DA LUZ QUE VEM DO ALTO (1950)




















(DA LUZ QUE VEM DO ALTO,  Poemas, MARIA HELENA, 1950, Lisboa,  (Porto-
Imprensa Portuguesa), 136 páginas)







Este livro foi premiado por unanimidade
no CONCURSO INTERNACIONAL DE POESIA em
Siracusa (Itália) entre concorrentes de todo o mundo:
"... segnalato ad unanimità per la belezza, l’umanità, il lirismo e il seatimento della poesia".

Foi o primeiro livro Português escrito por uma mulher a

ser distinguido internacionalmente.




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À MEMÓRIA DE MINHA IRMÃ


MARIA FERNANDA


ÀQUELA QUE VEIO AO MUNDO COMIGO,

SEMPRE CAMINHOU A MEU LADO, E UM DIA
ME DEIXOU SÒZINHA NA ESTRADA...



Canção de embalar

Cerraram-se os teus olhos bons, absortos
Numa visão levíssima de espuma
Em busca de outros sonhos, de outras vidas:
Um resplendor de luz em teus cabelos mortos
E um prego em cada uma
Das tuas mãos vencidas.


Dorme longe de todos os tormentos

Entre anjos, teus irmãos.
Eu chorarei por ti a todos os momentos
E por ti pensarei teus pensamentos
E o gesto imitarei das tuas mãos.


Dorme o teu sono bom, sem incertezas

Nem ansiedades,
Ao calor renovado de mil preces,
Que neste mundo enorme de tristezas
Fiquei eu para ter as infernais saudades
Que Deus não quis que tu tivesses.


Repousa da injustíssima subida

Que fizeste por cá
Entre nuvens pesadas de procela.
Dorme bem longe desta vida,
Que esta vida é tão má,
Que os bons não cabem nela.


Deixa dormir teu coração cansado,

Eu andarei sòzinha pelas ruas
Presa de imensa mágoa que me tolhe,
E verei pelas duas o Sol-nado,
E colherei papoilas pelas duas,
E semearei o pão que a tua mão não colhe.


Aos teus ouvidos diz que vão dormir

No sono infindo
Que não tem despertar.
Eu fiquei para ouvir
O barulho das lágrimas caindo
E o ruído das nuvens a passar...


Diz aos teus olhos doloridos

Que podem já adormecer
Nessa calma que há dentro das capelas.
Eu fiquei para ver
O perfume dos cravos mal floridos
E o silêncio brilhante das Estrelas.


À tua boca diz que tenha calma.

Que deixe as convulsões
Para as bocas escravas,
Porque eu serei a alma da tua alma
E rezarei as suas orações
E beijarei aqueles que beijavas.


Dorme cercada por fulgentes brilhos,

Mais feliz do que um rei,
Sem amargor, sem lágrimas, sem ais.
Eu chamarei meus filhos aos teus filhos
E pelas duas amarei
Os nossos Pais. 


Dorme, tu que na vida te feriste

Sem desesperos nem blasfêmias
Deixando todos que eram teus.
Dorme, que eu seguirei a minha vida triste
Até que um dia continuemos gémeas
Junto de Deus!

(17-03-1950)




Cântico da ressurreição

                         Para o meu Pai

Perto ou longe, (que faz?) violenta e calma,
Floco de neve ou lume em fogaréu,
Há-de abrir-se em azul toda a minha alma:
Seja onde for, o Céu é sempre Céu!

Venha o gume das críticas alheias

E faça em tiras o meu corpo exangue.
Hão-de pulsar febris as minhas veias:
Seja onde for, o sangue é sempre sangue!

Ergam junto de mim montões de abrolhos

E abandonem minha alma sem guarida.
Hão-de florir as rosas e os meus olhos:
Seja onde for, a vida é sempre vida!

Neguem-me o tecto amigo onde me acoite.

Deixem-me só sem guia nem farol.
Hei-de vencer a negridão da noite:
Seja onde for, o Sol é sempre Sol!

Levantem mais a dor que me consome

E me deixa faminto o coração.
Hei-de saber matar a minha fome:
Seja onde for, o pão é sempre pão!

Embora toda a esperança esteja morta

E me afastem do ninho moribundo,
Aqui ou acolá, isso que importa?
Seja onde for, o mundo é sempre mundo!

Amordacem-me os lábios sem luar

Que a escuridão apenas cobre e touca
E hei-de inda agradecer, sorrir, beijar...
Seja onde for, a boca é sempre boca!

Façam-me embora um cerco desleal

Ermo de riso e de clarões de Além,
Não deixarei que me domine o mal:
Seja onde for, o bem é sempre bem!

Queimem as ilusões já derrubadas

Pelas mãos desumanas do amargor.
Reviverei das cinzas apagadas:
Seja onde for, o amor é sempre amor!

Tornem-me rasa como as coisas rasas:

Digam que tudo para mim morreu!
Limitem-me as acções! Quebrem-me as asas!
Seja onde for, eu sempre serei Eu!

(02-08-1950)




De mim para mim


Triste por quê, se o mundo é tão bonito

E tão doce a carícia do luar?
Se há tanto Sol no manto do Infinito
E tantas rendas a vestir o mar?

Como esquecer o sal e o pão bendito

E o perfume das rosas de toucar
E a resistência heróica do granito
E a música das fontes a cantar?

Não te deixes ficar chorosa e presa

No palácio fechado da Tristeza
Sem amparo, sem dia e sem farol.

Unge a tua pobre alma entristecida

Com o sangue balsâmico da vida
E abre as janelas: deixa entrar o Sol! 

(04-12-1949)




Truz-truz

Bateram à minha porta...

Quem seria que bateu?
Abri a porta receosa
Mas na noite silenciosa
Só estava silêncio e eu.


Bateram à minha porta

Com pausado movimento.
No Espaço tranquilo e morno
Não vi sombra nem contorno...
Ah! Teria sido o vento?


Bateram à minha porta...

Devassei longes e a rua.
A paisagem inconsciente
Dormia profundamente...
Ah! teria sido a Lua?


Bateram à minha porta...

Levemente, com brandura...
Quem bateu tão devagar
Sem ter coragem de entrar?
Teria sido a ventura?


Bateram à minha porta...

E ninguém, de Sul a Norte!
Nem bulia o arvoredo...
E sem porquê, tive medo...
Ah! Teria sido a morte?


Bateram à minha porta...

E abriu os olhos, a calma.
Não vi gente nem sinais.
Mas o luar brilhou mais...
Teria sido a tua alma?

Bateram à minha porta

Uma pancada atrevida
No silêncio que acordou
O meu coração pulsou...
Ah! Teria sido a Vida?


À minha porta bateram...

(Não pulses mais, coração!)
Na mudez da noite morta
Quem bateu à minha porta
Foi a minha solidão!

(26-07-1950)





Reconhecimento

Ergo as mãos atrevidas para o Céu

E o Sol não vê nem sente o meu cuidado.
Meu quisera que fosse, apenas meu,
Na luz em flor do dia começado.

Nas minhas mãos a tentação rompeu

Num "crescendo" de ritmo alucinado.
Mas no Infinito o Sol não se rendeu
Ao meu gesto de amor... e de pecado!

E as minhas mãos sòzinhas, sem presente,

Tombadas e feridas nos escolhos,
Mal suportam a cruz dos sonhos vãos.

Mas eu vos agradeço, Deus clemente,

Pois dais ainda à posse dos meus olhos
O que não pode ser das minhas mãos.

(20-08-1950) 





Ab imo
                       Para a minha Mãe

Mãe, Mãe: eu quero ser menina
Outra vez, Mãe!
Vem entrançar os meus cabelos soltos
E arranjar o cestinho da merenda
Que eu todas as manhãs
Levava para a escola, Mãe!

Dá-me de novo a pálida boneca

Que me trouxeste de Paris
Vestidinha de lã
E que dava uns passinhos pelo chão
E fechava os olhitos sem expressão
E dizia "mamã".

Que volte atrás a minha sina:

Dá-me a boneca, Mãe!
Querer-lhe-ei com alma de menina
E ela há-de-me querer a mim também.

Vem-me ensinar de novo a Ave-Maria.

Ó Mãe, vem-me ensinar,
Que de tanto viver tão longe da alegria,
Eu já nem sei rezar!

Mas não me ensines, não,

Na luz da tarde frouxa de quebranto
A fazer bolas de sabão, ó Mãe!,
Que foi por fazer bolas de sabão
Que eu hoje sonho tanto...

Conta-me aquela história pequenina

Do Pedro-Sem,
Que eu quero ser menina
Outra vez, Mãe!

Pega na minha mão rosada:

Leva-me aos cimos da subida
Que eu quero olhar de novo deslumbrada
A paisagem inédita da vida.

Que a minha alma infantil, sem experiência,

Não saiba o que é futuro nem passado,
Porque eu quero beber o filtro da existência
Sem ter na alma o gosto do pecado.

Afasta-me do mal que me domina.

Leva-me para o bem,
Que eu quero ser menina
Outra vez, Mãe!

Não me ensines a ler.

Deixa-me ser singela, natural.
Para que o mundo me seduza e encante
Eu possa bem desconhecer
Os "Pensamentos" de Pascal
E as "Críticas" de Kant.

Livra-me das ciladas da má sorte

E da amargura consentida
Que esse mundo contém,
E embala-me em teu seio até que venha a morte
Que eu quero ser menina toda a vida,
Mãe!!! 

(07-04-1950)




Cinza fria

Fechei os olhos mais o coração.

Não quis ver a mentira da subida.
Depois a vida... era um brinquedo, a vida,
Que eu comandava com a minha mão.

Fui mais além. Mudei de direcção.

(Ó minha alma negada e sem guarida!)
E ri, e ri, numa expressão mentida
E fui outra sem mim... e sem razão!

Só na dor eu me encontro e me descubro!

Era falsa a barreira da alegria
Que ousei erguer para evitar a queda,

Pois ainda que o fogo leve ao rubro,

Há sempre um travo mau a cinza fria
No gosto ardente duma labareda!

(22-07-1949)





Poema duma noite sem Estrelas

A noite já viveu mais da metade...
E eu não durmo... não posso adormecer!
Ai! a chaga divina da saudade
A doer... a doer...


Não oiço nada...

Ó esperança infecunda e diluída:
Abre as portas de luz da madrugada
E deixa entrar a vida!


Sem a serena graça do luar

Beijando o trigo e as ondas já desfeitas,
Como hei-de acreditar
No cântico do mar
E na alegria das colheitas?


Negro da noite... negro sem perdão!

Meus olhos baços que já nada vedes!
Sofre todas as dores meu coração
E amargam-me na boca
Todas as sedes.


Nem um relâmpago que a rir se afoite

E alumie o negrume do meu ser.
Ai! o silêncio trágico da noite
E esta saudade
A doer... a doer...


Sinto o amargor do solitário monge...

A luz do Sol será uma verdade?
Ah! como o Sol, meu Deus!, inda vem longe
E como faz doer esta saudade!


Pesadelos fantásticos e vãos

Caminham num cortejo singular.
Ó minhas mãos sem beijos noutras mãos!
Que vontade tão grande de beijar!


A negrura teimosa das procelas

Domina, avança, insiste,
Brutal como um açoite.
E a noite sem o manto das Estrelas
É cada vez mais triste
E cada vez mais noite.


E enquanto eu sonho o Sol, a claridade,

Beijos de amor e risos de prazer,
Ai! a divina chaga da saudade
A doer... a doer...

(02-06-1950)





Apenas...

Tudo branquinho do nevão da Lua!
A aragem, nem os ninhos estremece.
A paisagem distende-se e adormece
Num sono cândido de virgem nua.

Há brancuras na solidão da rua...

Um murmúrio suavíssimo de prece...
E a gente, iluminada, sonha e esquece,
Presa do encantamento que flutua.

No êxtase divino do momento,

A folhagem parada, em desalinho,
Bebe o filtro do límpido clarão.

É branco o mar e a terra e o pensamento...

Apenas, na brancura do caminho,
A minha sombra maculando o chão...

(12-08-1949)




Abdicação

Por que me chamas, vento que não passas
E ficaste parado à minha porta?
Vai! Vai e deixa em paz minhas vidraças,
Que a minha alma está morta!

Por que não partes, ó luar branquinho,

Ó alma sonhadora do luar?
Não enchas mais de sonho o meu caminho,
Que eu já não sei sonhar!

Ó fonte, mãe de cravos e abrolhos,

Que no teu seio de água se geraram:
Não tenhas mais inveja dos meus olhos,
Que os meus olhos secaram!

Por que me fitas, rosa de cetim,

Se findou já o meu poder de rei?
Agora és tu rainha do jardim,
Que eu já me desfolhei!

Águia que vais tão longe, eu te abençoo

Porque sabes fugir das coisas rasas.
Não temas, não, a altura do meu voo,
Que eu já não tenho asas!

Por que chorais, chorais, ó folhas de hera,

Sentindo a vida a caminhar veloz?
Cantai por mim o Sol e a Primavera,
Que eu já não tenho voz!

Ó seara de espigas sãs, travessas:

Se vês a dor sem fim que me consome,
Não cresças mais e não amadureças,
Que eu já não tenho fome!

Ó seiva em combustão talhada em risos

Na manhã que inda há pouco despertou:
Vai dar calor às veias dos narcisos,
Que o meu sangue gelou!

Por que cantas, ó vida tão garrida!

Num triunfal e gárrulo vaivém
E me apareces cada vez mais vida,
Se eu já não sou ninguém?!

(02-02-1950)




Orgia primaveril

Sabe-me a boca a frutos já maduros.
Meu sangue tem frescuras de jardim.
Pulsa a manhã toda abraçada a mim
Como as heras se abraçam pelos muros.

Os penedos cismáticos e duros

Tomam a expressão branca dum jasmim.
E os meus esguios dedos de cetim
Afagam nos botões, rosais futuros.

Sinto morder-me os ombros ruflos de asas.

O Sol, em labareda, ateia brasas
Na exaltação divinal do arrebol.

E a manhã continua...

                   Ah! quem me dera
Ser inda mais azul que a Primavera
E mais acesa do que o próprio Sol!

(31-12-1949)



Tudo!

Tudo, menos a dor deste momento,
Estas horas num rumo de agonia,
Esfacelando-me alma e pensamento...
Noite que seja, há-de saber a dia!

Tudo, menos a algema desta mágoa,

Este inferno sem Deus nem Horizonte,
O coração e os olhos rasos de água...
Sede que seja, há-de saber a fonte!

Tudo, menos os sonhos já ruídos
E o brilho dum mentido fogaréu,
E os dedos revoltados e torcidos...
Terra que seja, há-de saber a Céu!

Tudo, menos as lágrimas ocultas,
Este aspecto de falso paraíso,
As ilusões sem mal em mim sepultas...
Pranto que seja, há-de saber a riso!

Tudo, menos o crime do Sol-posto,
E a minha alma de rojo pelo chão,
E a lividez sem culpa do meu rosto...
Fome que seja, há-de saber a pão!

Tudo, menos o Céu longe e vazio

Sem clarão de esperança ou curva de asa,
E estas nuvens tão negras... e este frio...
Cinza que seja, há-de saber a brasa!

Tudo, menos o Gólgota sò meu
Vergada sob o peso duma cruz
Sem o amoroso dò do Cireneu...
Treva que seja, há-de saber a luz!

Tudo, menos o açoite duma afronta,

E o sangue em fio do meu peito aberto,
E as renúncias caladas e sem conta...
Longe que seja, há-de saber a perto!

Tudo, menos a chuva desgrenhada
Encharcando o caminho sem desgosto
E a minha alma também toda encharcada...
Março que seja, há-de saber a Agosto!

Tudo, menos o grito ausente e mudo

A deformar uma expressão mentida
E todo o nada que hoje é o meu tudo...
Morte que seja, há-de saber a vida!

(02-07-1950)




 Naturalidade

Sei lá porquê! O amor não tem porquê!
Um sorriso, um olhar alvoroçado
E o coração em festa e deslumbrado
Por um lampejo que ninguém mais vê!

Alma que se reparte e espera e crê

E mais quer dar depois de tudo dado.
E porque a vida é beijo conquistado,
Bendito seja o amor pela mercê!

Compreender a voz fria do luar

E ao longe ouvir as ondas e entendê-las
E a própria neve transformar em lume...

Sem porquê! Sem razão e sem pensar:

Como no Céu se acendem as Estrelas
E na terra as violetas dão perfume...

(19-11-1949)




 

Atitude

Afinal,
Ai!,
Era a vida que faltava
Sem origem nem porquê.
Era o mundo a pedir: Vai!
Era o sangue a gritar: Sê!

Eram meus passos cansados
Num trilho tão pouco certo!
Eram os braços fechados
E o coração todo aberto!

Era a noite já vizinha
A manchar de negro o Além.
Era o Sol de manhãzinha
A dizer: Desperta! Vem!

Eram as rosas a dar-me

Seu perfume colorido.
Era o amor a ensinar-me
Que a vida tem um sentido.

Eram minhas mãos de presa,

Algemadas, nuas, nuas,
A morrerem de tristeza
E de saudades das tuas.

Eram caminhos esguios

Sem limites nem farol.
Eram meus olhos sombrios
Com medo de olhar o Sol.

Era a transparência calma

Duma noite de luar.
Era o sonho da minha alma
Sem coragem de sonhar.

Eram pensamentos fúteis,

Indecisos, sem idade.
Eram meus dias inúteis
Suplicando utilidade.

Era só de cobardia

O caminho que pisava.
Vai!, o mundo me pedia.
Sê!, o sangue me gritava.

Abri as asas sorrindo

E lancei-me na subida.
E o mundo fez-se mais lindo
E fez-se mais linda, a vida.

Era alegria sem fim

O que em mim depois nasceu.
Era eu, pobre de mim!,
Que não sabia ser eu!


(27-02-1950)




Meio-dia

Bendito seja Deus Nosso Senhor
Pela vida imortal do Sol ao alto!
Pelo dia que vai de salto em salto
Do grande mar à pequenina flor.

E Deus seja bendito pela cor

Que de oiro cobre as pedras de basalto;
Pela alegria-mor do azul cobalto
Que veste homens e aves, riso e dor.

Doida de luz, vibrante como um hino,

Esqueço o agudo espinho dos abrolhos,
Despedaçados os grilhões e as peias.

E o meu corpo é irmão do Sol a pino

Que a luz do Sol entrou-me pelos olhos
E fez caminho pelas minhas veias!

(05-08-1950)




Em louvor dos pinheiros

               Para o Dr. Cândido Guerreiro

Arrogantes, bravios e cimeiros
Sobre a face granítica da terra,
Os pinheiros, os bárbaros pinheiros,
Vestem de vida a placidez da serra.


A ramaria de expressão lançada,

Sob os oiros dum Sol ardente e são,
Guarda dentro da alma a cor doirada
Com que mais tarde há-de aloirar o pão.


Em noites silenciosas, levezinhas,

Entre rochedos trágicos e duros,
No inviolado coração das pinhas
Canta a certeza de pinhais futuros.


Se a chuva do Céu cai sem sobressalto

Avivando perfumes e matizes,
As agulhas molhadas cantam alto
O agradecido coro das raízes.


Mas se o luar desponta, de mansinho,

E o seu beijo de luz tudo branqueia,
Põem-se os ramos a cantar baixinho
Com medo de assustar a Lua-cheia.


E enquanto sonham lumes de braseiros

Aquecendo velhices como infâncias,
Os braços irrequietos dos pinheiros
São chamas verdes a aquecer distâncias.


Presos a terras más sem dó nem fala,

Não podendo fugir-lhes nem vencê-las,
São berços já que a mão do vento embala
E já são mastros apontando Estrelas.


Nas tardes de tons leves, derradeiros,

Quando o Sol parte noutra directriz,
No chão desenha a sombra dos pinheiros
O avisado perfil de D. Dinis.


Desafiando a raiva dos Invernos,

Não se despem de folhas nem abdicam,
E sentem-se gigantes quase eternos
Que os anos passam e os pinheiros ficam.


E amanhã, sem raízes nem motanos,

Os seus troncos libertos e sadios,
Hão-de rir-se da fúria dos oceanos
Nos cascos insubmersos dos navios.


Quando a nortada faz cantar os cimos

Ajoelhemos nas pedras desiguais,
Porque é a voz de Deus que nós ouvimos
No divino sussurro dos pinhais.


E os pinheiros sem gritos e sem véus,

Num desassombro másculo e profundo,
São a bênção magnífica dos Céus
E a trave imensa que sustenta o mundo!

(15-06-1950)



Horas Mortas 

Morrem as horas entre as minhas mãos
Sem culpa, sem verdade e sem conquista.
Nunca os meus sonhos vãos foram mais vãos
Nem tão intensa a dor que me contrista.

O Sol aquece e põe reflexos sãos

No Céu azul, com laivos de ametista.
Quem pudesse entender, ó meus irmãos!,
Minha alma paganíssima de artista!

Há rajadas de anseios nos meus versos

E os meus dias extáticos, perversos,
São frutos sazonados por colher.

Vida: retarda um pouco a minha sorte.

Bem vês que é impossível dar à morte
Quem não teve inda tempo de viver.

(09-11-1949)



Cantilena

Chorai, dias sem mim,
Que a vida se me esvai
E se aproxima o fim...
Dias sem mim, chorai!


Chorai, azuis do mar,

Que a vida se me esvai
Devagar, devagar...
Azuis do mar, chorai!


Chorai, nuvens de cor,

Que a vida se me esvai
Sem eco e sem calor...
Nuvens de cor, chorai!


Chorai, noites sem luz,

Que a vida se me esvai
Entre os braços da cruz...
Noites sem luz, chorai!


Chorai, sina ruim,

Que a vida se me esvai
Com saudades de mim...
Sina ruim, chorai!


Chorai, longes do Céu,

Que a vida se me esvai
E o mundo não é meu...
Longes do Céu, chorai!


Chorai, rosas em flor,

Que a vida se me esvai
Num matagal de dor...
Rosas em flor, chorai!


Chorai, meu coração,

Que a vida se me esvai
Sem ternura e sem pão...
Meu coração, chorai!


Chorai, morte a correr,

Que a vida se me esvai
Sem ninguém a prender...
Morte a correr, chorai!


Chorai todos a par

Que a vida se me esvai,
Morte, Céu, terra, mar,
Chorai! Chorai! Chorai!

(13-07-1950)



Algema

Quebrados os grilhões em mil pedaços!
Os ferros da prisão todos escombros!
Já esquecida a amargura dos meus passos
Nas asas em botão que trago aos ombros.

Libertos os sentidos e os Espaços!

Trilho de luz sem meta nem assombros!
O renovado gesto dos meus braços
Cingindo o azul no mar e o Sol nos combros!

Olho as Estrelas e o seu brilho eterno.

Vejo as nuvens e sei compreendê-las
Quando correm o Céu de lés-a-lés.

Ó mentira! Ó angústias! Ó inferno!

Chamam por mim as nuvens e as Estrelas
E tenho o mundo acorrentado aos pés!

(19-10-1949)



Se eu pudesse...


Se eu pudesse esquecer o que ainda não chegou!
Ter a expressão parada do luar
E seguir o meu trilho sem pensar
Nem saber onde vou e por que vou!


Caminhar sem a pressa do que espera

E esperar com a fé de quem tem fé e crê.
Ser indiferente como as folhas de hera:
Ver chegar e partir a Primavera
Sem perguntar por quê!


Se eu pudesse também viver inadvertida

E ver passar venturas ou desgosto
Sem perguntar ansiosamente à vida
Por que tem para uns a cor duma manhã
Florida,
E para os mais os tons amargos do Sol-posto...


Pudesse eu ser ardente, desejada, incalma.

Tecer sonhos de amor pueris e mesmo vãos.
Ai! Se eu pudesse esquecer que tinha alma
Nos afagos carnais das minhas mãos!


Não cultivar saudades e uma ausência

De que riem os mais sem poder entendê-las.
Beber o vinho rubro da existência
Em vez da luz mortiça das Estrelas.


Se eu pudesse ignorar as dores imaturas

Que tornam os meus dias maus, adversos,
Nem entender o aceno das Alturas
E praticar fantásticas loucuras
Em vez de versos...


Pulsasse em derredor a inquietação e a mágoa!

Como eu era feliz (fosse embora mesquinha!)
Se pudesse deixar de ser a água
Para uma sede igual à minha.


Ser mais rasteira que as planícies rasas

Sem tentações de azul de transparente calma.
Pudesse eu esquecer que tenho as asas
Que teci com as penas da minha alma!


Ser menina outra vez, sem luta, sem contraste.

Guiados, infantis que fossem os meus passos.
Ó minha Mãe: por quê? Por que deixaste
Que a vida me tirasse dos teus braços?


Olha o meu coração: todo uma cicatriz!

Aonde está meu riso? As horas de prazer?
Pois se tu me ensinaste a ser feliz,
Com quem aprendi eu a padecer?


Tento ir além e chego logo ao fim!

Quero rezar e esvai-se a minha prece!
Se eu pudesse não ser este abismo de mim!
Ah! Se eu pudesse! Se eu pudesse! 

(01-02-1950)  




Amanhecer 


Acordam as olaias desgrenhadas
Pelo frémito de asas em partida...
E alegremente, os dedos das ramadas
Apontam a vertigem da subida.

As serras, verticais, mal desenhadas,

Vestem a festa duma cor garrida.
Na expressão das papoilas encarnadas
Canta a certeza física da vida.

O azul do Céu tem laivos carmesins,

E no esplendor de uma alegria sã,
A terra germinou, cheia de graça.

E a vida sabe a fontes e jardins

Quando o deus Sol na orgia da manhã
Abre rosas na alma de quem passa.

(26-08-1949)





Bondade 

                                    Para o meu Filho

Ser bom
Como o sossego
Dos ninhos
Em noites estivais.
Como o aroma lilás das violetas
E o silêncio incolor das catedrais.


Ser bom

De alma erguida num trilho de mau piso
Sem que nenhum açoite a dome.
Ser bom
Na lágrima ou no riso,
Com fartura ou com fome.


Ser bom

Tendo as carnes rasgadas
Por tratos e canseiras.
Ser bom
Como as Estrelas apagadas
E as asas resignadas
Das aves prisioneiras.


Ver na bondade que perdoa

O mais precioso dom.
Saber andar por todos os caminhos
E toucado de rosas ou de espinhos,
Continuar a ser bom!


Sem revoltas nem ais,

Cavar a terra pouco mole
Com mãos castas e boas...


Ser bom! Ser bom!



E merecer depois a luz do Sol

Como os trigais
E ser digno do azul do Céu
Como as águas tranquilas das lagoas! 

(03-10-1949) 





 Coragem 

Já enxuguei os olhos doloridos.
Também não chora já meu coração.
Para afastar a cruz dos tempos idos,
Bastou um gesto só da minha mão.

Prantos que me turbaram os sentidos,

Nem fala neles a recordação.
E refloresce a vida, sem gemidos,
E dá-me um novo dia e um novo pão.

Que me importa a dor que me vergou os ombros

Se na gelada cinza dos escombros
Acenderei a chama de mil sóis?

Hei-de ir além da minha própria fé

E se cair, hei-de cair de pé
Como caem os santos e os heróis!

(16-07-1950)



Ode à esperança 

                          Para a Laura Chaves

Vem!
Trazes nas mãos o fruto proibido
E uma alegria sã,
E na raiz dos olhos
O mágico segredo
Do dia de amanhã.


Teu coração palpita a todos os instantes

Numa audácia incontida
E oferece aos meus passos hesitantes
Um caminho seguro para a vida.


Trazes dentro da alma a explicação

Do mistério insondável do futuro
E à flor da boca a muda tentação
Dum pêssego maduro.


Vem com teu vago manto de cambraia

Trazendo rosas sem espinhos
No feitiço dos grandes esplendores,
Que os teus braços são braços duma olaia
Onde florescem ninhos
E voam flores.


Dá-me a grandeza indómita da vida,

O sonho que nos não ilude
Nem é uma aparência.
Afasta-me da ideia da partida
E deixa-me escrever o poema da saúde
Nas páginas sagradas da existência.


Dá aos Céus a expressão doirada e calma

Das alegrias verdadeiras
Que o Sol aqueça os versos na minha alma
E os cachos nas videiras.


Chama, chama por mim

Com tua voz vermelha de fanfarra,
Tão fresca como a sombra dum jardim,
Festiva como o grito dum clarim
E alegre como um barco sem amarra.


Vem! Vem, já que adivinhas o queixume

De quem não é feliz!
Tu, que das cinzas fazes nascer lume
E conheces a flor pelo perfume
Quando a semente inda não tem raiz.


Vem,

Deusa da paz ou ninfa inquieta!
Cinge-te a mim! Melhora a minha sorte!
Sê minha luz, meu guia, amparo e bem
Que eu preciso de ti para ser Poeta
E para não morrer antes da morte!

(05-10-1949)




Eternidade

                         Para a Maria da Graça


Não importa que eu vá! Fica a minha alma
No perfume da flor, na luz do luar.
Talvez eu inda seja a tarde calma
E meus prantos, um dia, sejam mar!

Talvez vá dar mais verde a cada palma
E mais frescura às sombras do palmar.
Sei lá se inda serei procela incalma...
Ribeirinho correndo, devagar!...

Procurai-me nas cinzas do Sol-pôr,
Nas nuvens angulosas ou redondas,
Nas vertentes mais íngremes e estranhas.

E haveis de me encontrar, seja onde for,
Rimando o dorso côncavo das ondas
Com a linha convexa das montanhas!

(04-10-1949)



Nocturno

A Lua ergueu-se branca, altiva e cheia.
Era tão puro o coração da aragem,
Que eu senti palpitar em cada veia  
A castidade imóvel da paisagem.


O meu corpo nem cálido nem langue,
Tinha a calma nudez dum alabastro.
E Deus vendo a pureza do meu sangue,
Com meu sangue acendeu um novo astro.


A ramagem nem leve estremecia
No brilho apoteótico da luz.
E o silêncio das folhas repetia
Os êxtases de Tereza de Jesus.

Uma roseira ainda há pouco nua,
Um milagre a floriu de lado a lado.
As corolas sorriram para a Lua...
E o perfume quedou-se, ajoelhado...

E rezavam tão cândiddas, tão crentes,
As pedras enluaradas no caminho,
Que os lábios sempre alegres das nascentes
Também ficavam a rezar, baixinho...

Havia tanta fé nas ladainhas
E no ambiente sereno, virginal,
Que os voluptuosos braços das gavinhas
Afrouxaram o abraço vegetal.

E a Lua sobe, em vastidões de mar!
Crescem as ondas, límpidas e francas.
A terra escura concebeu do luar
E por isso as magnólias nascem brancas.

No silêncio da noite sem ressalto,
Não há riso, nem ais, nem melopeia.
Sòmente a voz de Deus a falar alto
No divino clarão da Lua-cheia.

(19-12-1949)

  



Fuga

Vê que tranquilo e límpido clarão
Desdobra o Céu na rútila planura.

Não me prendas ao chão:
Deixa-me ser Altura.

Rolam as ondas, rolam sem parar:
Vai-se esta agora e logo vem mais uma...

Não me prendas ao mar:
Deixa-me ser espuma.

Magoa a escuridão como um açoite:
Numa tortura silenciosa e vã.

Não me prendas à noite:
Deixa-me ser manhã.

Que alegria magnífica se encerra
Nesta rosa vermelha como lume.

Não me prendas à terra:
Deixa-me ser perfume.

Que mão tão negra a minha vida leva!
Tão negra viva, que nem sei dizê-la!

Não me prendas à treva:
Deixa-me ser Estrela.

O mundo gira impávido e profundo,
Sem brilho, sem razão nem tolerância.

Não me prendas ao mundo:
Deixa-me ser distância.

Tanta luz, tanta esperança consentida
No sonho em flor do teu olhar sem calma...

Não me prendas à vida:
Deixa-me ser só alma.

Sinto a par dos meus passos aos teus passos
Mas a senda do amor não é completa...

Não me prendas nos braços:
Deixa-me ser Poeta!

(30-12-1949)



Poema para mim mesma

Quando sentires crepitar nas veias
Uma ventura doida, proibida,
Deixa vibrar o coração sem peias:
É o sangue da vida.

Quando, na estrada plana e sem cansaços
A acompanhar-te na triunfal subida,
Junto dos teus ouvires outros passos,
São os passos da vida.

Gostavas de escrever e não te atreves...
Quebra o medo fatal que te intimida
Que o livro sem mentira que não escreves
É o poema da vida.

Faz dos teus sonhos uma acção presente
Sem que seja sòmente pressentida,
Que os braços que se estendem doidamente
São os braços da vida.

Devassa o mundo inteiro lés-a-lés,
E não temas o instante da partida,
Que os caminhos abertos por teus pés
São os trilhos da vida.

Olha de frente o Sol: tem fé e canta
Numa alegria nunca desmentida,
Que o perfume real que te estonteia
É o aroma da vida.

Quando seguires só pelos caminhos
Nos últimos clarões da luz vencida,
Ouve o silêncio cândido dos ninhos:
É o apelo da vida.

E avança, porque a morte não se esquece...
Sê tu, sempre mais forte e mais erguida,
Que a chama que te alteia e fortalece
É o fogo da vida!

(06-08-1950)



Ventania

                               Para Virgínia Lopes de Mendonça

O vento não se deitou!
Toda a noite falou alto!
Bateu-me à janela e entrou
E gritou, gritou, gritou,
E partiu, de salto em salto.

Foi-se aos pinheiros erguidos:
Mordeu-os sem compaixão.
E dos tratos recebidos
Ficaram ramos partidos
E muitas pinhas no chão.

No meio de barafundas,
Correu, correu sem parar...
E em rajadas furibundas
Pôs-se a abrir rugas profundas
No rosto liso do mar.


E caminhando, demente,
Entre prantos e amargores,
Devassou com mão fremente
Os jardins de toda a gente
E o corpo virgem das flores.

Em gestos de pesadelos,
Vindo a pique das Alturas,
Torceu vides e bacelos
e despenteou os cabelos
Das espigas já maduras.

E seguiu na galopada
Sem ver o mal que causou!
Já na luz da madrugada
De assalto, tomou a estrada
E gritou, gritou, gritou!

Depois, compondo a maneira
E os caprichos do senhor,
Cantou, numa voz ligeira,
E fez dançar a poeira
Que "o vento é bom bailador"!

Mas a fúria regressou
E a canção morreu aos poucos.
E o vento partiu, voltou,
E gritou, gritou, gritou,
Como só gritam os loucos.

Só à minha alma de escrava
Afeita ao maior tormento
O vento não assustava,
Pois a minha dor gritava
Muito mais alto que o vento!

(12-08-1950)





Balada

Não sentes este marulho
Adormecendo a paisagem
Nas tardes quentes de Julho?


Meu Amor:
Vê se entendes a folhagem.

Quantas asas a bater
Em hossanas matinais
Saudando o Sol a nascer!...


Meu Amor:
Vê se entendes os pardais.

E este som de água cantando
Em acordes transparentes
Que a secura vai matando...

Meu Amor:
Vê se entende as nascentes.

Tantas candeias nos Céus
Sem que lá vão acendê-las
Nem teus dedos nem os meus...

Meu Amor:
Vê se entendes as Estrelas.

Olha a grandeza do mar
De rastos a nossos pés,
Ora a rir, ora a chorar...

Meu Amor:
Vê se entendes as marés.

E não sentes a alegria
destas florzinhas fugazes
Perfumando a luz do dia?

Meu Amor:
Vê se entendes os lilases.

Olha a fartura do grão
Curvando as espigas claras
A prometer tanto pão...

Meu Amor:
Vê se entendes as searas.

E esta saudade incontida
Que é sonho, lágrima e ânsia
A morrer em cada vida...

Meu Amor:
Vê se entendes a distância.

Não temas a solidão
E todo o teu medo vence-o
Com a tua própria mão...

Meu Amor:
Vê se entendes o silêncio.

Olha os que ninguém mais vê
Vivendo horas inquietas,
Chorando sem um porquê...

Meu Amor:
Vê se entendes os Poetas.

E agora: vês a minha alma?
Mais esta mágoa sem fim?
E a minha vida sem calma?

Meu Amor:
Vê se me entendes a mim!

(12-09-1949)





Cântico da vida

Vivo, vivo
Na verdade dos frutos já maduros
E no anseio de todas as esperas.
Vivo nos tempos idos e futuros
E na expressão apática dos muros
E no abraço humaníssimo das heras.


Vivo na cor de mil afagos,
No desejo de luz duns olhos cegos,
Na pureza dos lagos
E na traição dos pegos.


Vivo, vivo
No coração da pomba,
No rugido que as selvas estremece.
Vivo na lágrima que tomba
E no sorriso que amanhece.


Vivo nas folhas do carvalho
Poeirentas e abstractas,
Nas gotas pálidas do orvalho
E nos rubros cachões das cataratas.


Vivo no campo inculto
E nos vários matizes
Que dão a cada leiva
Graças etéreas.
Vivo no sangue oculto
De todas as raízes,
Como na oculta seiva
De todas as artérias.


Bate o meu coração nas pulsações do mar.
Sinto dentro de mim a fúria das marés.
Vivo na rosa estática do luar
Como nas pedras onde ponho os pés.


Vivo, vivo
Na doçura do mel
E na amargura mais ruim:
Na intenção puríssima de Abel
E no pensado crime de Caim.


Vivo, vivo
No impiedoso calor da estrada
E na sombra fresquinha do choupal.
Vivo, vivo
Na generosidade duma enxada
E na frieza dum punhal.


Vivo na dor da noite sem protesto,
Nas rajadas agrestes,
Na orgia dos vinhedos,
Nos desgrenhados oiros dos trigais.
Vivo no gesto
Dos dedos verdes dos ciprestes
E dos góticos dedos
Das catedrais.


Vivo, vivo
Na espiga já vergada,
Nas sementes roliças
E na boémia das cores.
Vivo na liberdade encarcerada
Como nas asas insubmissas
Dos condores.


Vivo, vivo
Na mudez do granito
Ha humilhação do vale e na altivez da serra.
Vivo no azul informe do Infinito
E na certeza esférica da terra.


Vivo, vivo
Desde o abismo mais fundo
À nuvem mais erguida.
Vivo, vivo
Na vinda da manhã, no poente moribundo,
No mar, no Céu, no inferno, em todo o mundo
Onde palpite um átomo de vida!

(10-10-1949)



Mensagem
                                        Para Alda Lopes de Mendonça

Criou-me Deus com Sua mão sem par
Segura e destemida
No seu poder fecundo.
Eu venho para confirmar
A certeza da vida
E a existência do mundo.


Fui onde nunca ainda foi alguém.
Com minhas próprias mãos compus
As tintas frescas do arrebol.
E o fulgor dos meus olhos mostra bem
Onde o Senhor foi buscar luz
Para acender o Sol.


Ainda trago em mim uns restos vagos
De Paraíso
Numas recordações vivas, tangentes...
Foi meu olhar que deu planura aos lagos
E da frescura dos meus lábios
Brotou a melodia das nascentes.


Vendo o meu sangue em ímpetos revoltos,
Deus criou o esplendor dos vendavais,
Tal como vendo os meus cabelos soltos,
Soltou a cabeleira dos trigais.


Eu dominei a febre dos anseios
E as forças mais estranhas.
Eu modelei abismos e gorjeios
E olhando o perfil curvo dos meus seios,
Curvou-se o perfil recto das montanhas.


Rompeu a flor da sombra dos meus passos
Ritmados e libertos
Como as asas esbeltas.
E vendo o movimento dos meus braços
Entreabertos,
Deus desenhou os deltas.


O mundo, pu-lo todo cor dos linhos
Vestindo-lhe a cambraia do luar.
Trago nas mãos grinaldas e carinhos
Para florir de beijos os caminhos
Que atravessar.


E dei ao Céu a cor das madrugadas
E a manhã logo se abriu
Numa serena limpidez.
E só quando fechei as pálpebras cansadas
É que a noite caiu
Pela primeira vez.


Dei voz aos rouxinóis e colori medronhos
E teci espumas que espalhei no mar.
Foi na ascensão constante dos meus sonhos
Que as aves aprenderam a voar.


Para o dia criei um manto de safira
E entornei ametistas no poente
E dei rubis aos tons do rosicler.
Sou como um deus altivo e omnipotente...

Mentira!
Apenas sou e desgraçadamente
Mulher!

(24-12-1949)



Exaltação do Sol


Pela canção colhida dos trigais,
Pelo manto de luz que veste o mar,
Pelos botões a abrir nos roseirais
E pela rosa aberta do luar
    Bendito seja o Sol!


Pelo poder com que desprende
Das noites de tormento
A cor das madrugadas;
Pelas mãos com que acende
Na água em movimento
Estrelas apagadas,
    Bendito seja o Sol!


Pelos tons cálidos, doirados,
Pondo no chão
Luminosas alfombras;
Pelos tons inchados
Em promessas de verdes e de sombtas,
    Bendito seja o Sol!


Pela orgia fantástica da cor;
Pela escala viçosa
De todos os matizes;
Pelo fruto que há pouco era uma flor
E tem na carne inda leitosa
O gosto das raízes,
    Bendito seja o Sol!


Pela noite de manto e de capuz
Bordado a lantejoilas;
Pelo sangue vivíssimo da luz
Que ergue para o Céu
A chama das papoilas,
    Bendito seja o Sol!


Pela espiga vergada
No ermo da planura
Cantando numa voz doirada
A melodia da fartura,
    Bendito seja o Sol!


Pelo perfume lírico dos nardos;
Pela sensual frescura
Das orquídeas pagãs;
Pela verde amargura
Dos cardos
Pelo riso maduro das romãs,
    Bendito seja o Sol!


Pelas amoras, pelos bagos de uva,
Pela florida graça do pomar
Sem renúncias nem mágoa;
Pelo milagre vívido da chuva
Deixando um sol a cintilar
Em cada pingo de água,
    Bendito seja o Sol!


Pela dolência da tardinha calma;
Pela luz escondida nas paveias;
Pela alegria que jamais se apouca,
    Bendito seja o Sol!


Pelo oiro entornado na minha alma;
Pelo sangue aquecido em minhas veias,
Pelos beijos que põe em minha boca,
    Bendito seja o Sol!
    Bendito seja o Sol!!!

(17-11-1949)




Escuta...

Escuta:
É o Sol a subir devagarinho
Depois de ter doirado
As silvas do valado
E as pedras do caminho.


Escuta:
É o vento que passa de fugida
E vai seja onde for,
Depois de ter deixado em cada flor
A semente da vida.


Escuta:
Há qualquer coisa na paisagem nua,
Nas campinas desertas...
É o afago suavíssimo da Lua
Sobre as rosas abertas.


Escuta:
Latejam ondas caprichosas
Dum invisível mar.
É o aroma suavíssimo das rosas
Perfumando o luar.


Escuta:
Chega de todos os Aléns
Um canto alacre e amigo.
É a terra a gerar o milagre dos pães
Dentro dum grão de trigo.


Escuta:
Sente-se na espessura dos caminhos
O som de movimentos suaves...
São as asas minúsculas das aves
Acalentando os ninhos.


Escuta:
Vem ver que loucos fogaréus
Nas noites calmas e singelas!
Foi um Poeta que enfeitou os Céus
Com os olhos abertos das Estrelas.


Escuta:
É a voz fria das primeiras chuvas
Sem destino e sem dono,
Molhando as mãos com que o Outono
Apanha as uvas.


Escuta:
É a neve por bênção divinal
Em cinza acesa,
Vestindo de brancura e de pureza
A noite de Natal.


Escuta:
É a fonte pleníssima de graça
No silêncio dos ermos descampados,
Dando os seus lábios encharcados
Aos lábios secos de quem passa.


Escuta
Esta harmonia que jamais se esvai
Entre os bramidos de cruentas dores:
É Deus oferecendo aos pecadores
O Seu perdão de Pai.


Escuta:
Vibra precisa e derradeira
Uma voz quente e destemida.
Sou eu oferecendo à tua vida
A minha vida inteira!

(24-07-1949)




Desdobramento


Eu não quero voltar a ser de novo a outra!
Aquela que tem carne e sangue e cor e som...
Eu não quero voltar a ser de novo a outra
Porque ela mata em mim o que em mim há de bom.

Matasse-me a renúncia heróica e ampliada.
Desconhecido o mel, desconhecia o engano.
Nem remorso depois, nem ânsia antecipada.
Um pouco mais de esforço, e o caminho era plano.

O vinho que bebi era forte e era loiro.
Desdobrei-me na vida e a luta começou.
E quando chego à boca a linta taça de oiro
Desconheço-me em mim e já não sei quem sou.

Bate-me o coração em doido torvelinho.
Perdeu a fixidez meu olhar calmo e sério.
Sou esfinge decifrada à beira dum caminho
Sem auréola de vago ou sombra de mistério.

Eu não quero voltar a ser de novo a outra.
Passe embora a existência insípida e banal.
Eu não quero voltar a ser de novo a outra
Que se ri de mim mesma e é feliz no mal.

Mas no supremo instante em convulsão suprema,
A força diminui, torna-se branda e cai.
E a outra vai, altiva e audaz, quebrada a algema,
E ri sem compaixão daquela que não vai.

Depois, a que ficou em prantos e arrepios
Numa amargura atroz que enegrece e que dói,
Fica a sentir em si, em reflexos sombrios,
A alegria que viu nos olhos da que foi.

E é tão pouco vulgar o complexo que sinto,
Que eu pergunto a tremer e sem saber a quem,
Se aquela que se esvai no caos do labirinto
Se sou eu, se é a outra ou se não é ninguém!

(17-09-1949)




Desafio

Podes vir apressada
Ou de mansinho,
Que as minhas mãos colheram
Quantas rosas abriram 
No meu caminho.


Queres ver morta
A boca que se deu
Em ofertas pagãs?
Mas que me importa
Se a minha boca já mordeu
A romã de dois lábios
E os lábios da romã?


Não temo a humilhação
Dos três palmos de terra,
Porque em horas secretas
Levou-me a minha inquietação
Às catedrais altíssimas do sonho
Onde só podem ir
Os que nasceram Poetas.


Que importa que tu leves os meus olhos
Ausentes
Para o mundo de trevas onde moras,
Se eu fixei para sempre na minha alma
A luz doentia dos poentes
E o tom saudável das amoras.


Olha bem minhas mãos sem par,
Pálidas e singelas
Antes da terra as receber,
E ainda verás nelas
O movimento de semear
E de colher.


Queres impor silêncio aos meus ouvidos
Com tuas mãos avaras
E hediondas?
Que faz, se eu sei de cor
O sussurro das searas
E o marulhar das ondas.


Pensas dar o pior dos amargores
À boca que te dei?
Sem calor nem desejos?
Olha que eu já provei
O mel das flores
E o mel dos beijos.


Não vês, ó Morte!, que eu não tenho medo
Que feches meu olhar
E embacies o seu brilho?
Se eu vi crescer a par
Os ramos do arvoredo
E os braços do meu filho!


Como hei-de lamentar a ausência
Das flores minhas companheiras
Nos teus reinos bastardos,
Se eu levo em mim o aroma agreste
Das sardinheiras
E o perfume dulcíssimo dos nardos?


Se pensando na inércia que me aguarda
Eu não grito de horror
E o meu anseio se conforma,
É só porque os meus dedos já tactearam
O intangível da cor
E a volúpia da forma.


Porque me ergui mais alto que a subida?
Porque vesti meus sonhos nus
Da divina loucura que os floriu.
Porque em mim foi que se fez luz?
Porque vivi e dei à vida
Tudo o que a vida me pediu.


Vá! Estende as mãos
Negras e más
E aponta um fim
À minha directriz.
Vem, vem quando quiseres,
Ó Morte!,
Porque de mim
Apenas levarás
O que a vida não quis!

(27-06-1949)



Canção vazia

Dedos sem cor nem alegrias
Longe do Sol, longe do dono...
Ó mãos vazias, mãos vazias
Que sabor trágico a abandono!

Olhos sem luz, negros, sombrios,
Sonham manhãs sem amargura.
Olhos vazios, ai!, vazios!
Que sabor triste a noite escura!

Nuvens rosadas, fugidias,
Nas mãos as leva o vento errante.
Asas vazias, tão vazias!
Ai! que sabor a Céu distante!

Lagos tristíssimos, doentios,
Sem movimentos lés-a-lés.
Lagos vazios, ai! vazios!
Que gosto a água sem marés!

Lábios sòzinhos noite e dia...
Mas que vontade de chorar!
Boca vazia, ai! tão vazia!
Que gosto a beijos por trocar!

Passos perdidos nos baldios
Sob a mudez do Céu estrelado...
Passos vazios, ai! vazios!
Que sabor mau a trilho errado!

Já cai a chuva, já vem frio...
Ruas sem Sol, todas molhadas.
Jardim vazio, ai! tão vazio!
Que gosto a rosas desfolhadas!

Outono em fuga, mal sadio,
Ai! que depressa tu caminhas!
Ó Céu vazio, Céu vazio!
Que gosto a ausência de andorinhas!

Horas que vão sem companhia,
Ai! que tristinhas elas vão!
Alma vazia, alma vazia!
Que gosto amargo a solidão!

(20-09-1949)




Palavras gratuitas

"Não existe só treva nos caminhos.
Nem sempre as nuvens são de maus agoiros.
O Sol quando desponta e aquece os ninhos
Traz sempre um dia novo e novos oiros.

Das mãos da Lua-cheia caem linhos
Preciosos e reais como tesoiros.
No mundo não há só coroa de espinhos...
Algumas há também que são de loiros!"

Quisera a dor nas minhas mãos cativa,
Mas lentamente esvai-se-me o desejo
Na certeza do bem que não conquisto.

Que a vida é canto e riso e carne viva...
Mas se eu grito e se choro e se esbravejo,
Não é possível chamar vida, a isto!

(18-08-1950)




Humildade

Meu Deus: quando Te disse
"...E que a Tua vontade seja feita!",
Numa tristeza que ninguém console,
Era um grito de trevas
Que Tu ouvias,
Pois nele para sempre amortalhei meus dias
E apaguei o meu Sol.

Quando assim Te falei numa voz rouca
E de timbre impreciso,
Sabia que negava minha boca
À floração do riso.

Mais sabia, meu Deus, quando bebi
A renúncia na taça transbordante
Duma angústia sem par,
Que se a fonte cantara até ali,
De ali para adiante
Começava a chorar.

E sabia também que a minha mão
Vazia de carinhos
Havia de pedir num gesto vão
Por todos os caminhos.

Que os mais quando me viam
Sem bordão nem sacola,
Riam de mim,
Pois não compreendiam
Que andasse a perdir esmola
Vestida de cetim...

Não é sòmente o pobre esfarrapado
Sem pão nem lar,
Que deve merecer o dó de alguém,
Pois ainda é mais pobre e desgraçado
O que tenta fazer acreditar
Nas alegrias que não têm.

Eu sabia algumas coisas de valia
Para enganar a carne morta,
Porque sòzinha em mim, numa agonia,
A minha alma tristíssima pedia
De porta em porta...

Quando me olhei despida de ternura
E dos mil sonhos que teci
E que eram meus,
Ajoelhei a chorar na terra dura
E levantei os olhos para Ti,
Meu Deus!

E aqui estou, mais que os outros imperfeita,
Pecadora e mesquinha,
Cheia de mágoas, mas a Ti sujeita
Porque á Tua vontade há-de ser feita
E não a minha!

(01-10-1950)



Nudez

Levaram tudo, tudo que era meu!
Vazias tenho as mãos e a alma vazia!
Mal vira ainda a luz do meio-dia,
Quando a noite em seus braços a prendeu.

Colhi as rosas que o prazer me deu
E veio a dor buscar minha alegria.
Hoje caminho só, sem companhia,
Que me levaram tudo que era meu!

De que serve sonhar, ter mocidade,
Se o fantasma invencível da verdade
Cada vez se ergue mais e mais me assombra?

Não pede nada já meu olhar mudo,
Que tudo que era meu, levaram tudo...
... E até o Sol levou a minha sombra!

(17-04-1950)


Variações sobre o mesmo tema

Se à tardinha, na luz que já fraqueja
O Sol exangue sobre ti desceu,
Não afastes o raio que te beija,
Porque posso ser eu!

Se a ventania com febril demência
Nas vidraças, colérica, bateu,
Não feches a janela com violência,
Porque posso ser eu!

Se entre os tons sem calor do novo dia 
Uma voz de ave, tímida, se ergueu,
Escuta com ternura a cotovia,
Porque posso ser eu!

Se a rosa num momento de quebranto
Se vergou sobre si e em si morreu,
Não atires a rosa para um canto,
Porque posso ser eu!

E se a chuva sem gritos e sem mágoas
Entre o ruído da rua se perdeu,
Ouve o sussurro cândido das águas,
Porque posso ser eu!

Quando sobre a paisagem triste e nua
O luar pleno e límpido nasceu,
Bebam teus olhos toda a luz da Lua, 
Porque posso ser eu!

Se a vida te levar num desalinho,
Por um atalho que o Senhor esqueceu,
Não queiras mal às pedras do caminho,
Porque posso ser eu!

Mas se em teu peito, negro de amargor,
O anseio de repouso floresceu,
Não desejes a morte, meu Amor,
Porque não serei eu!

(21-06-1950)




Totalidade

Por quê, tanta renúncia sem-razão?
Abre-se a vida ao meu olhar molhado
Como floresce em luz o Céu estrelado
E abrem as açucenas em botão.

Vive, vive e palpita, ó coração!,
Sem a cruz das mentiras do passado.
Se há frutos para os outros, sem pecado,
Também há frutos para a minha mão.

Por que hei-de entristecer a minha face
E limitar o som da minha voz
Se os meus cantos não têm mal nenhum?

Quando mandou que o Sol iluminasse,
Deus deu o Sol inteiro a todos nós,
Não deu um bocadinho a cada um!

(09-05-1950)



Cântico pagão da divina alegria 

O mundo inteiro vibra de meio-dia!
De rojo pelo chão, as horas de ansiedade!
Inútil já, o açoite das canseiras!
Pulsa-me nas artérias a alegria
Tonta de plenitude e de verdade,
Da verdade das coisas verdadeiras!

Nas lutas ferocíssimas do mal
E de irmão contra irmão,
O meu riso no pranto universal
É a pedra de sal
Na fornada do pão.

E porque a vida agora tem presente
E é minha a vastidão dos Horizontes,
Abre-se a minha boca alegremente
Nos acordes dum riso transparente
Que podia ser rido pelas fontes.

Porque hoje as horas são felizes
Sem ais de fel nem dor de gume,
Toda eu vibro de sons e de matizes,
Desde a cativa seiva das raízes
À expansão do perfume.

Desassombrada e cândida de fé,
Minha alegria rubra, de cigarra,
Dá-se inteira e de pé
Contente de mostrar-se tal qual é,
Sem a falsa vergonha duma parra.

Filho duma carícia mais que louca,
Numa posse total,
Quando um riso infantil me veste e touca,
Na sonora expressão da minha boca
Há lembranças de bronze e ecos de cristal.

Minha alegria toda graça e altura
E frescor de manhãs invioladas,
É tão branca e tão pura,
Que até podia ser candura
Nas magnólias fechadas.

Sem auxílio nenhum de mão alheia,
Passam meus dias lúcidos e fartos,
Minha alegria plena em cada veia,
Ó minha Lua eternamente cheia
Sem sofrer nunca a humilhação dos quartos!

E os olhos do amargor que em tempos idos
Me negaram piedades e confortos,
Olham-me agora tristes e vencidos
Como olhos apagados de astros mortos.

E a alegria, violenta como um grito,
Caminha com um passo tão fecundo,
Tão fortes tem os pulsos sem algemas,
Que não cabe sequer neste mundo finito
Nem no infinito mundo
Dos meus poemas.

E enquanto nesta vida sem abrolhos
Do meu destino fiz um escravo,
E a desventura me excluiu do rol,
A minha alma anda a rir-se dos meus olhos
Aberta como um cravo
E nua como o Sol!

(17-09-1950)



... Et lux facta est!

Sol, Estrelas, luar... Luz, afinal!
Divindade santíssima e pagã!
Epopeia rimada, em vertical,
Dos altos Céus à mais humilde chã.

Abriu-se o dia azul e natural
Nos olhos ensonados da manhã.
E foi chama nos versos de Nerval!
E foi cor nos pincéis de Zurbaran!

Luz! Princípio que nunca terá fim!
Ó certeza imutável do Infinito!
Entre as verdades, a maior verdade!

Toma-me, luz! Apossa-se de mim
E faz da noite escura do meu grito
Um cântico imortal de claridade!

(07-10-1950) 


Promessas

Eu te prometo, ó sonho sem irmão
Que ora bemdigo e logo amaldiçoo,
Que abrirei inda mais o coração
À plenitude ousada do teu voo.

Já que tens tido fome tanta vez,
Eu te prometo, ó boca dolorida!,
Que hás-de morder até à nsensatez
O fruto paganíssimo da vida

Prometo-vos, ó tristes olhos baços
Ermos de Céu e chamas de arrebol!,
Que hei-se abrir para vós novos Espaços
E dar-vos o esplendor de um novo Sol.

Prometo, ó mãos vazias e sem dono
Mudas e negras que faz pena vê-las,
Que hei-de encher-vos a palma e o abandono
Do grito luminoso das Estrelas.

E prometo, meus pobres ombros nus,
Sem mel de afagos nem calor de brasas,
Que há-de nascer dos ângulos da cruz
A linha curva que sustenta as asas.

Prometo, ó meu caminho moribundo
Onde os cardos nasciam à vontade,
Que hei-de encontrar na face deste mundo
O caminho que leva à felicidade.

Eu te prometo, ó minha carne exangue!,
E fria, fria, como os alabastros,
Que em tuas veias correrá o sangue
Que dá calor ao coração dos astros.

Prometo, ó vida livre de cansaços
Que um mal de prantos sepultou em mim!,
Que te abrirei de par em par os braços
E te quero viver até o fim!

(21-08-1950)


Soneto à morte

        Para o Dr. João de Barros

Trago-te o meu cabelo desatado
Com opulências rútilas de Ofir,
Mais a minha alma de jardim fechado
Onde há rosas ainda por abrir.

Dou-te o meu coração despedaçado
Pelas mãos do passado e do porvir
E o meu corpo mortal crucificado
Que não soube vencer... nem desistir!

Leva esta boca pálida e faminta
E as ilusões e os sonhos e os cansaços
Duma vida que tive e não foi minha.

Morte: vem-me buscar para que eu sinta
No amaríssimo gosto dos teus braços
O divino sabor que a vida tinha.

(22-11-1949)



Canção verdadeira

Venha a vida despótica e cruel
Dar-me a provar da taça pervertida,
E acharei doce o amargo do seu fel...
Não tenho medo da vida!


Venha o mar e revolte-se a meus pés
Numa demência verde, singular...
Hei-de sorrir da fúria das marés...
Não tenho medo do mar!


Venha o mundo a rugir entre procelas
Prender-me os passos com seu mal profundo...
Tenho asas que me levam às Estrelas...
Não tenho medo do mundo!


Venha a Lua com suas mãos quietas
Vestir de anseios a minha alma nua...
Serei igual a todos os Poetas...
Não tenho medo da Lua!


Venha o vento com raivas ou com fé.
Tente vergar-me toda a seu contento.
Heròicamente, hei-de ficar de pé...
Não tenho medo do vento!


Venha o Sol entre nuvens desfloradas
Embriagar-me de afagos de arrebol.
Resistirei às suas mãos ousadas...
Não tenho medo do Sol!


Venha a morte anunciada ou de repente.
Cinja-me inteira com seu braço forte.
Hei-de olhá-la nos olhos bem de frente...
Não tenho medo da morte!


Mas venha o sonho, cauto, sem alarde,
Florir-me a alma e apontar-me um fim,
E hei-de fugir, fugir como um cobarde...
Só tenho medo de mim!

(21-09-1950)


Incompreensão

Impossível! E torço as mãos vencidas
Num gesto vão, que nem sequer abrando,
Como se em minha vida sem comando
Mandasse o imperativo de mil vidas.

Impossível! E as horas destemidas
Caminham sem parar! Fogem em bando!
E o sofrimento cresce e vai gritando
Na lenta voz das lágrimas caídas.

Impossível! Mal haja a minha sorte
E a dor que mansamente me consome
E me deixa sem mim, perdida e louca.

E ninguém que me salve ou me conforte!
Senhor! Senhor! Porque é que me dás fome
Quando afastas o pão da minha boca?

(04-07-1950)


Janela aberta

Alegria nas cinzas e nas brasas,
Nas ervas e nos astros.
Alegria
Daquele que tem asas
E de quem vai de rastros.

Alegria no peito esfacelado
Na calada tortura dum queixume
Inviolável e fundo.
Alegria no cravo desfolhado
Pelo riso vermelho de perfume
Com que alegrou o mundo.

Alegria
No sussurro infernal do "brouhaha"
E no silêncio que sossega.
Alegria
No corpo que se dá
E na virtude que se nega.

Alegria na ausência do luar
E nas brumas do tédio
E na esperança incompleta.
Alegria
Na ventura de não saber sonhar
E na amargura sem remédio
De ter nascido Poeta.

Alegria berrante dum tambor
Sem peias, sem mentira
E sem surdina.
Alegria fantástica da cor,
Desde as cavernas de Altamira
À Capela Sixtina.

Alegria
Na treva em convulsões
E na risada calma da manhã.
Alegria
No ritmo alucinante dos trovões
E nas "Baladas" de Chopin.

Alegria no Sol poente
Na luz do novo dia,
Em tudo quanto existe.
Alegria
De ser contente
E na tristeza de ser triste.

Alegria
Naquele que se afoite
A suportar alheia cruz.
Alegria
No coração da noite
Pela ressurreição da luz.

Alegria
No oceano que se humilha e que se encerra
Sem revolta nem pena
Nas águas subjugadas dum riacho.
Alegria no seio da mãe-terra,
Nos bolbos impolutos da açucena,
Nas sementes culpadas do escalracho.

Alegria
Daquele que dá esmola
E de quem sabe recebê-las.
Alegria
Nas grades das gaiolas
E na chama liberta das Estrelas.

Alegria na órbita dos mundos
E ainda mais além.
Alegria nos ventres infecundos
E na suprema glória de ser mãe.

Alegria no eco das risadas
No meio da tristeza
Dum temporal desfeito.
Alegria nas lágrimas tombadas
Pela certeza
Do coração no peito.

Alegria
Na saudade do ausente
E na ventura do que já chegou.
Alegria num mal presente
A confirmar um bem que já passou.

Alegria 
Na alma que se ergue infrene
E num orgulho eterno
Combate com a carne e abate-a.
Alegria na escuridão perene
Do inferno
Ao perene clarão da Via-Láctea.

Alegria
Na fraqueza do forte,
No esforço do vencido,
Na dor que esmague e já se não suporte,
Na alegria magnífica da morte
Pela alegria de já ter vivido!

(06-11-1949)


Mea culpa!

Choro e não sei sofrer com humildade!
Sem cessar me revolto, veia a veia,
E amaldiçoo a benta claridade
Da partícula em flor da Lua-cheia.

E mais odeio ainda a falsidade
Da luz do Sol à chama da candeia,
Porque não alumiam com verdade
Minha alma negra a qualquer luz alheia.

Deu-me a vida uma cruz toda ela em sangue
E aperto os braços sobre o peito exangue,
Caído o lenho dos meus ombros nus.

E era tão fácil, Deus!, seguir-Te os passos:
Apenas precisava abrir os braços
E deixar-me pregar na minha cruz!

(10-09-1950)


Ser poeta

Ser Poeta é não ter nada tendo tudo
Nos sonhos que mais alto se alevantam,
É caminhar no chão, sequioso e mudo,
Bebendo a voz com que as Estrelas cantam.

É falar com as coisas silenciosas
De coração erguido e de alma nua
E entender o perfume com que as rosas
À noitinha conversam com a Lua.

Ser Poeta é ter em si toda a saudade
Que queima a vida mas que a não consome.
É ter fome de eterna claridade
E não ter luz para matar a fome.

Ser Poeta é desejar viver além
Da vastidão dos mundos conquistados.
É ser mais venturoso que ninguém
E também o maior dos desgraçados.

É ver com nitidez as linhas curvas
Já quando o vento em concepções estranhas
Traz as longínquas mãos ainda curvas
De acarinhar o dorso das montanhas.

Ser Poeta é ir mais longe do que a mágoa,
Tanto mais alto, quanto mais sofrer.
É ser humilde e grande como a água,
Que sem água ninguém pode viver.

É encharcar de Sol a carne exangue,
Carne pobre de cor e de sentido,
E possuir depois oiro no sangue
Por trazer nas artérias Sol fundido.

Ser Poeta é deambular pelos Espaços
Com asas brancas que inda não pulsaram.
É ver nos braços verdes dos sargaços
O berço onde as marés já repousaram.

Ser Poeta é suportar cruz e abrolhos
De face levantada e peito forte.
É descansar os olhos noutros olhos
Gozando o Paraíso antes da morte.

Ser Poeta é ser amor sem ser delito.
Ser ansiedade que jamais se acalma.
É ter a vida cheia de Infinito
E trazer Deus rimado dentro da alma!

(05-11-1950)



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