PRESENÇA (1949)




















(Poesias,  Maria Helena Duarte de Almeida (Maria Helena), Imprensa Portuguesa, Porto, 1949, 110 páginas)






= Capa e "ex-libris" de =
Álvaro Duarte de Almeida




PRESENÇA







A JOSÉ MANUEL VARELA CID

PARA TI, FILHO QUERIDÍSSIMO DA MINHA ALMA,
A QUEM DEVO AS PRIMEIRAS ALEGRIAS
DO AMOR MATERNAL,
ANTES DA MINHA VERDADEIRA MATERNIDADE.




Presença

Aqui estou! Não sei de onde vim,
Mas aqui estou!
Ouvindo a tua voz chamar por mim
Todo o meu ser se alvoroçou.


Não sei quem és,
Mas respondo à chamada,
Ao alto o coração, o olhar em frente,
Que a minha alma é um eco de alvorada
Quando grita "Presente"!


Alguém disse o meu nome sem engano
E o meu sangue pulsou em cada veia
Num frêmito de oceano
Em maré-cheia.

Chamou-me a vida
Ou foi a morte?
Não sei ao certo quem chamou
Mas digo-te de novo, destemida
E forte
E sejas tu quem fores, aqui estou!




SONETOS



Passeio

Manhãzinha inda há pouco adormecida
Nos braços virginais da madrugada.
Desprende-se da terra fecundada
O aroma sensualíssimo da vida.

O Sol, a arder, é uma hóstia erguida
Pelas mãos da paisagem ajoelhada.
Uma asita lateja, alvoroçada,
Na primeira incerteza da subida.

Entre os matizes dum azul veemente,
O dia abriu-se todo, loucamente,
Numa explosão indómita e selvagem.

E eu fecho os olhos que o Senhor me deu
E deslumbrada, deixo de ser eu
E sou asa e sou dia e sou paisagem!




Exortação à morte

Morte! Sou mais que tu! Não te receio!
Compara o teu poder ao meu poder:
Olha a esterilidade do teu seio
E o meu fecundo ventre de mulher!

Tu andas sempre num mortal anseio

Colhendo a vida aonde ela estiver.
Eu semeei e sou o amparo, o esteio,
Da vida que em mim mesma fiz nascer.

Tu rastejas na sombra, sem um norte,

Olhos sem olhos, baixos de pecado...
Eu ergo o olhar, altivo como um rei.

Sou muito mais que tu, ó negra morte!

Tu destróis o que encontras já criado,
Mas eu sou quase um deus, porque criei!




Queda

Caminhei pela vida, humildezinha,
Sem oiros nem riquezas fabulosas.
Só no Céu as Estrelas generosas
Teciam de oiro o manto que eu não tinha.

A terra que pisei, não era minha.

Vazios, os meus dedos cor de rosas.
Dos outros as estradas silenciosas
Que me levavam lúcida e sòzinha.

Mas um dia sofri! E em sobressalto

Julguei que a minha dor me erguia ao alto
Porque era uma dor ímpar, diferente.

Morre no pó, minha vaidade em flor!

Como se toda a minha imensa dor
Não fosse igual à dor de tanta gente!



Conquista

Só os astros merecem os meus olhos!
O mundo? Que é o mundo ao pé de mim?
Que me importa a amargura dos abrolhos
Ou a festa de um riso carmesim?

Tudo no mundo tem princípio e fim:

Espumas esgarçadas nos escolhos;
As mãos frescas da relva de cetim;
A chama em flor de girassóis aos molhos.

Olho mais para o alto. Alargo a vista.

Julgo-me iluminada, quase um deus,
Sem me lembrar das trevas donde venho.

Mais para o alto ainda, na conquista

Dos Espaços que nunca serão meus,
Voando com as asas que não tenho!



Ambiciosa

Mais, sim! Ainda mais! E mais ainda!
É pouco quanto tenho e quanto vejo!
Embora a rosa em flor seja a mais linda,
Mais linda sempre a quer o meu desejo.

Nunca a Estrela do Norte me é bem-vinda

Porque eu anseio sempre outro lampejo.
Mais, sim! Ainda mais! E mais ainda!
Beijo que ascenda para além do beijo.

Deixai-me abandonada, ó meus Amigos!

Tenho a terra e o vento e o Céu, e vede
Esta ambição sem fim que me consome.

Fossem meus todo o mar, todos os trigos:

Não há água que baste à minha sede
Nem pão que chegue para a minha fome!



Fatalidade

Eu sei lá por que vou e por que faço!
Joguete num destino dominante,
Se quero caminhar, tolhe-me o passo,
E se me nego a ir, leva-me avante.

Não sou eu! Não sou eu! Meu olhar baço

Busca o auxílio dum olhar distante.
E ninguém que me valha! Surdo o Espaço,
Cai-me das mãos o gesto suplicante.

Leva-me a sina nem eu sei bem onde

Que às minhas súplicas ninguém responde.
Ninguém me dá o amparo do seu braço.

E faço e vou! São sempre as mesmas lutas...

E Tu não vês, ó Deus que não me escutas,
Que eu não sei onde vou nem o que faço!?



Desvairamento

Vida! Quero prender-te nos meus dedos,
Beber-te toda até à insensatez!
Embriagar-me de ti, dos teus bruxedos
E tornar a beber-te inda outra vez!

Empresta-me os teus mágicos segredos

Para rosar a minha palidez.
Despe-me de renúncias e de medos.
Dá-me a tua castíssima nudez.

Olho o Infinito e vivo só de rastros,

Os pés na lama, a namorar os astros
Que os meus braços não sabem alcançar.

Quero-te, ó Vida, embora a morte espere

Ou no primeiro beijo que te der
Ou na primeira esquina que voltar!



Poente

Nuvens loucas de cor, ensanguentadas
Na chaga aberta em luz de mil clarões.
Mais perfume nas rosas encarnadas.
Um anseio maior nos corações.

Passam asas nas últimas jornadas.

São as montanhas trágicos dragões.
Dobram-se mais e estão mais desgrenhadas
As verdes cabeleiras dos chorões.

Hora triste, tão triste como um dobre,

Em que apetece ler António Nobre
E viver em sonhados universos.

Hora indistinta, rútila e acesa,

Que funde as almas com a Natureza
E sem que o saibam, todos fazem versos...


Incongruência

Todos os dias vejo o Sol nascer.
Todas as noites brilham as Estrelas.
E a vida e as saudades e as procelas
São açoite brutal que faz doer.

Os meus tormentos, quem os quer sofrer?

Minhas ânsias, quem pode compreendê-las?
Sem a luz dum farol, rotas as velas,
Onde estás, alegria de viver?

Lentamente abro as mãos, num gesto aflito,

E tristíssima vejo, sem um grito,
A amargura das minhas mãos vazias.

E embora o açoite rasgue lado a lado,

Não desisto de olhar o Céu estrelado,
De ver nascer o Sol todos os dias...



Cobardia

Neste louco desejo de alcançar
Não deixo de subir de sonho em sonho.
Mas tem longes de azul, fundos de mar,
O abismo que, afinal, eu não transponho.

Revolta-se a minha alma, sem cessar,

Presa do desespero vão, medonho,
Que há numa réstea oblíqua de luar
E na chama cativa dum medronho.

Ter Céu e não ter asas, dor sem fim!

Ter asas livres, mas não ter Alturas,
Que incrível, que titânico degredo!

Mal haja a hora em que eu ao mundo vim,

Porque eu sou a mais vil das criaturas:
Tenho asas... Tenho Céu... E tenho medo!



Apelo

Vou contar tudo às pedras dos caminhos!
Hei-de dizê-lo às ondas incessantes!
Aves do Céu, abandonai os ninhos!
Pare, no tempo, a roda dos instantes.

Suspendei vosso azul, ó flor dos linhos!

Ouvi atentamente, águas cantantes,
Pinheiros verdes, verdes e sòzinhos,
Aquietai as agulhas sussurrantes.

Charcos de lama, nuvens em farrapos,

Oiros fluidos do Sol, olhos de sapos,
Tudo o que já passou e o que há-de vir:

Escutai e entendei o meu grito informe

Porque entre os homens deste mundo enorme
Eu não encontro quem me saiba ouvir!



Amargura

Que vida é esta que nos martiriza
E cem vezes nos mata um só tormento?
Por que esquece o sorriso dum momento
E o pranto em nossas almas se eterniza?

A estrada é sinuosa e indecisa...

Sem Sol... com tanta chuva e tanto vento...
E Deus não dá o azul do Firmamento
À suplicante voz de quem precisa.

Ó morte: que mistério em ti existe?

Tens lenitivo para o que foi triste
E do chão ergues o que vai de rastros?

O teu mundo não é como este mundo:

O caos medonho dum abismo fundo
Tendo por tecto a sátira dos astros?


Melancolia

Talvez seja da ausência do luar...
Desta absurda, irreal serenidade...
Há qualquer coisa vaga pelo ar
Que se dilata, em plena liberdade.

Meu coração debate-se a sangrar

No indefinido anseio que o invade
Que não é amargor nem é saudade,
Mas apenas vontade de chorar.

Lágrimas correm dos meus olhos baços

E nem eu mesma sei compreendê-las
No seu ritmo indeciso, desigual.

E a minha alma vagueia nos Espaços

Procurando encontrar entre as Estrelas
A estranha causa deste estranho mal.



Noite

Não dormiram meus olhos fatigados.
Toda a noite contei, hora por hora,
Noite de febre, negra de cuidados,
Noite a que nunca mais chegava a aurora.

Chorei de novo os prantos já chorados

— Que é sempre viva a mente de quem chora —
E o vento uivava, uivava nos telhados
E a sua voz corria, noite fora...

O silêncio aterrava toda a casa.

Tinha nos olhos um calor de brasa
E dentro em mim um frio de luar.

Que estéreis são as noites por dormir:

A vida a ir-se embora, sem partir,
E a morte a aproximar-se, sem chegar...



Ânsia

A minha dor ultrapassou a Dor!
Vão meus passos incertos, mal ritmados,
E vibram nos meus ombros já vergados
As asas desmedidas dum condor.

Quero outra flor, depois de tanta flor!

A vertigem de trilhos ignorados!
Que os meus olhos já fartos e cansados
Encontrem novos Céus, seja onde for!

Depois dum sonho, um outro sonho ainda.

Esperança realizada, esperança finda...
Bem que alcancei, logo de mim se afasta.

Que inferno de tortura me consome:

Ao pé de tanto pão, morro de fome...
Quero e não tenho! Tenho e não me basta!



Horas

Esperar, tendo as horas por medida,
E sem medida uma ansiedade atroz,
Vendo aos poucos findar a própria vida
E a morte a aproximar-se mais de nós...

Esperar com a alma dolorida

Na amarga lentidão dos que vão sós
Ou tendo a alma em festa e repartida
Sentindo o tempo a caminhar veloz...

Morre uma hora e logo uma outra vem

Trazer à nossa vida mal ou bem,
Beijos de amor ou prantos de saudade.

E entre escuros da noite e luz de auroras,

Vibram iguais no coração das horas
As lentas pulsações da Eternidade.



Pecado alheio

Irmão que eu não conheço, tem piedade!
Não peques mais! Tem dó desta amargura!
Deixa-me erguer os olhos para a Altura
E encher de Sol a minha mocidade.

Já sei de cor o gosto da ansiedade

E de cor sei a cor da noite escura.
Tenho dobrado pão, tenho a fartura,
E a tua fome é onda que me invade.

Olha esta injusta dor que não mereço...

Meu coração aberto como as chagas...
Os meus dias que morrem sem enlevo...

Não pequeis mais, Irmão que eu não conheço,

Alma que tanto deves e não pagas
E por quem pago aquilo que não devo!



Confiteor...

Eu me acuso, despida de ansiedades,
Alma a nu ante o nada do meu nada,
De joelhos no chão, fronte inclinada,
Em pedaços, meu trono de vaidades.

Em vão tentei voar, forcei as grades,

Olhos fixos na curva ilimitada.
Minha voz levantei desassombrada
Sem receios nem falsas humildades.

Ergui altiva e forte a minha mão

Para a rosa da vida e ao colhê-la
Os espinhos deixaram-me a sangrar.

Eu me acuso de todo o coração,

Cinza a pensar que chegaria a Estrela,
Gota de água que um dia quis ser mar!




Insatisfação

Já não quero a agonia do Sol-posto!
Não me interessa o riso da manhã.
Pedras de sal, já não possuem gosto
Nem doces são os bagos da romã.

Já sei de cor a bacanal de Agosto.

Conheço a luz do Sol, quente e pagã.
Devassei o luar, provei o mosto,
E das rosas em flor já fui irmã.

Tudo aquilo que existe já foi meu:

Vertigens de prazer, mares de escolhos,
A tentação violada dos Espaços.

Mais mundo, Senhor Deus, quero mais Céu,

Que inda é pequeno o Céu para os meus olhos
E o mundo pouco é para os meus braços!



Soneto da minha inquietação

Vem do fundo de todas as idades.
Nunca principiou nem terá fim
A enorme inquietação que vive em mim,
Maré cheia de ausências e saudades.

Quer haja Sol, quer haja tempestades,

Ofélica passeio no jardim
O meu perfil talhado num marfim
E o meu manto de inúteis ansiedades.

Nunca a vida me teve direcção.

Em cada chaga pulsa um coração
E o meu é mais chagado que mil chagas.

Caminho... não sei como nem por onde

Buscando um sonho vago que se esconde
No labirinto atroz das coisas vagas.



Em frente!

Mais para além! Não temas a partida
Firam-te embora as pedras dos caminhos,
Alma que a angústia leva de vencida,
Carne rasgada em todos os espinhos.

Ave sem ninho aos tombos pela vida,

Não pense no calor dos outros ninhos.
Abre as asas em cruz, tenta a subida,
Que o Céu é mais azul que a flor dos linhos.

Erguido o olhar, cabeça levantada,

Mais alto ainda o coração doente,
Numa ascensão pleníssima e audaz.

Não importa a amargura da jornada!

O que é preciso é caminhar em frente,
De rastos ou voando, tanto faz!



Diferença

Não me condenes, tu, que não és santo
E que és feito de carne como eu sou.
Se hoje não vás atrás de um novo encanto,
Amanhã podes ir onde eu não vou.

Por que procuras desvirtuar o pranto

Que a minha insensatez não te ocultou
E criticas e ris, tonto de espanto,
Dos sonhos que a minha alma idealizou?

No meio dos abismos da voragem,

Não te esqueças de que és feito à minha imagem
E que vamos na vida par a par.

Se entre nós diferença pode haver,

É que eu tenho a coragem de dizer
E tu a cobardia de calar.



Hora rubra

Sou eu! Não ouves, Vida? Abre-me a porta!
Repara nos meus olhos-mar de pranto!
Olha esta mágoa que me pesa tanto,
Mágoa calada, que ninguém conforta!

Pois não vês a esperança quase morta,

Que os meus dias são dias sem encanto
E que o meu canto é sempre um triste canto...
Por que teimas em não me abrir a porta?

Quero esquecer insônias, ais, agravos,

E ver em derredor um ar de boda
E em cada olhar o mel de uma promessa.

Tenho uma boca doce como os favos

E um sangue ardente que me queima toda...
Ó Morte, Morte! Leva-me depressa!!!



Solidão

Caminhava na estrada da existência
E o sonho ia comigo lado a lado.
E o nosso passo, leve, bem ritmado,
desenhava uma nítida cadência.

Mas o sonho cansou-me da aparência

Que o sonho à minha vida tinha dado
E deixou-me sòzinha com meu fado
E fugiu-me sem dó e sem clemência.

Na solidão caminho, a boca exangue,

Um abismo no olhar, os pés em sangue,
Partido o coração em mil pedaços.

E enfraquecida e pálida e cansada,

Só me segue, na intérmina jornada,
O som sem eco dos meus próprios passos!



Simbolismo

Tenho? Pois tenho! E de que serve ter?
Chama de Sol que nunca me aqueceu!
Prazer que não chegou a ser prazer...
Jardim que eu semeei e não foi meu!

Cantavam alegrias no meu ser,

Meu pobre ser que antes de ser, morreu!
Depois, a vida, o mundo, o entardecer...
Esta dor que ninguém compreendeu!

Pois tenho! Abro as janelas par em par!

Sinto a alma sòzinha, regelada,
Ao pé de tudo que o destino trouxe.

Sou como o náufrago que em pleno mar

Morre em turbilhões de água salgada
À míngua duma gota de água doce!



Voo interrompido

Olho o esplendor do Céu, mal colorido
Pela luz em botão da manhãzinha.
E o meu corpo rebelde e destemido
Sonha o prazer dum voo de andorinha.

Vejo as nuvens correndo, sem sentido,

E delas meu desejo se avizinha.
E o dia grita agora, definido,
E fez maior o anseio que eu já tinha!

Perco a noção do tempo, o olhar parado,

O coração revolto como o mar
Ante o deslumbramento dos Espaços.

Deus esqueceu-se que me tinha dado

Este imenso desejo de voar
E em vez de me dar asas, deu-me braços!



Memento, Homo...

Irmão que buscas o melhor lugar
Com teu egoísmo bárbaro e animal
E que enfeitas com rosas de toucar
As paredes caiadas dum pombal;

Irmão que és traiçoeiro como o mar

E que és, como uma lâmina, leal,
E fazes versos brancos ao luar
E assassinas na sombra de um portal;

Irmão que roubas sem um calafrio

E dás teu manto inteiro a quem tem frio
E ao frio expões teu próprio corpo nu;

Que renasces de ti em cada hora,

Como tu, eu também sou pecadora
E sou também divina como tu!



Soneto romântico

Devagarinho, com furtivo passo,
Vai a Senhora Lua e suas aias
Pelos caminhos plácidos do Espaço
Desdobrando finíssimas cambraias.

Dá reflexos de prata ao mundo baço.

Veste de branco o roxo das olaias.
E junto ao mar revolto e sem cansaço,
Seu manto estende no areal das praias.

Senhora Lua, mãe de compaixão,

Que prateias a dor de quanto existe
- Que o teu clarão em tudo se insinua - 

Já que dás luz a toda a escuridão

E tens pena de tudo quanto é triste,
Tem dó de mim também, Senhora Lua!



De mãos postas

Vento sem Norte, leva-me onde vais:
Aos Céus distantes, às planícies rasas!
Que eu rasteje contigo nos trigais
Ou me perca, a subir, num mundo de asas!

Fumo alastrando, lento, dos casais

 Alma das chamas a ascender em brasas! 
Leva a minha alma em tuas espirais
Quando, num beijo, o Céu e a terra casas.

Sol, girassol aberto em claridade,

Que iluminas o justo e o pecador,
Sê também meu irmão e meu amigo.

Ó vento! Ó fumo! Ó Sol! Tende piedade!

Quero ir seja onde for e com quem for,
Contanto que não fique só comigo!!!




POEMAS



Testamento  (1)

       Para o meu Nuno António

Filho: dou-te a alegria capitosa
Mãe de todas as esperanças
E dos mais altos ideais.
A alegria inconsciente e vitoriosa
Que há nos lábios das crianças
E nas asas dos pardais.



Deixo-te o verde tenro das folhagens,
O rumor dos arvoredos.
As ondas incontidas e selvagens
Vestindo com inéditas roupagens
Os corpos angulosos dos rochedos.



Deixo-te a sinfonia das rajadas
E a orquestra das velas desfraldadas
Que o vento rege com as mãos eólias.
O oiro da giesta em flor, na solidão do atalho
E as pérolas puríssimas do orvalho
Nas puríssimas folhas das magnólias.



Deixo-te a cor azul das águas quietas
E o vermelho das grandes convulsões.
A cor, que se desdobra em mil facetas,
Que é modéstia nos tons das violetas
E vaidade nos leques dos pavões.



Fica-te o bem das chuvas transparentes,
O seu corpo de grande iluminada
Mergulhando na terra as mãos ausentes
E deixando no seio das sementes
A certeza da fome saciada.



Deixo-te os trevos livres e espontâneos
Cobrindo a nudez do prado
E das ravinas desertas.
O olhar adulto e rubro dos gerânios
Junto do olhar curioso e perfumado
Das corolas mal abertas.



Deixo-te as madrugadas e os poentes,
O Sol em brasa, a vastidão dos gelos,
A grandeza do mar, o sulco dos ribeiros
A melodia viva das nascentes
Que é vinho nas artérias dos bacelos
E sangue nas raízes dos sobreiros.



Deixo-te a Lua, altiva na subida...
Também te deixo a voz dos rouxinóis
E o estranho sortilégio dos seus cantos.
A coragem bravia e desmedida,
Apoteose na alma dos heróis
E resplendor no coração dos santos.



Deixo-te sonhos modestos
Ou um esplendor dum sonho mais fecundo
Que em ti produza inatingíveis brilhos.
Deixo-te os braços honestos
Com que hás-de vencer o mundo
E semear o pão para os teus filhos.



Deixo-te a fé no bem, cravos aos molhos,
As pedras do sal bendito.
Deixo-te a luz purinha e sem abrolhos
Para que a bebam teus olhos
E embriagues a alma de Infinito.



Filho: deixo-te o germe das venturas
Ao alcance do teu braço.
As estradas floridas e seguras
E mais o livro aberto das Alturas
E os versos pobrezinhos que te faço.



Ensinei-te o caminho da Verdade:
Já sabes o caminho a percorrer.
Deixo-te Deus na alma sem maldade
E a riqueza sem par da mocidade
E a divina alegria de viver!

(1) - 1o. prêmio de poesia lírica nos Jogos Florais da Emissora Nacional de 1948.





"Larguetto"


Não sei como vai ser
Quando, um dia, eu morrer!



Quem há-de ir para a praia
Com as ondas falar, 
Se mais ninguém, como eu,
Entende a voz do mar?
Quem há-de padecer
Neste mundo de abrolhos
E quem há-de chorar
Se eu já não tiver olhos?
Quem buscará no Céu
Tantos dias a par,
A nascente Lua
Para beber o luar?
Que se há-de erguer cedinho
Antes da cotovia,
Para ser a primeira
A dar "Bom-dia" ao dia?
Quem se há-de recostar
Na terra fresca e mole
E embriagar-se de Céu
E encharcar-se de Sol?
Quem há-de perfumar
A casa com junquilho
E a acabar de fazer
O bibe do meu filho?
Quem há-de ir pela estrada
Com passos levezinhos
Para não magoar
As pedras dos caminhos?
Quem há-de olhar o Espaço
Quando os lábios se calam
E compreender a luz
Com que as Estrelas falam?
Quem vê nas andorinhas
Regressadas de Aléns,
As que partiram filhas
E já voltaram mães?
Depois de se acabarem
Os meus dias adversos,
Quem mais há-de sonhar
E quem mais fará versos?
Quando eu me for embora
Sem luxos de etiquetas,
Quem verá uma jóia
Num ramo de violetas?
Quem há-de amar meu lar
Tanto como eu lhe quero,
E regar os meus vasos
E ler o meu Antero?
Como hão-de abrir mais rosas
Sem mim, ao deus-dará?
Como há-de haver mais Sol
Se não me aquecerá?


Bem digo eu que ao morrer,
Não sei como vai ser!



Exaltação da liberdade


Meu pensamento, em rasgos soberanos
Sem limite nem meta,
Sempre a girar em destemidas rondas,
É livre como espumas dos oceanos
Fugidas em linha recta
Da linha curva das ondas.



Sem atender aos riscos das procelas,
Firme, da rigidez dos alabastros,
Certeiro como o golpe dum açoite,
É livre como o brilho das Estrelas
Limitadas ao âmbito dos astros,
Prisioneiras nos cárceres da noite.



Livre como as clematites
Alastrando os tentáculos frondentes
Na planura do vale ou na altivez da serra.
Livre! Da liberdade sem limites!
Tão livre como as águas das nascentes
Escorrendo dos lábios húmidos da terra.



Livre como a essência duma prece
Que se evola das convulsões terrenas
E vai de coração a coração
Tão livre como o vento que obedece
Apenas 
Ao capricho da própria inspiração.



Liberdade no sonho, mau ou bom,
Que escarnece das algemas
E das carnes prisioneiras.
Liberdade fantástica do som
Que não respeita o jugo de sistemas
Nem contorno de fronteiras.



Liberdade que ri da minha vida,
Que não teme surpresas nem escolhos,
Que não tem mal nem reversos.
Liberdade sem medida
Que entorna claridade nos meus olhos
E põe asas nos meus versos.



E o meu coração esquivo,
Abismo de mil segredos,
Do bem e do mal que sou,
É relicário exclusivo
Daquela liberdade que sem medos
Vive tudo que eu não vivo
E vai mesmo onde eu não vou!



Superior a justiças e a injustiças,
O meu trágico ser, caudal de gelo e lume,
Gama incolor de todos os matizes,
É como as rosas submissas
Que se vingam na liberdade do perfume
Da sujeição das raízes!





Cântico do regresso


Não tenhais pena de mim
Que já tenho a liberdade
De partir ou de ficar,
De rir quando quiser rir,
Chorar se quiser chorar.
Minha alma já tem licença
De se dar ou de negar-se
E de se olhar a si mesma
Sem rodeios nem disfarce.
E já posso dar à luz
Os versos que em mim latejam
E olhar a Lua de frente
Sem medo que os outros vejam.
Acabaram atitudes
Que de mim tanto diferem,
Pois agora sou quem sou
E não sou o que os mais querem.
Não tenhais pena de mim.
Passam as horas ditosas.
Quero sonhos, tenho sonhos.
Quero rosas, tenho rosas!
A luz que me doira toda
É um afago doce e mole.
Olho o Sol no Céu distante
E sinto meu todo o Sol!
É para alegrar meus olhos
Que o mar de espumas se touca
E o gosto alacre dos frutos
Nasceu para a minha boca.
Tive sede e não tive água.
Mas agora, vede, vede:
As águas brotam das fontes...
Já posso matar a sede!
O luar bate à janela
Com cautela, devagar.
Eu abro a janela toda
E a Lua já pode entrar!
Ó vida injusta e maldosa:
Não tiveste dó de mim!
Já me disseste que não...
Agora digo eu que sim!
Passei noites, passei dias
A gemer e a soluçar...
Mas acabou-se a tristeza!
Hei-de cantar e cantar!
Mudei eu? Mudou a vida?
Qualquer coisa se passou.
Mas não importa saber
Qual de nós duas mudou.
Conheci terras e gentes.
Vi artes, rocei abrolhos.
Tenho pedaços do mundo
Agarrados aos meus olhos.
Encontrei cidades mortas
Que a ambição de alguns perdeu.
Quanto mais vejo o dos outros
Mas quero àquilo que é meu.
Mas foi-se-me o pesadelo.
Eis-me de volta outra vez
Sob o meu Céu tão azul,
O meu Céu tão português!
Agora hei-de voar longe,
Das nuvens quase vizinha
Porque eu só não tinha Céu,
Que as asas já eu as tinha!
E ninguém venha dizer-me
Que eu não estou bem onde estou
Que o meu caminho é só meu
E eu é que sei onde vou!





Acção de graças    
        A Emília de Sousa Costa

Louvada seja a vida
No bem duma risada
Ou numa lágrima vertida.
Louvada seja a vida
Que para ser louvada
Basta apenas ser vida.



Louvada seja a morte
Que em si mesma reflecte
Os mistérios que tece.
Que a todos se promete
E de ninguém se esquece.



Louvado seja o mar
Com mansidões de rio
Ou como abismo fundo.
Louvado seja o mar,
Imensa lágrima a rolar
Pela face do mundo.



Louvada seja a terra
No gesto maternal e puro
Das concepções mais francas.
Louvada seja a terra
Que faz brotar do ventre escuro
As açucenas brancas.



Louvado seja o Sol
Sem par nem inimigo,
Que doira e que trabalha.
Louvado seja o Sol
Sem pejo nem cansço
Iluminando num abraço
Todo um campo de trigo
E um campo de batalha.



Louvada seja a fonte
Humilde e recatada,
Dos pobres e dos ricos
Consolo e bem.
Louvada seja a fonte
Aqui e acolá,
Nos montes ou na estrada
E que a todos se dá
Sem perguntar a quem.



Louvado seja o fogo
Que queima veia a veia
Até ao coração.
Louvado seja o fogo
Que acende Estrelas na candeia
E coze o pão.



Louvado seja o aroma
Que é alma e cor
Dum jacinto donzel.
Louvado seja o aroma
Que inda pouco era flor
E agora já é mel.



Louvados os meus olhos
Que não têm mentira nem delito
Nem mal que aos outros dêem.
Louvados os meus olhos
Que me dão a certeza do Infinito
Que choram e que riem e que vêem.



Louvadas minhas mãos
Que sabem persuadir e socorrer
E são frágeis e calmas como o luar.
Louvadas minhas mãos
No gesto heróico de colher
E no acto fecundo de semear.



Louvados meus cabelos
Caídos, com franqueza,
Sem medos nem assombros.
Louvados meus cabelos
Vestindo de pureza
A nudez dos meus ombros.



Louvada minha boca
Feliz ou infeliz
Ao sabor duma sina boa ou má.
Louvada minha boca
Nas orações que diz
Ou nos beijos que dá.



Louvada seja eu
Nos momentos de enlevo
Ou nos instantes em declive.
Louvada seja eu
Nos poemas que escrevo
E nos filhos que tive.



Louvado seja Deus
Pelo Sol, pela terra, pelo pão,
Pelo gosto dos frutos,
Pelo aroma das rosas,
Pela bênção de todos os minutos,
Pelas papoilas de carmim,
Pelas estrelas, pela escuridão,
Pelas manhãs radiosas,
Por ter criado toda a Criação
E por me ter criado a mim!!!




Doença

Numa cadência lenta, lenta, lenta,
O relógio caminha, devagar.
Hora após hora a inquietação aumenta.
Como é triste esta noite sem luar!



Há um calor de febre que incomoda.
O medo espreita. Ninguém fala alto.
Palpita qualquer coisa vaga em roda
Que põe o coração sobressaltado.



A luz está velada tristemente.
Até mesmo os espelhos estão baços.
Para manter o sono do doente
Todos caminham abafando os passos.



Há pouco o telefone retiniu.
De longe, alguém pedia informações.
"Quase na mesma!" E a voz triste partiu
Sem levar nem deixar consolações.



E a noite avança. E faz frio agora.
Tremo e não posso mais estar de pé.
Refresca sempre quando vem a aurora...
Um de nós lembra um pouco de café.



O doente acordou. Ligeira e tensa
Só eu entro no quarto em passo vivo.
E aquele bafo quente de doença
Tornou-se inda maior, quase agressivo.



Fui buscar gelo. O pulso não está calmo.
Cento e tal pulsações. Ó meu Jesus!
Como conheço o quarto palmo a palmo,
Nem necessito acender a luz.



Depois, tudo voltou ao que era dantes.
Outra vez o silêncio e a escuridão.
E lentos, lentos, caem os instantes
Com a mesma enervante lentidão.



O médico, amanhã, que irá dizer!
Mais injeções, outros remédios mais...
Já se aproxima o tom do alvorecer.
Já começou a orquestra dos pardais.



Creio que são 6 horas. Fatigada
A um "maple" dou meu corpo ao abandono.
Sei que preciso estar bem acordada,
Mas que fazer, se tenho tanto sono!



Nem sei há quanto tempo me não deito,
Hoje como ontem, tal como amanhã...
O meu cabelo mórbido e desfeito
Toma a cor azulada da manhã.



Presto atenção: julguei ouvir rumor.
Mentiram-me os ouvidos macerados.
E entrego-me outra vez ao bom torpor
Que me distende os músculos cansados.



Lá fora a luz do Sol já se adivinha.
Renasce a vida indômita e violenta.
Só o relógio, devagar, caminha
Numa cadência lenta, lenta, lenta...






Poema


Inútil a ansiedade que consome
Meu coração aflito.
Inúteis esta sede e esta fome
De altura e de Infinito.



Inútil este apecto sorridente
Na atitude forçada
Que a todos os momentos se renova.
Inúteis todo o oiro do Poente
E a lâmina gelada 
Da Lua-nova.



Inúteis minha inquietação inglória
E os sacrifícios que pratico
E os infernais momentos de vitória
E os instantes divinos em que abdico.



Inúteis as nascentes murmurantes.
Inúteis as Estrelas e as camélias.
Inúteis as risadas das bacantes
E o loiro riso das Ofélias.



Inútil a apoteose triunfal
Da brancura da neve,
Do vermelho das brasas.
Inútil este gesto ascensional
Da curva dos meus braços feitos asas.



Inútil o perfume dos lilases
Suavizando a tarde inquieta.
Inútil, como os sonhos vãos, tenazes,
Da minha alma de artista e de poeta.



Inútil a conquista do impossível.
Inúteis a frescura das ramadas
Mais o ardor calcinante da charneca.
Inúteis os abismos e as cumiadas
E a minha boca incompreensível
Que ora reza, ora peca.



Inutilmente foi que caminhei
Numa senda sem curvas de pecado
Inúteis
Todos os beijos que não dei
E quantos tenho dado.



Inútil a expressão do girassol
Olhando com pasmada admiração.
Inútil, como a luz do Sol
E como a escuridão.



Inúteis os espinhos do meu trilho...
A amargura que a alma me enlutou...
O meu perdido bem...
Inúteis
Os braços com que eu embalei meu filho
E os braços com que me embalou
A minha mãe.



Inútil o calor duma oração
Como o remorso de quem erra.
Inúteis
As pulsações de cada coração
E o esforço cósmico da terra.



Inútil minha vida inteira
Embora ao riso chame seu
Ou a tortura a dome.
Inútil foi a minha sementeira,
Que o meu trigo nasceu
Junto de quem não tinha fome.



Inútil este anseio indefinido
Que me escraviza os passos
E os sentidos me algema.
Inúteis o meu pranto e os meus cansaços.
Inúteis, como as nuvens dos Espaços.
Inúteis, como os versos deste poema.



Cântico pagão

     Para a Maria de Rezende

Porque creio no dia, sou pagã!
Porque acredito
No brilho das Estrelas,
No riso da manhã
E no azul do Infinito,
Sou pagã!
Porque sei escutar
O som plangente
Do mar
Em doce arrulho
Ou em gritos de demente,
E compreendo o silêncio deprimente
Do Sol de Julho,
Sou pagã!
Porque falo sòzinha com a noite
E sinto os seus martírios
E sei ouvir as vozes da floresta
E entender o amarelo da giesta
E o branco astral que veste os lírios,
Sou pagã!
Porque conheço as pedras dos atalhos,
Porque sinto o meu sangue igual ao húmos
Que dá sabor aos bagos da romã
E fortalece os troncos dos carvalhos,
Sou pagã!
Porque converso com a luz
Cinzenta dos nevoeiros
E das tardinhas suaves;
Porque padeço a dor dos espinheiros,
Porque os meus olhos voam
Com as asas das aves,
Sou pagã!
Porque sei ver o encantamento
Do temporal convulso
Vesgastando os rochedos levantados
E as ervinhas rasteiras;
Porque deixo que o vento
Leve no mesmo impulso
Os meus cabelos desgrenhados
E as palmas desgrenhadas das palmeiras,
Sou pagã!
Porque aos meus olhos é familiar
A cor das nuvens que a brisa impele
E porque encontro laivos de luar
No tom da minha pele,
Sou pagã!
Porque sou rosa em flor e Estrela acesa!
Trigo que já é pão
E vinho em cada mesa!
Porque das coisas todas sou irmã!
Pois se eu entendo o Sol,
E a lava em combustão,
E o rijo das nortadas,
E o balir das ovelhas,
E as espumas salgadas,
E as papilas vermelhas,
Por que não hei-de ser pagã?




Poema em 4 cantos
         Para a Laura Chaves

E as ondas beijaram
Meu corpo vencido
Pelo temporal.
E envolvi-me toda
Num manto de espuma
E a carne molhada
Sabia-me a sal.
E fiz lindas jóias com búzios, corais...
E açoitei navios
E escarpas sombrias
E entornei areias
Em cem litorais.
E no meu poder
De grande senhor
Sem fim nem limite,
Embalei as quilhas,
Despedacei velas,
Fui Adamastor
E fui Anfitrite.
E no movimento
De inéditas danças,
Elevei o dorso
Em vagas ciclópicas
E beijei nas praias
Os pés das crianças.
E as ondas e eu
Temos atitudes
Que ora são ferozes,
Ora são fidalgas.
De dia passeamos
Queimadas de Sol
E à noite dormimos
Rolando, rolando,
Nos braços das algas.
Rolando, rolando
E sempre a rolar...
Touquei-me de conchas,
Falei aos rochedos,
Subi nas marés,
Nas marés desci,
Rolando, rolando,
Tornando a rolar...
Abracei a Terra
Num abraço de água...

...E fui Mar!



.....................................



E mordi a polpa

Rosada dos figos
E sorvi o sumo
De oiro das laranjas
E flori nas rosas
E aloirei nos trigos.
Meu sangue tingiu
Papoulas e cravos...
Ágeis como gamos
Serviram de molde
Os meus dedos brancos
Aos dedos dos ramos.
E ao ver-me passar
Num passo ritmado
Por caminhos francos,
As hastes copiavam
A lenta cadência
Que ondeia os meus flancos.
Na curva dos vales
Fui humildezinha.
Na crista dos montes
Mostrei a arrogância
De altiva rainha.
Fúteis e extraviadas,
Sem mal nem disfarce,
Deixei que as Estrelas
Viessem mirar-se 
Nas águas paradas.
Fui tão generosa
Que deixei rasgar
Meus seios sadios
Em rubras crateras
E em leitos de rios.
E dei o meu corpo
De virgem sagrada
À fome dos homens
E aos golpes da enxada.
E dentro de mim
Vibraram, vibraram
Num canto sem fim
De vários matizes,
Purezas de fonte
E alturas de serra.
Bebi toda a chuva,
Fecundei os bolbos,
Perfumei as flores,
Dei força às raízes...

...E fui Terra!



...................................



E olhei a Amplidão

Sossegada e calma
E o azul do Infinito
Fez-me azul a alma.
E com Sol teci
Rendas e brocados
Dum vestido loiro.
E fiz das Estrelas
Os versos rimados
Dum poema de oiro.
A Lua branquinha
Tanto, tanto olhei
Sem me fatogar,
Que tenho nos olhos
Vestígios da Lua,
Ecos de luar.
E as nuvens cobriram
A minha tristeza
Da graça dum véu.
E entendendo os atros
E a luz da manhã
E as trevas da noire,
Deixei de ser Terra...
...E fui Céu!


................................



Um dia encontrei-te

Na curva da estrada
E fomos amigos!
E dei-te esta boca
Ainda rosada
Da polpa dos figos.
Meu sangue, sem ruído,
Vibrou-me nas veias
Com doçura igual
Ao canto das rolas.
Meu sangue vermelho
Que havia tingido
Cravos e papoulas.
E a vida moldou-a
As mãos duma fada
Sem dor nem conflito.
E dei-te a minha alma
Toda ela encharcada
Do azul do Infinito.
E fui-te mostrar
Meu vestido loiro
De rendas doiradas.
E li-te baixinho
O poema de oiro
De Estrelas rimadas.
E dei-te os meus olhos.
E dei-te com eles
A minha alma nua.
Meus olhos que têm
Ecos de luar,
Vestígios de Lua,
E a ti me amparei.
Com amor de crente
Teus passos segui,
Eu, que antigamente
No trigo aloirei,
Nas rosas flori.
Prenderam meus dedos
Tuas mãos ousadas...
Os meus dedos brancos
Que foram modelo
Das verdes ramadas.
E Mar, Céu e Terra
Perdidos na bruma
De mim se afastaram.
E dei-te o meu corpo
Vestido de espuma
Que as ondas beijaram.
E os dois, lado a lado
Seguimos a par.
E todo o passado
Se esbate e dilui
E em mim se morreu.
E nunca mais fui
Nem Terra nem Céu
Nas águas do Mar...
...E fui Eu!
...E fui Eu!
  ...E fui Eu!!!




Canção rebelde

Foi quando me disseram
Que não somhasse,
Que eu ergui o meu sonho inda mais alto.
Foi quando no meu trilho sem fronteira
Levantaram montanhas de amargura,
Que eu transpus a barreira
Dum salto.


Foi quando os mais tentaram extinguir

O Sol, que eu afastei
A cinza que encobria as brasas.
Quando quiseram
Tolher-me os passos,
Foi que deixei
Crescer as asas.

E no momento em que rasguei os Céus,

Momento que me libertou
E que de toda a alma eu abençoo,
Os outros limitando-me a ousadia
Fecharam-me os Espaços,
E eu inda mais abria
A curva do meu voo.


Trancaram-me as janelas

Para não ver a Lua
E eu mais me embriaguei de luar.
Puseram sobre a minha boca
A mão pesada e fria do silêncio
E eu tive mais desejos de cantar.


Vendaram os meus olhos

Só para que não visse
O meu caminho até ao fim...
Disseram que eu
Não era nada
E eu senti-me crescer dentro de mim!


Tão humilde como eu era,

Para que desejar
As mais belas alturas
Da Natureza?
E eu desejei ainda com mais fé
E todo o mundo foi pequeno até
Para toda a minha ânsia de beleza.


Procuraram mostrar-me

Que a minha vida era um zero
Na grande soma dos anos.
Que eu não passava de uma gota de água...
E eu olhei com desdém
Os oceanos!


Que em minhas mãos, meus dedos pobrezinhos

Nem sequer mereciam
O dom das pedras raras.
E as minhas mãos leitosas
Enriquecendo de carinhos,
Foram mais poderosas
Que as mãos dos ventos desflorando as searas.


Contaram os meus dias remanentes.

Que eu já não tinha muito para andar
Na estrada...
E eu senti o meu sangue latejar
No ventre oculto das sementes
E nas veias da flor desabrochada.


E quiseram fechar-me

Entre as quatro paredes duma casa,
Ai!, faminta de todas
As fomes,
Ai!, sedenta de todas
As sedes!
Mas a minha alma soube libertar-me
E deu-me o azul sem fim dos Infinitos
Onde não nem casas nem paredes.


Quebrou-me a grade

A incompreensão dos mais!
E fui livre da minha própria liberdade!
E colori a minha face!
E conquistei a rebeldia em que me exalto,
Pois foi apenas quando me disseram
Que não sonhasse,
Que eu ergui o meu sonho inda mais alto!





Bacanal de luz

Na luminosidade
Desta manhã divina,
Eu me dou toda ao Sol!

E a luz vinda da Altura

Tem o aroma do mel
Que ainda sabe a flores.
E queima os meus cabelos
E encendeia-me a pele
E cinge-me a cintura
E contorna-me os flancos
E cobre de esplendores
Meus pés leves e brancos
E é louca de ousadia,
De mudos desassombros,
A afagar doidamente
A curva dos meus ombros
E diz aos meus ouvidos
Inviolados segredos
E doira as minhas mãos
E escorre entre os meus dedos
E beija a minha boca
Como beija a das rosas
E veste-me os dois seios
De rendas luminosas
E trata-me por "tu"
Num tom baixo e culpado
E deixa-me na carne
O gosto do pecado
E percorre-me o corpo
A luz das suas mãos
E acende labaredas
Nos meus olhos pagãos
E aquece os meus sentidos
Sem disfarces nem peias,
É Sol tornado sangue
Que me corre nas veias.
E é tão grande a magia
Dessa penetração,
Que tenho Sol na alma
E Sol no coração!
E ébria de claridade
Que me vence e domina,
Eu me dou toda ao Sol
Na luminosidade
Desta manhã divina!



Dei-me à vida

Dei-me toda sem cálculos
Nem esperanças.
Talvez até
Só por fatalidade.
Entreguei-me sem pejo
E mostrei o meu beijo
Em plena claridade.
Os braços estendi-os louca, louca,
Numa ternura 
desconhecida
E à vida ofereci a minha boca
E a minha própria boca
Soube-me a vida.
Toda me dei
Embriagada de prazer,
Aberta a alma, par em par.
E muito em troca recebi...
Ah!, mas que importa receber
A quem tem tanto para dar!
Dei-me toda sem cálculos
Nem esperanças,
Numa impensada generosidade
E na pureza atávica
Das crianças.
Toda me dei alucinadamente
Nos castelos que ergui,
Nos sonhos que sonhei.
Dei-me porque sofri
E porque fui contente...
Dei-me... porque me dei!
E deixei de ser eu
E abriu-se em rosas
A minha mocidade,
E o meu corpo viveu
Num momento de sonho
A Eternidade.
Toda me dei
Sem receio da luta
Nem do peso da cruz
Nem das horas de mágoa.
Toda, toda me dei
Nítida e absoluta
Como um raio de luz
E transparente como um grito de água!




Poema da morte distante

Foi no silêncio cúmplice da noite.
Sonhei-te e tu vieste
Sem que eu te visse.
Alonguei os meus braços para ti
E tu prendeste-me
Em teus braços ausentes.
E ouvi a tua voz
Murmurando baixinho
Aos meus ouvidos
As frases irremediáveis
Que nunca me disseste.
E a tua boca procurou a minha
Como se fosse apenas uma hipótese
O abismo de vida
Que nos separa.
E eu senti a ansiedade
Da tua alma faminta
Nos beijos
Que me não deste.
E quiseste levar-me 
Contigo
Para uma viagem
De onde nunca mais se volta...
E eu gritei de alegria e sobressalto
E o meu grito acordou
A escuridão
Que toda esta loucura que sonhei
Foi no silêncio cúmplice da noite.




O meu sangue cantou...            
           Para a minha Irmã

O meu sangue cantou
Dentro da minha alma
E no silêncio alvoroçado 
Das minhas veias.
Cantou no verde-azul do mar salgado,
No branco das espumas
E no tom fulvo das areias.
O meu sangue cantou
No ritmo dos minutos,
Nas raízes das plantas
E no sumo dos frutos.
O meu sangue cantou
Vivo e profundo
Nos mil rios da terra
— As artérias do mundo!
O meu sangue cantou
Na doirada alegria
Do Sol,
Do mel dos favos,
No gesto verde
Das árvores
E no aroma vermelho
Dos cravos.
O meu sangue cantou
Nas vibrações estranhas, nos ardores
Das horas mais inquietas:
No afã dos cavadores
E no sonho dos poetas.
O meu sangue cantou
Em translúcidas notas
Nas águas em cachão
E no veio subtil.
O meu sangue cantou
Na boca das nascentes,
Na fartura do pão
E nos lábios de Abril.
Cantou nas pulsações das brasas,
Na voz de todos 
Os homens,
No movimento
De todas
As asas.
O meu sangue cantou
No Sol do meio-dia,
Na luz do Sete-estrelo,
Na voz da ventania.
O meu sangue cantou
Nas noites carmesins:
No rufo dos tambores,
No grito das cigarras,
No toque dos clarins.
O meu sangue cantou
Nas bocas que se dão,
Nos corpos enlaçados,
Nos ais que o vento ouviu
E que o vento levou...
Nos ventres fecundados,
No infinito dos Céus,
No coração da vida,
Na certeza de Deus,
O meu sangue cantou,
O meu sangue cantou!!!



Negação

Olhei para as aves...
Que azinhas serenas!
Também quis voar...
Mas só tinha penas!
Ai! que sede horrível
O Sol me deixou!
Fui beber à fonte
E a fonte secou!
Ó rosa encarnada!
Aroma de lume!
Mas irou-se o vento
E foi-se o perfume!
Que bom descansar
Deitada na areia...
Ai! foge da praia
Que é já maré-cheia!
Que Sol tão quentinho!
Meu Abril eterno!
Não andes à chuva.
Não vês que é inverno?
Chorei no caminho...
Meu Deus, que trabalho,
Que lidas poupei
Às gotas de orvalho!
Olhei para a Lua...
Que luzinha sã!
Tentei agarrá-la...
Já era manhã!
Bati à tua alma...
... A porta fechada!
Voltei para a rua
Sem alma nem nada!
E chamei a vida
De incerto porvir,
E a vida me disse
Que fosse dormir.
Então disse à morte
Que estava com sono...
E a morte deixou-me
Sem dono, sem dono...
Ó sina cruel!
Tristíssima sorte:
Nem me quer a vida,
Nem me leva a morte!



Nevrose

Chega até mim o "brouhaha" da rua.
Vozes agudas, outras guturais.
Um mal-estar em tudo se insinua.
Tenho os nervos de pé. Não posso mais!


O ruído alastra, como que se expande,

Dentro de casa e na minha alma nua.
Aré parece que o meu espelho grande
reflecte o "brouhaha" que vem da rua.


Corri as gelosias sem efeito.

Este som louco nada o atenua.
Até julgo sentir bater no peito
As pulsações do "brouhaha" da rua.


Tapo os ouvidos com as mãos frementes

E ainda mais o eco se acentua.
E em minhas veias túmidas e ardentes
Sobe a maré do "brouhaha" da rua.


Ah! Deixai-me fugir por dó, por esmola!

Mas o vento faz medo e não há Lua.
E a minha alma, a tremer, toda se enrola
No manto irreal do "brouhaha" da rua.


E a vida chega ao fim, num desenlace

Que nada evita nem apazigua,
Como se o mundo inteiro naufragasse
No grande mar do "brouhaha" da rua!



  
Glória!

Para a Maria da Graça Varela Cid

Fui eu
Que dei à Lua a curva dos alfanjes
E emprestei o meu sangue
Às veias da papoila
E às artérias da olaia.
Sim, eu!, que abri na terra a serpente do Ganges
E ergui ao Céu o grito agudo do Himalaia.


Sim, eu!,

Que conheci os íodolos sagrados
E os místicos arroubos.
Sim, eu!, que de olhos deslumbrados
Vi erguer as colunas do Partenon
E Francisco de Assis falando aos lobos.

Sim, eu!,

Com meu olhar eterno
Que acendi as Estrelas
Na escuridão
E que depois voltando à vida dos humanos
Viajei com Virgílio pelo Inferno
E fiz justiça ao pé de Salomão.

Sim, eu!,

Que ouvi tanger a cítara na Assíria
E em Atenas ouvi os sons do aulo.
Sim, eu!,
Que assombrada de espantos
Vi compor os discursos de Protágoras
Mais as epístolas de Paulo.

Floriram rosas onde eu pus os pés

E adoçou meu olhar
A primeira colmeia.
Fui eu que limitei o mar
E opus à fúria das marés
O abraço fragilíssimo da areia


Sim, eu!,

Que fiz brotar as folhas do arvoredo
E colori a tarde ao lusco-fusco
E arredondei as ondas cérulas.
Sim, eu!, que abrindo o coração
Do primeiro molusco,
Desvendei o segredo
De milhares de pérolas.

Sim, eu!,

Que na Amplidão parei o Sol
Por mandatos ignotos.
Sim, eu!, que numa tarde
Divinamente calma
Ensinei a cantar o rouxinol
E a abrir a carne
Da flor do lotus.

Sim, eu!,

Que enxuguei com fraterna compaixão,
Com dó sem fim,
Os prantos torturados
Da maior pena,
Dos olhos sem perdão 
Do mísero Caim,
Aos olhos perdoados
Da pobre Madalena.

Sim, eu!,

Que perfumei as violetas
E dei às lenhas o calor das brasas
E ao tigre força e músculos.
Sim, eu!,
Que desenhei as asas
Das borboletas
E escrevi a elegia dos crepúsculos.

Sim, eu!,

Que dei sabiás e girassóis ao mundo
E à madrugada os tons do rosicler
Mais às bocas sem pão o trigo farto.
Eu, que tornei fecundo
O homem,
Santificando
A primeira mulher
Nos gritos do primeiro parto.

Sim, eu!,

Que as tempestades comandei
E pus nas mãos da ventania
Um trágico açoite.
Sim, eu!,
Que aos tempos ordenei
A duração do dia
E a fronteira da noite.

Sim, eu!,

Dono e senhor dos apogeus,
Pois toda a glória canta em mim.
Sim, eu!!!
E os séculos são todos meus,
Que a alma do poeta é como Deus:
Nunca principiou e nunca terá fim! 


...




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