VIA LÁCTEA (1948)





















(POESIAS, Maria Helena Duarte de Almeida (Maria Helena), Imprensa Portuguesa, Porto, 1948, 79 páginas)






Capa e "ex-libris" desenhados
por Álvaro Duarte de Almeida





VIA LÁCTEA




Via Láctea! Céu mais alto
Sobre um abismo de trevas
Sem porvir...
Ó caminho que me levas
Aonde eu não posso ir!



SONETOS


Os meus versos

Os meus versos nostálgicos, sem cor,
 Folhas mortas pisadas pelo chão 
São cânticos de dor à minha dor,
Pedaços do meu próprio coração.

Se alegrias vividas com ardor
As não soube guardar a minha mão,
Na alma arrecadei todo o amargor
Da minha incompreendida inquietação.

Versos cheios de febre e de incerteza,
A escorrer sangue, acerbos como espinhos,
Só os entende quem não for feliz.

Poetas! Meus irmãos nesta tristeza!
Chorai ao ler meus versos pobrezinhos,
Que eu também chorei muito quando os fiz!

(Lisboa)



Vitória

Meu Filho: é dura a luta e grande e intensa
Que sòzinhos os dois vamos travar.
Sobre a nossa cabeça está suspensa
Uma invencível nuvem de pesar.

Vamos pedir à nossa fé imensa
Tudo quanto em coragem nos faltar.
Que importa que a saudade nos pertença
E tenha em si a vastidão do mar!

Caminhemos na mesma direcção
Que não há forças vivas que nos domem
Quando se sabe, ao certo, o que se quer.

Vençamos o destino e o coração:
Tu, lembrando-te sempre que és um Homem!
Eu... tentando esquecer que sou Mulher!

(Milão)



Indiferença

Um ano de combate e de trabalho!
Vida que se viveu, mas de mau grado...
A lembrança do lar agasalhado
Num quarto dum hotel, sem agasalho...

Sonhos que se perderam pelo atalho...
Um outro que nasceu, mais levantado...
Destino que saltita fado em fado
Como as aves que vão de galho em galho...

A mágoa de não ver a Terra-Mãe...
A saudade cruel de quem é filho...
A cruz de novos Céus e alheios solos...

Que importa o nosso mal, o nosso bem,
Se a vida segue pelo mesmo trilho
E o mundo gira sobre os mesmos pólos!

(Milão)



Rajada

Não sei donde me vem esta ansiedade
Feita de inquietação e de tristeza.
Talvez do reino oculto da saudade...
Do castelo altaneiro da incerteza!

Que fizeram à minha mocidade
Que sendo um bem sem-par, tanto me pesa?
Nau do sonho, apanhou-a a tempestade
No mar alto da vida, sem defesa...

Meu pensamento é caos que não se acalma.
Que insondável abismo é a minha alma
Na luta entre o querer e o desistir!

Que inferno de tortura a toda a hora:
Querer dizer o mal que me devora
Sem palavras que o possam definir!

(Roma)



Perspectiva

Lábios famintos, secos, de proscrito...
Mãos unidas, num gesto de oração...
Luz que é radiosa e pura no Infinito
Maculada de sombras, pelo chão...

Um soluçar baixinho, sem um grito
 Que é assim que soluça o coração...
Almas que se afundaram no delito
E sucumbem à míngua de perdão...

Sonhos em flor, desfeitos, mal sonhados...
Beijos que morrem antes de trocados...
Renúncias...
Tanta cinza! Tanto pó!

Um gosto incerto e vago a mocidade...
A morte que há-de vir... Uma saudade...
Para quantos, a vida é isto só!

(Milão)



Desprezo

Que me importa que os outros pensem mal!
Que perguntem à chuva, ao mar, ao vento.
A causa desta dor, deste tormento,
Que uns julgam fantasia, outros real!

Tentam, em vão, quebrar-me o pedestal.
Procuram decifrar-me o pensamento
E escalpelam-me a vida, a seu contento,
E perdem-se no caos do temporal!

Que importa que me espreitem na subida,
Que me julguem falhada ou caprichosa,
Se o meu destino é trágico ou risonho,

Se eu hei-de continuar a minha vida
Cada vez mais fechada e silenciosa
Na torre inexpugnável do meu Sonho!

(Milão)



Cinza...

E fui tão fresca como a cotovia
Cantando de manhã entre os trigais.
Trazia o mel divino da alegria
A flor dos lábios rubros e leais.

As esperanças não findavam mais,
Antes cresciam sempre dia a dia.
A ventura era um néctar que eu bebia
E brotava em inéditos caudais.

Agora que caminho triste e exangue,
A alegria na dor amortalhada,
Os braços estendidos numa cruz,

Sinto dentro da alma toda em sangue
A dor da cinza fria e apagada
Ao pensar que já deu calor e luz...

(Lisboa)



Cerração...

Porque vaguei à toa, pelo mundo
 Encarnação suprema da amargura 
Vazia de ciência e à procura
Da chave do Mistério em que me afundo.

Cada vez o silêncio é mais profundo
E mais cerrada a noite, mais escura...
O Tudo e o Nada! O Gênio e a Loucura!
Vida que nasce, a par dum moribundo...

Ó Morte! Que Verdade em ti condensas?
Nebulosas fantásticas, suspensas
De Infinitos ainda por nascer...

Deus que criaste o bálsamo e os abrolhos,
Porque expões o Mistério aos nossos olhos,
Se nos negas o dom de o entender?

(Lisboa)



Dúvida

Mais um dia que passa e outro ainda
E atrás desse inda outro, sem cansaços.
E a vida foge, numa ânsia infinda,
Através do vazio dos meus braços.

E esta dúvida horrível não finda!
E esta loucura a acompanhar-me os passos
Vestindo de martírio a esperança linda
Dentro do coração todo em pedaços!

E o tempo que não deixa de correr!
E esta ansiedade feita de tristeza
Cada vez mais fantástica e pior!

Ó tortura infernal de não saber,
Tendo apenas por única certeza
Uma incerteza cada vez maior!!!

(Milão)




Transição

Recebi a minha alma por herança
De inato mundo informe, sem confim.
O meu corpo é sòmente o manequim
Das vestes do porvir e da lembrança.

Vida que já passou ou que inda avança,
Que do princípio vem ou já é fim,
Tudo o que espera e vibra e ecoa em mim
Se não é já saudade, ainda é esperança.

Caiam tronos reais, ergam-se impérios...
A alma que me assiste é só a imagem
Duma presença ainda por nascer.

Suspensa sobre um abismo de mistérios,
Sou apenas a ponte de passagem
Que liga o que já foi ao que há-de ser.

(Milão)



Ascensional

Alma, sobe mais alto! Que o Infinito
Pelo teu voo de águia devassado
Seja pequeno e estreito e acanhado
Para a expansão hercúlea do teu grito.

Deixa este mundo trágico e proscrito
Do teu sonho maior, jamais sonhado!
Alma, sobe inda mais! Mais levantado
O teu vôo fantástico, inaudito!

Transpõe a linha incerta das montanhas!
Vai tu aonde não foi nunca alguém,
Numa subida que não tenha fim.

Alma, sobe inda mais! Não te detenhas!
Mais alto! Cada vez mais alto! Além
Do mundo! Além da vida! Além de mim!

(Lisboa)




Alucinação

Não ser eu! Não ter forma nem sentido!
Nem lágrimas! Nem lutas! Nem anelos!
Ignorar o travor dos pesadelos
E o gosto a mel dum sonho inconcebido!

Viver nas brumas do Desconhecido
Sem erguer esperanças nem castelos...
Fossem fios de sol os meus cabelos,
Urna de amor, meu coração erguido!

Olhar “de cima” os crentes e os ateus,
Sentir o mundo, indômito, de rastros,
 Planície estéril, a altivez do monte!

Ser o capricho exótico dum deus,
Do meu olhar compondo a luz dos astros,
Com meus braços fechando o horizonte!

(Lisboa)



De profundis

Mordi a vida como um fruto doce
E embriaguei-me de sabor divino...
E logo ergui um sonho que me trouxe
À alma um encanto novo e peregrino.

Olhei o mundo como se ele fosse
Para o meu sonho de oiro, pequenino...
Mas o sonho doirado esfacelou-se
Entre as garras sangrentas do destino...

Seguindo um trilho incerto, vagabundo,
A minha boca rubra, de medronho,
Perdeu a cor rosada e apetecida.

De que serve correr por todo o mundo
Se o sonho nunca mais pode ser sonho
E a vida, agora, já não sabe a vida!

(Lisboa) 



Descida

De olhos fitos na curva das montanhas
Elevei o meu voo de condor
Cega das contorções vitais e estranhas
Dum novo Sol mais límpido e maior.

Desprezei asas leves, mas tamanhas
Que iam além da minha própria dor...
De olhos fitos na curva das montanhas
Julguei-me eleita aos olhos do Senhor...

Subi sem me deter, sem lassidão,
Certa de ver a Terra-Prometida...
Mas ao chegar ao cimo reluzente

Só vi o espectro da desilusão
Apontando-me o trilho da descida
E a rir, a rir de mim, perdidamente!

(Estoril)



Suspensão

Braços ao alto em ânsias de Infinito,
A expressão deslumbrada e entontecida,
Seguiu meu coração um novo rito
Com fé num grande sonho sem medida.

Mas chegou a Verdade e sem um grito
À minha vida opôs a sua vida,
E nos braços erguidos e em conflito
Ficou suspenso o gesto da subida.

Cavem-se abismos negros e profundos.
Tentem chegar ao Céu cumes sem-fim,
Acabe o Sol ou seque o mar imenso,

Saia o mundo da órbita dos mundos,
Que sempre vibrará dentro de mim
O eco do gesto que ficou suspenso.

(Lisboa)



A minha esperança

Realizar um sonho, para quê?
Duma esperança alcançada e já vivida
Só resta uma saudade mal sofrida
Testemunhando a graça da mercê.

Carne que se adivinha e se não vê,
É carne eternamente apetecida,
Enquanto numa hora enlouquecida
Se esvai a fé daquele que mais crê.

Esperança que não perde a mocidade
Nos braços glaciais da saciedade,
Que luta sem temor contra o destino,

Assim há-de ser sempre a minha esperança,
Ó meu desejo até ao fim criança,
Meu sonho por sonhar sempre menino!

(Lisboa)




Nocturno

Sou como tu, ó noite torturada,
Chorando no silêncio, a horas mortas,
Quando o medo caminha pela estrada
E força com vigor todas as portas.

Sou como tu, tristíssima e calada...
Ambas somos nostálgicas e absortas...
A minha alma na tua anda abraçada...
Com o teu mal, meu grande mal confortas!

Eu sinto a tua dor irmã da minha
E dentro de mim mesma é que encontraste
O eco das tuas lágrimas saudosas,

Que eu bem vi, mal rompeu a manhãzinha,
As lágrimas ardentes que choraste
Escondidas nas pétalas das rosas...

(Milão)



10º Negativos

Um frio de matar! Tudo branquinho!
A aquecer a paisagem em redor,
Nem o perfume alacre de uma flor    
Nem as asas subtis de um passarinho.

A minha alma vacila, em desalinho...
Quanta dor no meu peito, quanta dor!
Sonhos que me deixaram sem rumor...
... Folhas mortas na curva do caminho!

Que saudades de quando a minha vida
Era uma estrada aberta ao Sol, florida,
Um trilho sem atalhos nem barrancos.

E enquanto eu cismo, trêmula e gelada,
A neve anda lá fora, entusiasmada,
A escrever um poema em versos brancos...

(Milão)




Fiat voluntas tua!

Deus! Que a Tua vontade seja feita!
Curvo a minha cabeça humildemente
Sob o poder da Tua mão perfeita
Com a resignação de quem é crente.

Eu Te dou o meu sonho florescente,
Minha carne rebelde, mas sujeita,
A minha alma culpada e penitente
Talhada em dor e em lágrimas desfeita.

Ainda mais, Senhor meu Deus, Te dou:
Boas acções, pecados, mocidade,
O gosto a fel duma ilusão perdida...

Dou-Te tudo o que tenho e quanto sou... 
Só não poderei dar-Te esta saudade
Sem primeiro Te dar a minha vida!

(Milão)



Toada

Tua boca aflorou a minha mão
E meus dedos esguios e compridos
Como arautos que são dos meus sentidos
Vibraram numa estranha vibração.

E sentindo essa estranha vibração
Que percorreu em fogo os meus sentidos,
Os meus dedos esguios e compridos
Fecharam o teu beijo em minha mão.

E a tremer por sentir na minha mão
O louco despertar dos teus sentidos,
Num momento de estranha vibração

Tive nos meus sentidos teus sentidos
Quando o beijo fechei na minha mão
Com meus dedos esguios e compridos...

(Lisboa)



Gratidão

Por o meu lindo sonho ter morrido,
Não quero mal à vida que o levou,
Porque se a vida agora é sem sentido,
Foi mãe do sonho que me deslumbrou.

Se o destino, traiçoeiro, me negou
Todo o bem que me havia prometido,
Não o culpo do nada que hoje sou
Nem da morte do que antes havia sido.

Assim caminharei, estrada adiante,
Que se o meu sonho se desfez em mágoa,
Foi da vida que o sonho amanheceu.

Não sou como o sedento caminhante
Que se lembra de ter bebido água
Tendo esquecido a fonte onde bebeu...

(Lisboa)




Panteísmo

Eu sou a essência lúbrica do mosto
De imanações violentas e carnais...
Sou a curva das asas dos pardais
Voando à doida pelo Céu de Agosto...

Sou a última chama do Sol-posto
Incendiando os oiros dos trigais...
Sou a alegria quente dos beirais
E dos frutos do Outono o aroma e o gosto...

Sou o perfume estático das rosas...
O olhar ingênuo dos botões a abrir...
A alma incompreendida do luar...

Sou o brado das coisas silenciosas
Que têm coração para sentir
Mas não possuem voz para falar...

(Lisboa)




Bucólica

Na tardinha a esvair-se moribunda
No incêndio que a terra inteira abrasa,
O aroma dos lilases tudo inunda
Endoidecido pelo Sol em brasa.

Em redor, uma aragem vagabunda,
Leve como a carícia duma asa,
Numa união sem mácula e fecunda
Os perfumes e a cor irmana e casa.

Sinto-te em mim no fogo da tardinha...
E na minha alma, alucinadamente,
Erguem-se chamas altas e fugazes.

E a tua alma febril beijando a minha
É o beijo do Sol, fogoso e quente,
Endoidecendo o aroma dos lilases...

(Lisboa)




Orgulho

Minhas são as auroras cor das rosas
E astros em fogo pelo Céu sem-fim...
E águas do mar e nuvens caprichosas
Criou-as Deus apenas para mim.

Eu compreendo as noites silenciosas...
O luar fala comigo, no jardim...
E a minha boca - pétalas viçosas! -
Foi modelo dum cravo carmesim...
........................................................................

Temendo sempre que outros me desmintam,
Se grito um bem que a vida me negou
E se apregoo dons celestiais,

É só para que os outros não pressintam
No quase nada que no mundo sou
A imensa dor de não poder ser mais!

(Lisboa)



Luar

Noite calma de lua. Céu tecido
Pelas mãos caprichosas dalgum mago...
Palpitam asas no silêncio vago...
Entreabrem as flores, sem ruído...

Vibra no ar um sonho indefinido,
Doce como o desejo de um afago...
Sentindo o sono plácido dum lago
O mar adormeceu, calmo e vencido...

Outono inda a sorrir... Serenidade...
Paira um perfume incerto de saudade
No ar sereno... aqui e além... disperso...

Ecos de asas sem cor... Águas paradas...
Sobre a alma das coisas deslumbradas
O luar canta a música dum verso...

(Estoril)




Regresso

Ó meu país perdido entre as estrelas!
Meu castelo com torre de menagem
Aonde eu era bela entre as mais belas
E onde os reis me prestavam vassalagem!

Minhas pombas branquinhas e donzelas
Noivando no mistério da folhagem!
Minhas doiradas, lindas caravelas
Vogando numa inédita viagem!

Ó Terra-Mãe da eterna Primavera
Onde há rosas e goivos todo o ano
E as noites são sorrisos de luar!

Ó meu país de sonho e de quimera
Do qual eu vim, um dia, por engano,
E para o qual, um dia, hei-de voltar!

(Paris)





POEMAS



“Adágio”

Filho:

Foi para ti que Deus floriu as rosas
E deu o azul sem-fim aos passarinhos.
Para acalmar-te as horas sequiosas
Foi que espalhou as fontes nos caminhos.

E disse ao mar - senhor das marés cheias -
Vendo a criança linda que tu és,
Que se rojasse, humilde, nas areias
Para beijar a alvura dos teus pés.

Para ti consentiu que só Leonardo
Roubasse ao mar a incógnita da onda,
A luz aos astros, a frescura ao nardo,
Para pintar o rosto da Geoconda.

Criou Deus as florzinhas da mimosa
Para enfeitar as tuas mãos imbeles
E encheu os Céus de arcanjos cor-de-rosa
Para que tu, meu Bem, sonhes com eles.

Para ti fez as frutas aromáticas
E deu gosto aos perfumes da manhã
E fez brotar as lágrimas cromáticas
Na música divina de Chopin.

Foi para encher de pasmos sobre-humanos
Tuas pupilas límpidas, castanhas,
Que deu planura às águas dos oceanos
E corcovou o dorso das montanhas.

E às pedras rudes, fortes, leoninas,
Deu movimento e cor e forma e audácia,
Desde os penedos brutos das ravinas
À Vitória ideal de Samotrácia.

Vendo Deus a alegria do teu rosto,
Para que ela de ti nunca se ausente,
Fez nascer da agonia do Sol-posto
O grito triunfal do Sol-nascente.

E deu sombra e silêncio ao val´profundo
E às estrelas do Céu deu luz e brilho
E deixou que eu viesse a este mundo
Para poder, Amor, chamar-te Filho!

(Milão) 



Sinfonia do pingo de água

Acabou de chover. Enlanguescida
Num instante supremo de abandono,
A terra calcinada
E ressequida,
Bebeu o germe duma nova vida
Na primeira chuvada
Deste suave outono.

Interrompido o beijo mal trocado,
Sequiosa, a terra chora o seu destino.
Só na goteira estreita do telhado
Ficou cantando o som continuado
Dum pingo de água alegre e pequenino.

E a gota cai, fugaz, ligeira,
Sem provocar distúrbio nem alarme.
Mas o som repetido, sem canseira,
Do “pingo-pingo” certo da goteira
Começa, lentamente, a irritar-me.

Num nervosismo que eu vão escondo
Sinto que o som alastra, sobe, desce,
Enche o silêncio de ansiedade.
E o pingo de água, túmido e redondo,
É a lágrima que nasce e cresce,
Uma lágrima enorme, de saudade!

Procuro não ouvir. Pego num livro.
Mas na minha alma desatenta
Num misto louco de revolta e mágoa,
A sinfonia (Pingo! Pingo!) aumenta
E não me livro
Do “crescendo” infernal da gota de água.

Ao som do “pingo-pingo” bem ritmado
As minhas mãos doentes, de nervosa,
Começam a tremer,
Enquanto na beirinha do telhado
A gotinha invisível e teimosa
Vai dançando um “can-can” de endoidecer!

Dentro de mim num desatino
Sem culpa nem perdão,
O som cantado e cristalino
Do pingo de água alegre e pequenino
Tem ressonâncias brutas de trovão.

Sem suspeitar da sua estrela má,
O pingo de água, certo, repetido,
Continua o seu canto alegre e fútil,
E o meu corpo gelado e dolorido
Entre os gelados braços dum sofá
É uma coisa inútil!

Mas esgarçando as nuvens, de repente,
Uma réstia de Sol rompeu, a medo...
E ante a promessa luminosa e quente
Ergue-se num canto, alucinadamente,
Desde a minha alma às folhas do arvoredo.

E embriagada pela luz divina,
Numa cadência que já mal distingo,
A gota de água alegre e pequenina
Continua a toada cristalina
Pingo... pingo... pingo... pingo...

(Milão)



Quem?

Quem deu asas ao Céu e aos passarinhos?
Quem ensinou o ofício às abelhas?
Quem, de noite, defende e embala os ninhos
E assiste, oculto, ao parto das ovelhas?

Quem deu calor ao Sol, força ao granito
E ao rouxinol a voz quente e vibrante?
Quem acendeu estrelas no Infinito
Alumiando a estrada ao caminhante?

Quem deu à noite a sua cor sem cor
E o oiro fulvo às límpidas manhãs?
Quem fez nascer da pequenina flor
O riso ensanguentado das romãs?

Quem deu impulso às ondas incessantes?
Quem fez brotar as águas das nascentes?
Quem fecundou as árvores gigantes
Nos ovários exíguos das sementes?

Quem ordenou à flor que suavizasse
A dureza das pedras dos caminhos
E quem mandou ao vento que empurrasse
As velas retesadas dos moinhos?

Quem susteve nos ares os planetas
E entornou rios de oiro sobre as praias?
Quem perfumou a cor das violetas
E coloriu o aroma das olaias? 

Quem emprestou frescura à ventania
E tingiu as papoilas de carmim?
Quem deu aos outros homens a alegria...
... e se esqueceu de mim?

(Lisboa)



Versos à morte

(Naquele dia desejei morrer...)

Chamei-te e não vieste. Longamente
Olhaste-me 
De longe, sem piedade.
E no dia cinzento e deprimente
Deixaste só meu coração doente
E a minha envelhecida mocidade.

Não viste os meus cabelos desmanchados
Nem sequer respondeste aos meus apelos
E não leste em meus olhos torturados
Nem nos meus pensamentos desgrenhados,
Mais desgrenhados do que os meus cabelos.

Não compreendeste a chama do desgosto
Que se envilece, ao mesmo tempo exalta
E não viste o meu seio decomposto
Nem os traços disformes do meu rosto
Onde o pranto rugia em maré alta.

Não olhaste os meus dedos macerados
Que se queimavam num mortal braseiro
Nem poisaram teus olhos mutilados
Nos meus braços convulsos e gelados
Como os gelados braços dum cruzeiro.

A mim, que te quis tanto e te chamei,
Apontaste uma nova directriz.
E obedecendo ao fel da tua lei
Levaste alguém ditoso como um rei
Que nunca te chamou e te não quis.

E quando um dia, o Céu de novo em festas,
O Sol ao alto, a primavera em flor,
A vida, uma alegria sem arestas,
E esperanças risonhas e honestas
No coração onde morreu a dor;

Quando vibrarem todos os caminhos
Ao ritmo do meu passo regular,
 A vida em rosas, mortos os espinhos 
Quando aos meus braços, quentes como ninhos,
Voltar de novo o gesto de embalar;

Quando o meu tempo for calmo e louvado
E uma ilusão florir todas as horas;
Quando a luz dos meus olhos sem pecado
Acender no Infinito inda ensombrado
A mais linda de todas as auroras;

Quando o meu sangue, ardente como lume,
Incendiar o meu corpo delicado
E em minha boca livre de negrume,
Se erga vermelho e límpido o perfume
Dum beijo eternamente renovado,

E quando eu não tiver mais na memória
O gosto da saudade e mais da ausência
E sacrifique no alto-mar da glória
E as minhas mãos modelem com vitória
O mármore invencível da existência;

Então chegarás tu, negra e sombria,
Como esfaimada loba traiçoeira
E hás-de calar meus risos de alegria
E anoitecer a alvura do meu dia
E destroçar a minha vida inteira!

Verei nas minhas pobres mãos vencidas
O impulso criador desfeito em nada
E a minha vida  de expressões erguidas  
Será no anonimato de outras vidas
Mais uma vida anônima e falhada.

E tu, cobarde!, num prazer atroz
Em cinzas transformando quanto amei,
Matarás o meu bem, sinistro algoz!,
Tu, que não escutaste a minha voz
Quando eu tanto te quis e te chamei!

(Lisboa)



Paralelo

Pisado, sem revoltas nem carinhos,
Esquecido na berma dos caminhos
Silencioso e só,
Numa angústia sem-fim, mas resignado,
Vive a sua tragédia de humilhado,
O pó.

Contempla estrelas, ramarias,
Vê morrer noites, vê nascer os dias,
Quer erguer-se, mas todo o esforço é vão.
E sem esperança, sem um norte,
Suporta a vida e espera a morte
Acorrentado ao chão!

Consigo a sós,
Olhando o Céu de azul cobalto,
Cala-se num tormento atroz
Como os que tendo voz
Não ousam falar alto...

Mas vem um dia
E as mãos da ventania
Quebram o encantamento.
E o pó, humilde e pequenino,
Esquece que era humilde o seu destino
E começa a subir nas mãos do vento.

E de pisado, rasteirinho e quedo,
Sem fraqueza ou canseira,
Ergue-se a toda a altura, já sem medo,
E aperta os ramos altos do arvoredo
Num abraço de poeira.

Sacudidas por duas mãos possantes
É igual a dor das árvores gigantes
E a do botão que mal floresce,
Pois num acesso de ira
A ventania cresce e sobe e gira
E com ela o pó gira e sobe e cresce!

E sobe e sobe sempre e sobe mais,
Deixa espinheiros, matagais,
Tojos em flor e ervas maninhas.
Quebrados os grilhões da escravatura,
Esquece o chão e toma altura
E vai além do voo das andorinhas. 

Mas quando já perto do Céu,
Todo o sonho do pó findou
Às mãos de quem o concebeu:
Se foi o vento que o ergueu,
O mesmo vento o dispersou!

E a ventania aumenta o seu clamor!
E da poeira dispersa, num momento,
Uma lembrança ficou só...
...........................................
... Ó minha dor!
Tu, foste o vento...
Eu era o pó!

(Lisboa)



Purificação

Neva!
Por toda a parte o mesmo branco intenso
Cobrindo de pureza
Toda a impureza
Das intenções dos homens...
Neva!
As ruínas da cidade bombardeada
Vestem um manto imenso
Duma misericórdia inesperada...

É tudo puro à minha roda:
Os passeios, as árvores despidas,
As ruas onde a vida da cidade
Se desdobra em mil vidas.

Até eu mesma, impura como sou,
Sob a pureza deste véu,
Caminho (eu, que não sei aonde vou!)
Julgando que os meus passos vacilantes
Me conduzem ao Céu...

Macerada por íntimos abrolhos,
Avanço ao Deus dará...
E a brancura da neve
Purifica os meus olhos
Que tantas coisas negras viram já!

E a neve cai-me nos cabelos,
Ligeira, fluida, quase em pó.
E os meus cabelos ficam todos brancos
Tal como se eu tivesse envelhecido
Mais de vinte anos
Numa hora só...

Enterro as mãos na neve
Mansamente, devagar,
E fico com as mãos geladas
Mas tão purificadas
Que até podia consagrar...

Ah! Quem pudera expor à neve
Meu coração imerso em sonhos vãos,
Para que ele, tão cheio de pecado,
Ficasse límpido e purificado
Como os meus olhos
Os meus cabelos,
As minhas mãos...

(Milão)



Poema

Quando eu passar...
Quando eu passar
E em mim o verbo ser deixar de ter presente,
Tudo o que vive e existe há-de continuar,
O dia terá sol, a noite terá luar
E Deus há-de ser Deus eternamente.

Poentes cálidos, absortos,
Luz liquefeita em cores, a escorrer
Num rubro Céu de Agosto...
Só os meus olhos mortos
Ai! Nunca mais hão-de beber
A cor ensanguentada do Sol-posto!

O vento há-de gritar de porta em porta
Ou nos desertos matagais
Trespassando os silêncios de pavor...
Só esta boca morta
Não dirá nunca mais
“Meu Amor!”

Espalhando nostálgicos confortos,
A voz das fontes encherá
A vastidão dos campos sós...
Só nestes meus ouvidos mortos
Nunca mais cantará 
O som da tua voz!

Sol que tudo confortas
Sob a bênção vital da tua luz
Matura o pão e aloira o milho...
Só as minhas mãos mortas
Nunca mais traçarão o gesto duma cruz
Sobre a amada cabeça do meu filho!

Alegrando o meu horto
A voz das aves continuará
Seus cantos harmoniosos e dispersos...
Só o meu corpo morto
Desaparecerá
E com ele a harmonia dos meus versos!

Muito embora o meu mal seja profundo,
Apesar desta dor que não tem fim,
Aqueles que eu amei ficam no mundo
Para alguém os amar depois de mim!

O Sol há-de brilhar nos Céus distantes!
Há-de florir de novo a Primavera
E tudo há-de voltar ao que era dantes...
Só eu não voltarei a ser quem eu era!

(Lisboa)




Noite de insônia


Não consigo dormir. Há quantas horas
Tento aquietar-me, numa esperança vã,
Três badaladas límpidas, sonoras,
Gritam que são três horas da manhã.

O remédio não fez nenhum efeito
Nem tão-pouco o chá de tília.
Sozinha, no silêncio do meu leito,
Tenho que suportar o temporal desfeito
Das infindáveis horas de vigília.

Os pensamentos cruzam-se em tropel
No meu cérebro cansado,
Enquanto o impossível, mau, cruel,
Na minha alma verte o mel
Dum sonho nunca sonhado.

Numa incontida ansiedade
Em busca da claridade
Que há-de chegar forte e bela,
Não consigo desfitar
O contorno irregular
Do rectângulo escuro da janela.

A vida voa como um passarinho...
E sem hesitações e sem tremer,
O tempo vai andando de mansinho
Entornando os minutos no caminho
Que não mais tornará a percorrer.

Cinco e meia! Já sinto a palpitar
O dia que mal começa.
Ó mistério singular:
Porque é que o tempo vai tão devagar
E a vida vai tão depressa?

Vendo que a noite fraqueja
Vou correr a gelosia
Para que o sono não veja
Que já vai rompendo o dia...

Mas entoando a canção da madrugada
A manhã, na opulência dos seus brilhos,
De encontro à gelosia mal fechada
Risca um traço de luz em volta dos caixilhos. 
Atravessando as ripas silenciosas
Da gelosia
Donde os meus pobres olhos não aparto,
Sinto a magia
Das mãos da claridade, milagrosas,
Pondo como dedadas luminosas
Na escuridão do meu quarto.

Seis horas! O relógio, num zumbido,
Vai caminhando sem pressa.
Na rua, num “crescendo” indefinido,
Vai alastrando o som interrompido
Da vida que recomeça.

Com os dedos esvaídos
Esfrego os olhos doridos
Espicaçados por mil grãos de areia.
Grita a luz já sem brumas nem prisões...
Oiço os primeiros pregões...
São sete e meia.

Sinto o corpo quebrado, num enlevo,
Num delicioso abandono.
Penso em me levantar, mas não me atrevo...
Já não sei bem o que escrevo...
... Parece que tenho sono...

(Lisboa)



Abril

Afogaram-se os ruídos da cidade
No dia todo azul de Primavera.
Atrás de mim ficou minha ansiedade
E a minha dor imensa
Ficou suspensa
Num compasso de espera...

Meu coração doente
Procura o ar saudável do jardim
De grandes ruas espaçosas,
Deste jardim de toda a gente
Mas onde não é fácil distinguir
O riso das crianças 
Do perfume das rosas.

Olho as ramadas altas do arvoredo
Aonde o vento bonançoso
Canta desconhecidas trovas.
E vejo tão purinhos os rebentos
Que até sinto vontade de beber
O verde inda leitoso
Das folhas novas...

Na indômita canção
Do roseiral
Em flor,
É tão grande a frescura dos matizes
Que oiço bater no coração
Toda alegria vegetal
Que palpita na cor
E pulsa nas raízes.

E esqueço as horas tristes de saudade
Na claridade
Que vem da Altura
E doira as folhas de hera.
E desfaz-se o negrume que me invade
No êxtase divino da verdura
No dia todo azul de Primavera!

(Milão)



Poema  (1)

Cante o Sol o seu cântico de cor,
De vitória e de encanto.
Cante na limpidez do seu fulgor
Fazendo entreabrir com seu calor
Uma rosa de luz em cada canto.

Cante a noite o silêncio na Amplidão
Dos longes siderais,
Quando, com calma e abnegação,
Torna maior a sua escuridão
Só para que as estrelas brilhem mais.

Cante a seiva incontida a mocidade
Dos rebentos futuros,
Das raízes antigas.
Grite bem alto a sua liberdade
Entre os trigais maduros
Na doirada promessa das espigas.

Cante o vento nas curvas do caminho
Sem peias nem temor,
Na sua voz dulcíssima ou funesta,
Quer embalando ternamente um ninho
Quer arrancando gritos de estertor
Ao roble milenário da floresta.

Cante também a aragem de fugida
Do coração da flor, em coração,
Quando, numa alegria desmedida,
Transporta em sua etérea boca a vida
No beijo ardente da fecundação.

Erguendo aos Céus as ondas dos seus braços
Que o mar cante sonoras melopeias
E o seu canto encha o mundo lés-a-lés.
Cante a canção bravia dos sargaços...
Cante o destino incerto das areias...
Na voz incompreendida das marés.

Caindo sobre a terra palpitante
Exausta de calor, agonizante,
Queimada por um Sol sem caridade.
Cante a chuva sem danos e sem mágoas
Na sinfonia líquida das águas
A melodia da vitalidade.

Cante dentro da terra a voz do grão
Sentindo o sangue a circular, fremente.
Cante, pela certeza da transmutação,
Quando amanhã for pão
O que hoje inda é semente.

Cante o fogo no horror da tempestade
Na voz do raio, com ferocidade,
Ou na chama votiva dum altar.
Cante as suas vitórias derradeiras
Subjugado nas brasas das lareiras,
Aquecendo velhinhas a rezar.

Cantem os homens todos, maus ou bons,
Cantem as cores, os pássaros e os sons,
Num coro ascensional, ardente e forte.
E numa sinfonia nunca ouvida
Cante a morte o triunfo sobre a vida
E cante a vida enquanto espera a morte!

Cantem as pombas mansas, os leopardos,
O bálsamo do mel, a dor dos cardos,
O perfume da flor, a voz do mar.
Cante tudo sem medo nem ficções
Para que entre o estridor de mil canções 
Seja só eu a única a chorar!!!

(Lisboa)
__________

(1) - 1º prêmio de poesia lírica dos Jogos Florais da
 Emissora Nacional de 1946.
     



Ladainha

Ó minha Dor!

Trilho roxo de olaias
Onde sangram meus pés...

Ó mar sem praias
E sem marés!

Ó minha Dor!

Gritos de mil procelas...
Torre erguida na areia...

Ó Céu sem estrelas
Nem lua cheia!

Ó minha Dor!

Sonhos claros e sãos
Levezinhos de espuma...

Ó ímpares mãos
Cheias de brumas!

Ó minha Dor!

Esperanças ao largo
No mar despedaçadas...

Ó gosto amargo
De asas quebradas!

Ó minha Dor!

Canção nova e sem eco
Numa boca gentil...

Ó jardim seco
Antes de Abril!

Ó minha Dor!

Sol generoso e quente
Num recanto sombrio...

Ó beijo ardente
Morto de frio!

Ó minha Dor!

Cravo que era encarnado
Sem perfume nem cor...

Riso falhado...

Ó minha Dor!
Ó minha Dor!

(Lisboa)




Pela última vez

Aquilo que se faz ou que se diz
Pela última vez,
Seja o sorriso de quem é feliz,
Seja um grito afogado na mudez;

Ainda que no peito fatigado
Não brilhe já a chama louca
E na boca o sabor do beijo dado
Não for mais que a saudade de outra boca;

Inda que o sonho vivo como lume 
Tenha perdido o fogo e a fragrância
Porque a sua lembrança já se esfume
Nos dolorosos braços da distância;

Que tristeza tão grande que nos traz
Uma recordação, mesmo sem nitidez,
Daquilo que se diz ou que se faz
Pela última vez!

(Milão)




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