminhos.
Ser bem humano, poeta e vagabundo;
Viver a própria Vida, salto-a-salto,
Tendo raízes para ir mais fundo
E possuindo asas para ir mais alto.
Alcançar o que o frêmito nos pede
Mudando em sonho vivo o sonho morto
E ultrapassar a altura que nos mede
E nos limita a dimensão do corpo.
Sorver o mel de tôdas as fragrâncias
Na apoteose das manhãs gostosas,
E consentir que a bôca dê mil beijos
Como em Maio as roseiras dão mil rosas.
Erguer um nôvo plano bem ousado
Com a Vida a exigir em cada veia
E, encostando a cabeça a um peito amado,
Florir à noite, como a Lua-cheia.
Misto de Céu e terra, na loucura
De ser raiz e fôlha em ascensão
E erguer o vôo para além da Altura
Tendo nas asas o sabor do chão.
Desprezando tentáculos e escolhos,
Seguir, em frente, numa luta imbele,
Com manhãs a nascer dentro dos olhos
E corolas florindo ao rés da pele.
Ser réstia de luar e charco fundo
—— Condição de patrícios e plebeus ——
E dar ao mundo o que pertence ao mundo,
E dar a Deus o que pertence a Deus.
Ser pecador nos braços que nos tomem
E viver sem renúncias e sem pranto,
Primeiro, na certeza de ser homem,
E só depois na glória de ser santo.
Ah! Vida intensa, intensamente rude,
Pudesse eu, no mais báquico festim,
Embriagar-me da tua plenitude
E beber do teu vinho até o fim!
(M.H.) (Poema Inédito)
Estoril, 30-VIII-1958
...
Maria Helena não me parece mistura de algo ou de alguém. Ela é pura no que pensa e diz de si, firme e coesa nos seus conceitos, deixando ao redor de sua figura, uma onda de magia, de encantamento que a vislumbro dançando com elegância entre os magos da poesia, sorrindo de suas caras de espanto. Maria Helena, o dourado que foi impedido de brilhar. Parabéns, Poeta amiga Regina Coeli, pelo lustro que você dá a essa grande figura da literatura portuguesa.
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