CÂNTICO DA CARNE (1953)




















(Maria Helena, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1953, 78 páginas)












CÂNTICO DA CARNE





OFERTÓRIO

Despido de qualquer manto,
Sem rasuras nem emendas,
Irmão: aqui tens meu canto!
Assim tu me compreendas!
Ao clarão de Luas-cheias,
Tão cheias quanto o Sol quis,
É para ti que abro as velas
E desenterro a raiz!






CÂNTICO DA CARNE

Quem ordenou que se apagasse o facho
E com ele o calor do coração?
Por quê, negar? Por quê, voar tão baixo
Que as asas rocem quase o chão?
Ao longe, mesmo até onde o olhar vê,
Vibram acenos desmedidos...
Fechar os olhos, para quê,
Se a paisagem persiste ao fundo dos sentidos?
De que serve mostrar-lhe só crepúsculos?
Vedar-lhe os Horizontes do porvir?
Homem feito de carne e pele e músculos,
Vai até onde o corpo lhe exigir.
Ainda que a descrença o arraste
Gritando a sua humana condição,
Tem altura que baste
Para tocar o Céu de pés no chão.
Aos seus passos viris, ponham-lhe escolta.
Tapem-lhe o Sol, de modo que o não veja.
Há-se ser sempre um grito de revolta
Numa presença que sobeja.
Exijam-lhe prisão e sacrifício
E o Homem será sempre aquele desvairado
Que vem do tempo em que o Início
Não tinha sido ainda iniciado.
Por quê negar, se em si traz um poder estranho
E de todos oculto?
Limitem-lhe a certeza do tamanho
E a estatura engrandece e toma vulto!
Como há-de acomodar-se a vontades alheias
Se em si tem, como estigma natural,
A rebeldia que lhe ensopa as veias
Desde o pecado original!
Ao princípio, nem quis ceder à espera.
É de sempre que a carne lhe estremece.
Foi ele que forçou a Primavera
Sem mesmo esperar que o Tempo lha trouxesse.
Depois, foi o ar livre a vertigem!
Como se viu Eleito,
Cuspiu na Terra humilde e virgem
O gosto a barro de que o tinham feito.
Ser humano, por quê negar? Pedir-lhe
Atributos de Céu e santidade?
Ninguém tem o direito de exigir-lhe
Alguma coisa mais que a humanidade.
Homem: avança inteiro para o redemoinho
Conforme o sangue te pediu
E mata em qualquer fonte do caminho
A secura que Deus te consentiu.
Avança, moderníssimo Quixote,
E leva bem na alma a convicção
Que nenhum ser pode apagar o archote
Que tu levas, erguido, em cada mão.





FUTURO

Maior do que eu, pois então?
E com promessas aos molhos:
Uma flor em cada mão
E Estrelas dentro dos olhos.
Maior do que eu, com certeza!
(Aos mais as coisas incertas!)
Com a Lua sempre acesa
E as rosas todas abertas!



PREFERÊNCIA

Lago quieto, silencioso,
Com mentira lado a lado:
Um fundo todo lodoso
Vestindo azul emprestado.
A Terra é suja e trigueira,
Tal qual Deus a concebeu.
Antes lama verdadeira
Do que água a fingir de Céu.



VIAGEM

Seja uma nova jornada!
Partidos grilhões e gelos.
A alma toda lavada
E o vento a dar nos cabelos.
Depois da angústia vencida,
Bem longe a idéia da Morte,
Abrir a fronteira à Vida
Sem lhe exigir passaporte.



VOO

Longe de mágoas e lodos,
Mostremos, num alvoroço,
Que o Céu que nos cobre a todos
Se é do Sol, também é nosso.
Nunca mais andar de rastros!
Voar no azul da Amplidão
E esconder até dos astros
Que nascemos rente ao chão.



AVISO

Não chores, que é coisa vã!
Cobres-te só de agonia
E vais roubar à manhã
Qualquer promessa de dia.
Matas a cor à risada
No rosto onde vive a dor,
Que a terra, quando é salgada,
Nunca mais pode dar flor.



IMPULSO

Sem recear cruz ou espinho,
Mágoa passada ou futura,
Que a dor aperta o caminho
E diminui a estatura.
Ao largo, o desgosto fundo!
Que as esperanças nos retomem.
Que bom caminhar no mundo
Com o tamanho dum Homem!



IMORTALIDADE

Agora, sei!
O destino é fugir da Morte,
Do seu apelo vão,
Seja qual for a sorte
Que a sina traz na mão.
É não ter medo de qualquer das margens,
Seja distante ou perto...
É ter olhos que sonhem líricas paisagens
Ante o convite dum caminho aberto.
O destino é um cântico preciso
E carmesim.
É levantar uma fogueira ao riso
Onde a tristeza arda até ao fim.
Depois, erga-se a Vida em cada ser
Mais alta do que os picos mais erguidos.
Como é que há-de morrer
Quem traz a Vida inteira nos sentidos?



AMOR TOTAL

Ama a Terra monte a monte
E de matiz a matiz,
Com a pureza da fonte
E a fundura da raiz.
Quer à Terra toda inteira!
Não penses que ela te chama
E que te dá a madeira
Da tua última cama.



SÍNTESE

Viver respirando fundo,
Cumprida ou não a promessa,
Que os dias todos do mundo
Há sempre Sol que os aqueça.
E seguir, sem ar de luto,
Tendo o coração por amo,
Com a alegria do fruto
Que amadurece no ramo.



MOTIVO

Se o Tempo foi negro ou fútil
E sem direcção passou,
Ninguém julgue o dia inútil
Se um botão desabrochou.
Vem a noite silenciosa
E o dia morre cumprido,
Que sempre existiu a rosa
A dar-lhe cor e sentido.



MILAGRE

Seja entre pedras até,
Semeia com mão de crente,
Que a força da tua fé
Há-de florir a semente.
Embora a flor que brotar
Não seja mais do que um espinho,
Fica a raiz a afirmar
Que em toda a parte há caminho.



DESVAIRADAMENTE

Vida nos gelos, nas brasas,
Em voo e espasmo e marés,
No azul, para abrir as asas,
No chão, para pôr os pés.
Vida no grito de dor
Ou nas estrada proibida...
Vida, seja como for,
Contanto que seja Vida!



AB  INITIO

Não tem culpa o coração!
Nós trazemos, vivo ou langue,
Todo o pecado de Adão
A exigir dentro do sangue.
Depois, a carne é fogosa
E de outra carne nasceu...
- Que culpa tem uma rosa
Da cor que a raiz lhe deu?



IRMÃO:

Ao menos, tu! Os braços levantados sem quebranto
E bem despidos os ombros.
Na voz, um tom vazui de espanto.
E no olhar, nem surpresas nem assombros.
Ao menos, tu! Sem temer riscos ou laços
(Pode-se lá temer uma mulher!)
E uma firmeza nos passos
Até onde a força der.
Ao menos, tu! A face sem brancuras de luar
Nem a contracções sujeira.
Quem tem coragem para semear,
Não pode ter receio da colheita.
Ao menos, tu!, numa atitude forte como o vinho,
Seja qual seja a passagem:
Os pés firmes no início do caminho,
Mesmo ignorando onde termina a viagem.
Nem lágrimas de dor, nem sussurro de preces
(Que "Ela" não é nem prémio nem castigo) 
E bem de frente o Sol, como se tu quisesses
Levar o Sol contigo.
Ao menos, tu! Segue o traço desconhecido
Que a sua mão desenhou,
Não com a amargura de quem foi vencido,
Mas com a audácia de quem conquistou.
Ao menos, tu!, porque a esperança inunda
A servidão da Terra e o azul-cobalto:
Nenhuma raiz mais funda
E nenhum voo mais alto!
Mostra a tua mudez sem a sombra dum véu
Inda que a "Ela" desapraza.
Diz-lhe que a tua vida foi um Céu
Aberto à tentação de qualquer asa.
Ao menos, tu! Do princípio ao instante derradeiro,
Olhos fitos na luz que te encantou
E dentro da alma o sonho inteiro
Que verdade nenhuma despertou.
Ao menos, tu! Levanta ao cimo a tua palma,
Inda que a sina grata te não fosse.
Que a noite encontre sempre na tua alma
O gosto a dia que a manhã lhe trouxe.
Ao menos, tu! No sangue as pulsações do Infinito,
O seu poder do teu poder suspenso,
Que tem mais força a força do teu grito
Do que a angústia mortal do seu silêncio.
Ao menos, tu! Bebe a alegria toda, devagar,
Vive, canta, respira, ousa o que mais ninguém ousou,
E que a Morte, a Morte vil te vá buscar
À distância onde a Vida te levou!



LENITIVO

Bem sei que sofres, Irmão!
Que vives dentro da guerra.
Mas vê que não é em vão
Que a semente cai na Terra...
Aceita a dor como brinde,
Que dela o teu Céu carece.
É mister que a noite finde
Para que o dia comece.



ATÉ AO FIM!

Que importa que falte pouco
Nem haja esperanças futuras?
Há sempre tempo dum louco
Fazer milhentas loucuras.
Não há dias nem idade
Que nos homens tenham mão.
Vive-se em profundidade
Quando não chega a extensão!



POETA

Fazer versos veia a veia,
Com sangue, nervos e fé,
Com a alegria da areia
Quando está cheia a maré.
Fazer versos muito meus
—— Dispor rosas e colhê-las —— 
Com a dádiva de Deus
Quando no Céu rima Estrelas.



FATALIDADE

De nada serve o Infinito
Mesmo ao alcance da mão:
—— Quem chora, tem sempre um grito
E quem reza, uma oração.
A inda volta a ser onda
Porque a espuma é renda vã.
Por mais que a noite se esconda,
Encontra sempre a manhã.



CONSELHO

Bebe a Vida com fervor,
Lentamente, de mansinho,
No perfume de uma flor,
Num passo a mais no caminho.
Seja em momento banal,
Seja em hora singular,
Que numa pedra de sal
Cabe o tamanho do mar.


CORAGEM!

Que a descrença te não dome!
Ainda mais longe, Irmão!
Não penses na tua fome
E dá inteiro o teu pão.
É preciso que aconteça
Dar aos mais o próprio bem,
Para que o homem mereça
As dores do parto da mãe.


COMPARAÇÃO

A Vida é como o bacelo
Que nem sabe que dá vinho...
O vinho, vá de bebê-lo
E não parar no caminho.
E que venha o pranto amargo
E venha mesmo a desgraça.
Beba-se o vinho dum trago
E no fim quebre-se a taça.


INCITAÇÃO

Poetas: vamos à conquista
Do Infinito aberto em frente.
Que nenhum de nós resista
Ao convite da nascente.
A secura é dos Espaços!
Na terra, só cinza e lama.
Para quê, negar os passos
Quando o caminho nos chama!



RUMO

Não hesites nem temas a viagem!
Desprende-te dum saldo
E contempla a paisagem
Dum lugar mais alto.
Se continuas como a angústia quis
Acorrentado a qualquer dor,
Apodrece-te a raiz
E não consegues dar flor.
Não hesites! Que faz que os outros tenham fel
Se aos teus ouvidos cantam epopeias!
Leva uma cor mais viva à flor da pele
E uma audácia maior dentro das veias.
O Céu é um convite alucinado
Onde pode chegar a tua mão.
E tu aí, parado,
De asas atadas e de pés no chão!
Deixa essa inércia mole
Que te afasta do Céu —— o bem dos bens! —— 
E abrasa-te no Sol
Que na terra não tens.
Que importa que depois te queime o fogaréu
E a Morte chegue a horas pouco certas!
Quem dera o meu destino igual ao teu:
Morrer da altura do Céu
E as duas asas abertas!


PER OMNIA SAECULA SAECULORUM...

Se a dor te bateu à porta,
Não julgues a Vida má,
Que duma ilusão já morta
Outra ilusão nascerá.
Deixa murchar no poente
A flor que foi traiçoeira.
Depois recolhe a semente...
...E renova a sementeira!


DIRECTRIZ

Trabalha com devoção,
Numa subida de aurora,
E acende com tua mão
Um Sol novo em cada hora.
Porque a alegria serena
Que nascer do teu suor,
Faz a noite mais pequena
E torna o dia maior.


CONVITE

A Vida tem pés no chão
—— Um chão diverso e moreno —— 
E há sempre na sua mão
Um movimento de aceno.
Já que a Vida não é vã,
Vive o que a Vida te der
E colhe a tua maçã
Onde o destino a puser.



OUSADIA


Ergue-te da sepultura
Numa ascensão verdadeira
E desabrocha em altura
Mesmo que o chão o não queira.
Ri do gesto das marés!
Faz da Vida preamar!
Quem tem corrente nos pés
Tem mãos que as podem quebrar!



EXEMPLO DO ALTO

Mesmo que não tenham cor
Teus dias ermos de luz,
Arranca de ti a dor:
Não te pregues numa cruz.
Olha: aprende com o vento
Ao longo das Estações
Que parte a cada momento
E em todas as direcções.



ODE À ESPERANÇA

Canta a canção verdadeira!
Canta, não importa como!
Canta com a voz inteira,
Com a frescura dum gomo.
Deixa a Torre de marfim,
Porque a canção não tem preço,
E quando chegares ao fim,
Volta de novo ao começo.



ABSOLUTISMO

Horas loucas de esplendor
Quando a gente se apaixona...
Um grande mar todo o amor
Trazendo beijos à tona...
Horas plenas de fragrâncias,
Longe de mundos e greis,
Sem Tempo a medir distâncias
Nem relógios a dar leis.



PROFISSÃO DE FÉ

Creio na Terra em flor e na semente,
Nesta Terra de enigmas insondados
Onde os caminhos se abrem de repente
À passagem dos sonhos mais ousados.
Creio no sangue ardente como brasa
Ultrapassando diques e barragens,
Como um ribeiro que extravasa
Por nãõ caber dentro das margens.
Creio no corpo são que se descerra
E onde cada beijo conquistado
Tem o sabor horizontal da Terra
Que nunca provou o arado.
Creio nas horas cálidas de febre
Da carne que se dá, mais fica pura,
Como na água que o homem bebe
Com o direito da secura.
Creio no olhar que vibre e se não dome
Aos ângulos prescritos,
Que da raiz é que lhe vem a fome
De comer Infinitos.
Creio na crença mais que singular
E sem entardecer,
Do que sabe sonhar
O que nunca há-de ter.
Creio no meu Irmão que desde a infância
E para lá do pão que foi negado,
Sabe encontrar promessas de abundância
Entre as dobras dum campo arroteado.
Creio na luz, na dádiva do riso,
No convite do mar
E acredito que o mundo é um paraíso
Onde qualquer de nós tem um lugar.
E acredito também na intenção erguida
Do homem que desafiando as iras da procela,
Em vez de abrir janelas para olhar
A Vida,
Prefere abrir caminhos para ir ter
Com ela.
Creio no Sol nascido e nos crepúsculos,
No bem, no azul, nas lágrimas até,
Como creio na força dos meus músculos
E na extensão da minha própria fé.  



RENOVAÇÃO

Irmão: quando "Ela" vier,
Acata a ordem divina,
Que numa terra qualquer
Qualquer semente germina.
Dá-te à Terra sem temores
Nem futuros nem passados.
Deixa que abram duas flores
Dos teus dois olhos fechados.


CULPA

Tu é que apagaste o lume
E te fizeste infeliz.
Depois quiseste o perfume
E só tinhas a raiz.
Vai e acende novas brasas
Com mais quente devoção.
Só se dá valor às asas
Depois de andar pelo chão.



PUBERDADE

Abre a alma par em par
Sem temer crítica alheia,
Quando o Sol se levantar
Na manhã de cada veia.
E se qualquer fariseu
Te ameaçar com frases cruas,
Responde que o Sol é teu
E as veias também são tuas.



EXALTAÇÃO

Homem: aproveita o dia!
Desfaz a tristeza feia
E acende a luz da alegria
Seja qual for a candeia.
Dá risos, cantos e bem,
E quando o dia acabado,
Deita-te na Terra-Mãe
Cada vez mais levantado.



HINO

I

Vem, meu Sol! Dá-me calor,
Que a noite mal se divisa.
Enche o mundo de esplendor,
Brasa que nunca tens cinza.
Trouxe-te a manhã gloriosa
Na palma de cada mão,
Aberto como uma rosa,
Inteiro como um perdão.


II

Vai, meu Sol! Vai descansar!
Repousa as formas redondas
No leito verde do mar,
Nos verdes braços das ondas.
Tens o teu dever cumprido:
Deste a luz que me alumia.
Volta amanhã mais erguido,
Pão nosso de cada dia!



SUGESTÃO

Irmão:
Bebe do vinho que semeias
À Lua de Janeiro, ao Sol de Agosto,
E não queiras saber se o que trazes nas veias
É sangue em vibração, ou vibração do mosto.
Sê como a cepa já sem uvas,
Calcinada e de parras que envelhecem,
Que bebe a esmola das primeiras chuvas
Como Deus mandou e as raízes merecem.
Esquece o vinho bebido pela estrada
E moderniza a trova,
Porque a antiga secura saciada
Há-de ser mãe de uma secura nova.
Que te importa que os dias sejam breves
E os limite qualquer poder divino!
Lembra-te que és um Homem e que bebes
Cumprindo a exactidão do teu destino.
Apanha os cachos mais erguidos
Como a semente os der
E bebe, mas não feches os sentidos
Ao convite que o sonho te fizer.
Sim! Bebe e alonga os olhos nos Espaços.
Crê na Terra lúbrica e trigueira
Ninguém manda que negues os teus passos
Ao aceno da estrada verdadeira.
Bebe e tece em constante claridade
Um sonho hora após hora mais perfeito.
Arranca à tua própria humanidade
A certeza do barro de que és feito.
Irmão:
Não procures saber se é mal ou bem!
Bebe o vinho da Vida-toda-inteira
E mostra ao mundo que inda existe alguém
Que não esconde nem teme a bebedeira!



ALUCINAÇÃO

...E levo a cabeça erguida
E nego-me a qualquer lei...
Não sei se mudou a Vida,
Ou se fui eu que mudei.
Cá vou seguindo na estrada
Que tanta frescura tem,
Não sei se ressuscitada,
Se nascida de outra mãe.



"QUERMESSE"

As rifas, vende-as a Vida
No mar, no cais, nas estradas...
As brancas, são de seguida!
Tão poucas, as premiadas!
Mas que hás-de fazer, Irmão!
Aceita o que te saiu
Como quem mastiga o pão
Que a boca lhe não pediu.



CRENÇA

Ah, Sonho que não sossega
E anda no mundo sem tino
A jogar à cabra-cega
Com a cegueira do destino.
Enche a nossa fantasia
E faz-nos crer com acinte
Que o que se não faz num dia,
Faz-se no dia seguinte.



ECCE  HOMO

Não te amesquinhes, Irmão,
Porque és mais do que parece:
Tu é que vês a extensão
Quando o milagre acontece.
Assim, mesmo entre os profanos
Que não mandam no destino,
São os teus olhos humanos
Que medem o que é divino.



FOME

Alturas, nuvens, fogachos,
Cores que a manhã remoça,
Apetecem como cachos
De vinha que não é nossa.
Poetas: vamos comer!
Quando a fome está vizinha,
A gente quer lá saber
Quem é o dono da vinha!


COMPENSAÇÃO

Lua-cheia em Céu bendito
Quando nasce toda nua,
Enche os mundos e o Infinito
E ainda sobeja Lua.
Tu és menor do que os bagos,
Homem de sonho e de areia,
Mas tens nos olhos dois lagos
Onde cabe a Lua-cheia.



APELO

Ó Irmãos que me escutais:
Subi a maior altura!
No vale não tereis mais
Do que silêncio e fundura.
De olhos fitos no Horizonte
Iniciai a viagem,
Que só do alto do monte
Se vê completa a paisagem.


POEMA IMPOSSÍVEL

Assim devia ser! Sem Norte ou Sul!
Os trilhos para aqueles que viessem
E o Céu distante e azul
Para todas as asas que o quisessem.
Assim devia ser! O Sol ao centro
Queimasse ou não queimasse
E as raízes que fossem Terra dentro
Até achar fundura que bastasse.
Assim devia ser! Fosse a jornada
Franca e aberta como a leiva:
Ser jovem sem fechar na carne represada
O desejo telúrico da seiva.
Mão a apontar a altura da subida
E em plena graça,
Beber o vinho cósmico da Vida
Não se importando de quem fosse a taça.
E negar a humildade que não conta!
Não rastejar nas sombras que consomem
E percorrer o mundo ponta a ponta
Com a medida natural dum Homem.
Assim devia ser! Grito de carne e espasmo
A queimar-se nas suas próprias brasas
E a subir na mesma onda de entusiasmo
Dos perfumes, dos cantos e das asas.
Assim devia ser! O sangue em preamar
Mordendo carnes loiras ou trigueiras
E merecer a bênção do luar
Como acontece às coisas verdadeiras.
Assim devia ser! Sem lentidões de espera
Nem saudades cruéis de tempos idos.
Que florissem na mesma Primavera
As rosas e os sentidos.
Que à expressão matinal de sinfonia
Viesse juntar-se qualquer voz ousada
Para que a luz ardente da alegria
Ficasse inteira e acabada.
Assim devia ser! A Vida face a face.
O destino seguro em mão segura
E o sonho que se erguesse e ultrapassasse
A sua própria altura.
Assim devia ser! Tivesse-se nos braços
A estrutura dulcíssima dos ninhos
E uma firmeza indómita nos passos
A dar sentido a todos os caminhos.
Se viesse o sofrimento inteiro ou vago,
Chorar, mas sem mentira nem disfarce
E do pranto lustral fazer um lago
Onde a extensão do Céu pudesse acomodar-se.
Depois, quando calado o grito agudo,
Partir de alma inundada de prazer
Tendo a certeza de que assim foi tudo
Só porque tudo assim devia ser.


CONSOLO

Quem te diz que a noite escura
Só traz desgostos e penas?
No seio da Terra dura
Germinam as açucenas.
Não chores sem tom nem som,
Mas pensa bem, devagar,
Como o dia vai ser bom
Quando a manhã regressar!


SABEDORIA

Homem de ideias e passos
Que és o rei da Criação:
Trazes as horas nos braços
E és todo interrogação.
Calma o anseio que te mente
E que te vem não sei de onde:
Tu perguntas ao Presente
E o Futuro é que responde.


TOTALIDADE

Amor inteiro, sem falta,
Que por isso é que ele é grande.
Chama da Vida? Mais alta!
Até onde a brasa a mande.
E sem temporais medonhos
Nem renúncias de luar,
Para que mais tarde os sonhos
Acabem como acabar!


CONDIÇÃO

Do fundo de cada ser,
Sem fel, sem dor e sem lenho,
Que o homem pode viver
Com sonhos do seu tamanho.
Venham de longe os acenos
Ou latejem em redor.
Os braços só são pequenos
Se a alma não for maior.



RUMO

Canta com mais vibração
Seja qual for a maneira.
Mesmo que não tenhas pão!
Inda que a Vida o não queira.
E que o Céu se não iluda:
Canta sempre quem cantou.
Não é a Morte que muda
O que a Vida não mudou.



DESASSOMBRO

Voltar as costas, por quê?
Para quê, renunciar?
Por mais voltas que o rio dê,
Acaba sempre no mar.
Que a carne viva sem mágoa,
Tal como Deus a concede.
Para quê, dar-lhe só água,
Se é vinho que ela te pede?



RESUMO

A Vida se bem que incerta
Na claridade ou na sombra,
Cabe numa rosa aberta
E nas asas duma pomba.
Seja como em sonho brando,
Seja em gume de punhal,
Viva-se rindo ou chorando,
Que tudo é Vida, afinal.



ÊMBOLO

Morte às horas de fel! Morte à tristeza!
Seja o calor da tua convicção
Que vista de translúcida certeza
O marasmo de cada hesitação.
Escuta: se voz alheia
Te relembrar a Vida já passada,
Mostra a Lua quase cheia
Na planície do Céu ressuscitada.
E se os mais abrirem guerra
Às tuas horas felizes,
Diz que a seiva que em ti erra
Vem tal qual da mesma Terra
Onde crescem as raízes.
Reage com palavras e com braços
Quando o Sol doira cimos e barrancos
Ou quando a neve caindo dos Espaços
Canta a pureza dos seus versos brancos.
E se te atacar o povo
Perguntando as razões mais o sentido,
Responde que em ti levas um deus novo
Que desertou dum Céu desconhecido.
Declara que a alegria tudo vence
E nada existe que a dome
E que a Vida é um fruto que pertence
A quem tiver mais fome.
Vai e não leves escolta
Nem temas o vendaval
E que suba o teu grito de revolta
Como um perfume eterno e vertical.
Calcando mágoas e espinhos,
Grita e afirma que a Esperança é uma mulher
Que passeia por todos os caminhos
E se entrega ao primeiro que a quiser.
Mostra o farol que te guia!
Conta a todos o segredo
Que levas no coração
E levanta tão alto a rebeldia,
Que o próprio Sol tenha medo
Que o alcance a tua mão.



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