... E A CARNE SE FEZ VERBO! (1957)

























... E a carne se fez verbo!, MARIA HELENA, Lisboa (Porto - Imprensa Portuguesa), 1957,
 147 páginas)



NOTA:

Livro originalmente composto de sonetos monostróficos (14 versos numa só estrofe) e em letras maiúsculas. Julgando ser para o leitor uma melhor leitura,  optou-se por manter a forma tradicional do soneto (4 estrofes) comumente usada pela poetisa MARIA HELENA, com a utilização das letras maiúsculas apenas no início dos versos e em uma ou outra palavra, escolha da poetisa já vista em outros livros dela.










Ex-libris de
Álvaro Duarte de Almeida






MARIA HELENA


... E A CARNE
SE FEZ VERBO!








LISBOA
1 9 5 7






DEDICATÓRIA



PARA

                             DENISE BELARD DA FONSECA






- COMPANHEIRA FIDELÍSSIMA DAS
MINHAS TRAVESSURAS DE CRIANÇA,
DOS MEUS SONHOS DE RAPARIGA,
DAS MINHAS LÁGRIMAS DE MULHER.

        


... E A CARNE SE FEZ VERBO!


CANTO COMO QUEM REZA: OS DOIS JOELHOS VERGADOS
A RASAREM O PÓ DE TODOS OS CAMINHOS;
O OLHAR EM ASCENSÃO AOS MUNDOS IGNORADOS
E A FRONTE A GOTEJAR, COROADA DE ESPINHOS.
CANTO AO SOL DA MANHÃ DOS DIAS COMEÇADOS
AS HORAS DE RENÚNCIA E OS GRANDES DESALINHOS.
CANTO OS BEIJOS DE AMOR E OS ABRAÇOS NEGADOS,
A PELE VIOLENTA E RUBRA OU DA ALVURA DOS LINHOS.
E A CARNE SE FEZ VERBO EM REVOLTA E SAUDADE,
EM PROMESSAS DE LUZ, NAS BAGAS DE SUOR,
NA GLÓRIA DE ASCENDER, NA MÁGOA DA DESCIDA.
TODA EU SOU UM SALMO A ARDER DE HUMANIDADE,
QUE EM MINHAS VEIAS CANTA O SANGUE EM TOM MAIOR
OS VERSOS IMORTAIS DA EPOPEIA DA VIDA!







DO MUNDO





INDECISÃO

Posso lá prosseguir na caminhada!
Andar com segurança para a frente,
Se uma dúvida atroz e permanente
Enche de névoa a lucidez da estrada!

Se o sangue exige em voz alvoroçada
E tenta impor a sua cor presente,
Logo a renúncia ensombra de poente
O que nunca passou de madrugada.

Seja a hora confusa ou cristalina,
Sempre a mesma incerteza em combustão,
Sempre a dúvida a erguer-se em cada esquina.

Eu sei lá qual das duas tem razão:
Se a minha alma a afirmar que sou divina,
Se as minhas veias a gritar que não...!




PAISAGEM NOCTURNA

De entre os silêncios roxos do poente,
Brotou a noite calma e verdadeira.
A noite! A mais calada confidente!
A noite! A mais segura companheira! 

Já mal se escuta o cântico dolente
Que entoava, em surdina, a terra inteira...
Prantos e mágoas foram na corrente...
Os pesadelos dormem na poeira...

A tentação de lúcidos cetins
Desdobra-se, puríssima, na areia.
No abismo das ravinas e nos combros.

Rezam fontes na alma dos jardins
E da camélia em flor da lua-cheia
Caem pétalas brancas nos meus ombros.





COMPENSAÇÃO

Foi a vida. Bem sei. O dia-a-dia
—— Ao compasso das horas já vividas ——
Que me levou, aos poucos, a alegria
E a certeza das coisas prometidas.

Foi a vida, bem sei, que fez sombria
A graça das manhãs acontecidas
E deixou a minha alma toda fria
E entornou fel nas minhas mãos caídas.

Foi a vida, nem sei, que fez do viço
A dor de uma ruína sem idade
E quebrou a harmonia do meu gesto.

Foi a vida, bem sei, mas que tem isso?
Se a morte me deixou uma saudade,
Que me importa que a vida leve o resto?





ESCOLHA


É lá possível continuar assim!
Noite sem lua, pensamento em brasa,
As mãos sem um afago de cetim,
O céu sem a doçura de uma asa.

Sem eu saber qual seja, eu sinto em mim
Um desejo que aumenta e que extravasa.
Sendo doce, tem fel, é bom e ruim.
Levanta agora e tudo logo abrasa.

No fundo da minha alma dobra um sino.
Depois, ergue-se o sol, sem timidez,
E o dobre mata o sol na imensidão.

Resolve-te depressa, ó meu destino:
Ou me gelas o sangue de uma vez,
Ou me deixas bater o coração.







ÚLTIMA CONTRACÇÃO


Se eu não fiz mal, por que padeço tanto?
Por que me atiram pedras, sem razão,
E me recusam a divina mão
Que, sem temor, venha enxugar-me o pranto?

Por que mataram sonhos bons e o encanto
Que me acendia o sol no coração
E me forçaram a dizer que não,
Deixando-me sem fé nem acalanto?

Como fatiga e dói subir a encosta
Tendo dentro do olhar, já quase ausente,
Uma expressão de lúgubre sentido

—— A expressão das perguntas sem resposta
Que fica a latejar perdidamente
Nos olhos mortos de qualquer vencido.







ALENTEJO



                           Para o Nuno António



           I



Não penses na cidade. Anda comigo.
Veste safões. Calça sapatos duros.
Vamos contando quantos pães futuros
O Sol fará nascer de um grão de trigo.

Trata o vento por "tu". Chama-lhe amigo
E acompanha-lhe os passos inseguros.
Entende a voz das aves e dos muros
E adora a cor saudável do pascigo.

Que sossego puríssimo, não vês?
Canta um mar de perfume a nossos pés,
Perfume que se esvai, aqui e além disperso.

Vive em ti este encanto de magia:
Lateja em derredor tanta poesia,
Que até a água das fontes corre em verso... 






DEPOIS DA CEIFA



               II


Um tom pardo, de imenso desconforto
A vestir de silêncio a solidão.
O chão gretado, seco, todo morto,
E os meus olhos mais secos do que o chão.

Asas sem o farol de qualquer porto
A gritar-lhes promessa e direcção.
Toda a planície tem um ar absorto,
Saudosa de frescura e verde e grão.

Tudo morre e naufraga num mar de ânsia...
A Vida, repartida em muitas vidas,
Morta de sede, trágica, sem par.

Em brasa a terra, os troncos, a distância...
Oh! A dor das nascentes ressequidas
E a que me vem de não poder chorar!



CULPA!

Não vou! Eu própria disse que não ia!
Não tive forças de alcançar a margem...
Mas para dizer "não" tive coragem
E a minha voz não apagou o dia!

Corre-me o sangue lento de agonia,
Na costumada, intérmina viagem...
O sol, de longe, brinca na folhagem
E os pardais cantam alto, de alegria.

De boca muda e só, sem directriz,
Ficou-me o coração quase suspenso
Entre as mãos do passado e do porvir.

E agora que não fui porque não quis,
Sinto gritar no fim do meu silêncio
A raiva sem palavras de não ir!



HORA EXACTA

A própria vida é que me impõe certezas
E me obriga a parar na caminhada,
Alheia, tanto à força das tristezas,
Como ao rosal que me floria a estrada.

Soltou-me as duas mãos que eu tinha presas
Numa grande ternura partilhada
E, no meu céu de estrelas sempre acesas,
Pôs uma noite imensa e apagada.

Mal haja o meu destino sem porvir
Que me enlutou de angústias e misérias
E me privou de sol o coração:

Ser forçada a negar, a desistir,
Quando ainda oiço o sangue nas artérias
A perguntar ao tempo que horas são...



ASSASSÍNIO!

Por minhas mãos matei hora após hora
Num movimento largo, de demente.
Matei-as devagar, em mim presente,
Com a descrença que em meu peito mora.

Não me tolheu a face que descora
Nem meu olhar molhado eternamente.
Enchi da morte arrítmica do poente
O que era a vida musical da aurora.

Hoje vivo num cárcere do inferno
Lembrando o gesto em linhas criminosas
Que dos meus dedos trágico tombou.

Ah! Quem me dera ser como é o inverno,
Porque o inverno também mata as rosas,
Mas nunca mais se lembra que as matou!



ACRÉSCIMO

Ombros vergados de tão dura lida,
Os cabelos desfeitos pelo vento,
Cheguei ao cimo da maior subida
Exausta de ladeira e sofrimento.

Levando-me o cansaço de vencida,
Negaram-me os meus pés ao movimento
E, a transbordar de mortes e de vida,
Joguei-me ao chão, sem forças nem alento.

Chorado o fel do pranto até ao fim,
Julguei a dor ausente já de mim
E do mal que infiltrara no meu sangue.

Mas nos meus olhos inda havia sal
E a dor voltou, juntando um novo mal
Ao mal antigo que já era tão grande!



INCÓGNITA

É verdade que tenho a luz do dia
E o pão com abundância sobre a mesa
E que merece a bênção da alegria
Quem já pagou com juros a tristeza.

É verdade que há pouco anoitecia
E vejo agora a noite toda acesa;  
Que nos trilhos do mundo já tem guia
O meu corpo até ontem sem defesa.

Ah! Pudesse eu num movimento duro,
Matar este pavor que trago em mim
E me deixa mais branca do que a Lua.

Quem sabe o que vai ser o meu futuro!
Inda que eu veja a rua até ao fim,
Sei lá o que me espera ao fim da rua!



TRISTEZA CREPUSCULAR

A caminho das névoas do poente,
 — Sem nenhum cireneu a dar-lhe a mão — 
Ó sol!, em gestos lentos, de doente,
Vestes à terra sombra e negação.

E vendo a tua chama decrescente,
Eu pergunto ao meu próprio coração
Se para mim tu nasces novamente,
Se os meus olhos, de novo, se abrirão!

Ai! O mundo, o infinito de saudade,
Quando te vejo, aos poucos, extinguir
Entre os braços terníssimos do mar!

Tu sabes lá o anseio que me invade
Tendo a amargura de te ver partir
Sem a certeza de te ver chegar!



IMPOSSIBILIDADE

Ah! Pudesse eu calar o sangue ardente
Que me grite nas veias sem cessar!
Mas sua voz não deixa de ser quente
Como as ondas não deixam de ser mar.

Pudesse eu de mim mesma estar ausente
Ou ser mais fria ainda que o luar!
Porém, a voz aumenta, é mais veemente,
Aquela voz que, em vão, tento calar.

E a maré sobe, alastra, faz-se grande!
Rasga-me o coração como um açoite
Que a mente de um verdugo concebesse.

Como hei-de conseguir domar o sangue,
Se até agora eu nunca ouvi a noite
Dizer ao sol que não amanhecesse!



DUALIDADE

Um gesto só da minha mão ousada
À verdadeira luz de um sol sem medo,
E a terra ficaria destroçada
E os meus Irmãos cingidos ao degredo.

Mas o tempo caminha, de longada,
E eu calo em mim o trágico segredo...
Falasse a minha boca torturada
E acabavam-se as lágrimas e o enredo.

Se eu quisesse...! Mas fico-me a tremer,
Ante as hesitações que me consomem
E me afastam dos sonhos que eram meus.

Ah! O Inferno! Ah! O horror de me saber
Inda mais fraca do que nenhum homem
E omnipotente como qualquer deus!



RESCALDO...

Por mais que eu queira, o sangue não morreu
E lateja e escabuja em cada veia
Num ritmo triunfal de maré-cheia
Que lutou com a praia e a venceu.

Minha pobre alma - E tudo que era seu...
Alheia aos risos e ao prazer alheia,
Morreu-se como a chama da candeia
Que ao vento da desgraça pereceu.

E o tempo vai ganhando mais altura!
Hoje, que ninguém bate à minha porta
— Que a todos foge o meu olhar esquivo —

Nada mais tenho além desta amargura
De ver minha alma totalmente morta
A velar o meu corpo ainda vivo.



AGUARELA

Verde em redor e na amplidão tamanha!
Quase verde também, a própria luz.
Sangue verde, nas veias da montanha
E nas asas iguais dos urubus.

Verde o grito do mar de voz estranha
Nos areais completamente nus;
Verde o silêncio que a distância banha
E que paleta alguma reproduz.

Verde húmido e vibrante, alheio a sedes;
Verde negro, da cor dos pesadelos;
Verde só verde, sem nenhuma imagem.

E entre a alucinação de tantos verdes,
Sòmente a intensa cor dos meus cabelos
Pondo uma nódoa loira na paisagem.

                                 Rio de Janeiro, Alto do Corcovado



MÁSCARA

Não digas a ninguém! Ninguém entenderia
As lágrimas de fel da tua imensa dor.
Da raiz que não tens, abre o espectro da flor
E faz nascer do pranto um riso de alegria.

Guarda a noite contigo e finge que tens dia
A ensopar de manhã o que em ti é sol-por.
Vive como os demais e enche as faces de cor,
Muito embora essa cor seja só fantasia.

Afivela no rosto uma expressão garrida
Inda que o amargor que te espedaça a vida
Tenha fundos de abismo e vastidões de mar.

Cala no coração o sofrimento fundo
E vive ao pé dos mais e entre os gozos do mundo
O orgulho de sofrer no orgulho de calar.




29-03-1956

Mais um ano, Senhor! Um ano sem valor,
Que não foi só de fel nem só de risos foi.
Horas vividas com um pouco de calor
E outras cheias de dor, de dor que inda me dói.

Horas que semeei de frutos e de flor
E que a vida, sem dó, lentamente destrói,
A outras horas ainda a escorrer amargor,
Pregando numa cruz meu coração herói.

Mais um ano vivido em lutas e desvios,
De sangue em combustão, de pobres dedos frios,
De recusado amor e Sol que não vivi.

Um ano sem manhã e sem entardecer
E que por mim passou sem nada resolver,
Pois se não me encontrei, também me não perdi.




HUMANA DIVINDADE

Vim ao mundo mais pura que a manhã
Quando o sol inda a tem dentro do seio.
Olhei a terra inteira sem receio
E na magia de uma vida sã.

Depois, o fogo de uma luz pagã
Atravessou-me as horas meio-a-meio,
Mas o céu não deixou de ser-me esteio
Nem eu de me sentir da lua irmã.

Assim, na louca febre que me invade,
Sou de Deus e da Altura que Ele encerra,
Sou do mundo e das culpas que me domem.

Mistura de Infinito e de Humanidade,
Testemunhando o céu, vivo na terra
Com asas de anjo, mas com braços de homem.



AMPULHETA

Fechar os olhos e partir depois
Em direcção, quem sabe a que destino,
Não tendo visto nunca o sol a pino,
Levando o coração partido em dois.

Tombam os fracos, tombam os heróis...
A intenção má, o sonho cristalino...
Depois, a voz mortal de qualquer sino
E a imensa noite, sem luar nem sóis.

Um frio que percorre todo o ser;
A bacanal dos vermes, em seguida,
E os ciprestes mais firmes no seu porte.

Que tremendo castigo, o de viver:
A quem nunca pediu o bem da vida,
Não se devia impor o mal da morte.



RIMA

Voz da montanha que ressoas, lenta,
Quando ergues o teu grito ao infinito.
Eu sei ouvir a tua voz musguenta
E subo até à altura do teu grito.

Oiço-te a cor ardente ou friorenta;
Rezo contigo as preces do teu rito
E, porque vivo o sol que te sustenta,
Tu palpitas no sonho em que eu palpito.

Voz da montanha, cheia de raízes,
Trasvazada de aromas e matizes
Que dás a cada vale, a cada boiça:

Eu escuto a tua voz. Fala comigo,
Que na vida não há maior castigo
Do que falar ao pé de quem não oiça.



ANÁLISE

Esta noite (ia a noite a mais de meio
E a chuva não cessava de tombar)
Analisei-me toda, devagar,
Como quem analisa um corpo alheio.

O sangue, sem recusa e sem anseio.
Nos olhos, nem uns restos de luar.
E as mãos, as tristes mãos, ermas de par
E de aroma e de Sol e de gorjeio.

Um coração que a vida esfacelou;
Um segredo imortal que se não diz
E a morte levará, como um troféu.

E nisto se resume quanto sou:
Árvore seca à falta da raiz,
Deus que morreu, porque não tinha céu.



A DOR DO MAR

     I

Sei que sofres, ó Mar! Oiço chorar
A voz das tuas ondas, pela areia,
Numa revolta e triste melopeia
Que avança e que recua, devagar.

Eu também sofro e também choro, ó mar!,
Numa raiva febril de maré-cheia,
Nos sentidos, na alma, em cada veia,
Numa dor que é tão dor, que não tem par.

Que desgraçados somos, mar plangente:
Tu, em queixas salgadas e redondas,
Eu, condenada onde uma cruz houver.

Ambos choramos e nenhum entende
Nem eu o soluçar das tuas ondas
Nem tu os meus soluços de mulher.


    II

Não chores alto, ó mar! Não chores alto!
Seca o teu pranto  —— Lágrimas de espuma ——
E despe esse tom mórbido de bruma
Que mancha a luz do teu azul cobalto.

Sossega o movimento e o sobressalto;
Que não te fira inquietação alguma
E as ondas te emudeçam, uma a uma...
Não chores alto, ó mar!, não chores alto!

Cala a voz das marés — a voz erguida
No Sol já posto ou no fulgor da aurora —
E não chores ao pé de quem te vê,

Porque nada dói tanto nesta vida
Como ouvir perguntar porque se chora
Sem que se possa responder por quê!



MOMENTO ALUCINADO

Crucificada em dor, ressuscitei!
Alguém ergueu a pedra tumular
E eu ascendi, mais fluida que o luar,
Fazendo parte de uma nova grei.

Já não receio pranto ou noite ou lei;
A cruz da vida, a dor de não ter par.
Já me remi e até posso sonhar
Os sonhos que na terra não sonhei.

Meu irmão, crê na história que te narro:
Deixei o mundo, já não sou de barro,
Que ouvi a voz de altíssimos apelos.

Olha-me bem de frente, irmão. Não vês?
Tenho o mundo debaixo dos meus pés
E uma coroa de astros nos cabelos.



DEPOIS DA NEGAÇÃO DE HOJE

Tenho a certeza de que há-de ser assim:
Quando no pó das coisas diluídas
As minhas mãos geladas e vencidas
Não forem mais que um pálido cetim;

Quando se morrer tudo para mim
No silêncio das horas já cumpridas
E as minhas pálpebras descoloridas
Tombarem, lentas, de cansaço e fim;

Quando eu partir da vida tão incalma
— Isento de abandono o corpo inerme 
E sem fomes de amor dentro do olhar—

Há-de erguer-se o remorso dentro da alma
De quem teve olhos e não soube ver-me
E, tendo boca, não me quis beijar. 



ABSURDO

Olhai e vede: que tremendo fado
Em mim se expande como um grande mar!
Toda eu sou um grito sufocado
Que a vida tem receio de gritar.

Olha e vede o meu cabelo atado
Que o amor não se atreve a desatar
E em minhas mãos o sol bem levantado
Que se nega a ser mais do que luar.

Olhai o riso da minha alma em festa
E a treva que anoitece os meus ideais
— O "sim" e o "não" que trago dentro em mim —

E vinde-me dizer que força é esta
Que tenta erguer-me para além dos mais
E me obriga depois a ser assim.



SEM MEDIDA

Eu nem sei de que vinho ando sedenta,
Que não há vinho que me sirva bem.
De tanto desejar ir mais além,
Nem já meu próprio sonho me contenta.

De alma sequiosa, totalmente isenta
De mentiras e orgulhos e desdém,
Bebo todo o luar que do céu vem
E a minha sede ainda mais aumenta.

Por mais livres de curvas e embaraços,
Não há trilho onde caibam os meus passos
Nem caminho da vida onde eu não esmole.

Martírio de querer o que não há!
De não bastar a luz que o sol me dá,
Tendo a certeza que não há mais sol!





À PARTE...

De que serve este sol gritando lume,
A esbanjar oiros pelo céu calado
E esta maré crescente de perfume
Que me chega do trigo já cortado?

E estas águas brilhantes como um gume
Dando-se ao meu olhar já tão molhado
E este anseio de ser, que em si resume
O drama do meu sangue irrealizado?

Não sinto o calor íntimo dos ninhos,
O convite de sol que há nos caminhos,
As videiras beijando cada porta...

Que murchem girassóis ou que despontem...
O meu hoje é apenas o eco de ontem
—— Luz inda viva de uma estrela morta.



SONETO DA LIMITAÇÃO

Gritasse eu este mal de ser assim
E a minha voz enchesse todo o mundo!
Ah! Se eu dissesse o desespero fundo
De encontrar gente semelhante a mim!

Conseguisse eu livrar-me até ao fim
Do oceano de igualdade onde me afundo
E salvasse o meu sonho moribundo
Como quem salva o aroma de um jardim!

Vivesse eu uma vida sem engano
E estoirassem-me as veias uma a uma
Neste corpo que o sangue profanou.

Oh! Raiva de quem é somente humano:
Fosse eu feita de luz, de som, de bruma,
Em vez de ser de carne como sou!



ESFÍNGICA

Bem sei que dormes há muitas centenas de anos
Numa cama roubada ao oiro das areias
Assistindo, sem ver, a bens e a desenganos,
Mais alheia do sol, que as coisas mais alheias.

O teu corpo não tem desesperos humanos:
Não desejas voar nem te pulsam as veias.
A ti que importa a raiva azul dos oceanos
Ou a luz sem calor das luas quase cheias!

Passa por ti o tempo e os teus dedos imersos
Nos séculos sem fim, inertes, alongados,
Morreram de silêncio em tom crepuscular.

Não ser eu como tu, sem lágrimas nem versos,
Tendo apenas a flor dos olhos estagnados
Uma vaga expressão desértica, lunar...




SOBRE O SILÊNCIO DO ATLÂNTICO,
A NOITE ESTRELADA...

Quem mandou que nascesse esta harmonia
Eternizando um tema por cantar
E deu ao céu esta vocal magia
E impôs este silêncio ao próprio mar?

Quem fez morrer, ainda há pouco, o dia
Do renovado mal crepuscular
E fez da noite um canto de alegria
Ao ritmo de um compasso luminar?

Quem parou a maré pelo mar fora
E ergueu esta canção de luz sonora
Mais para cá dos horizontes sós,

Como se a um aceno omnipotente
As ondas se calassem de repente,
E as estrelas houvessem ganho voz?

(Mar alto)



ADEUS AO DIA MORIBUNDO

Vai, que estás desmaiado da carreira
Que tens feito a caminho do luar.
(Bendita a hora azul que há-de gerar
Uma vez mais, tua presença inteira!)

Dorme deitado em noite, de maneira
Que não te acorde o vento nem o mar...
Fecha os olhos confiados, devagar,
Que a manhã vela à tua cabeceira.

Descansa a carne exausta de poente
Entre a cinza de um sol ainda quente
E a reviver a exactidão da brasa.

Vai e volta amanhã, ó dia imenso!
 —— Magnólia eterna de um jardim suspenso
Aberta em Infinito, em canto, em asa...  




PREFERÊNCIA

Antes de ser pedra à beira dos caminhos,
Ao pó, à chuva, à fúria da nortada;
Antes árvore seca e desgrenhada,
Na ausência de gorjeios e de ninhos.

Antes espinho entre milhões de espinhos,
A par de qualquer rosa perfumada;
Antes folha tristíssima arrancada
E perdida no caos dos torvelinhos.

Antes noite bravia de presságio
Ou ciclópico gesto de naufrágio
Ou visão monstruosa de avantesma.

Antes lago sujeito, inerte e mudo;
Antes a própria morte. Antes tudo
Do que ser a certeza de mim mesma.



ÊXTASE

Rezai comigo, irmãos! Curvos os ombros
E os joelhos de rojo pelo chão,
Que a lua também anda em oração
No silêncio de vales e de combros.

Brote uma chama em cada coração;
Sinta-se cada um ermo de assombros
E não maldiga a sua cruz de escombros
E seja mais irmão do seu Irmão.

Palpita a luz na ondulação do trigo,
Entre os robles altivos da floresta,
No gorjeio que há pouco se calou.

Rezai comigo, irmãos, rezai comigo,
Porque foi numa hora igual a esta
Que um dia o véu do templo se rasgou.



IMOLAÇÃO

Dantes, sim!, que eu lutava e me estorcia
Entre as mãos ferocíssimas da vida
Quando a vida o meu sangue pretendia
Para matar-lhe a fome irreprimida.

Dantes, sim!, que eu das lágrimas fugia
E não me dava nunca por vencida
E tinha tal ardor, se combatia,
Que era o meu corpo uma bandeira erguida.

Dantes, sim!, mas a fé caiu aos poucos
E da arrogância dos meus atos loucos
Só ficou esta dor que me consome.

Agora inerte, lívida, com calma,
Dou a comer a minha própria alma
Até que a vida já não tenha fome.



PERENIDADE

Deixai que os Poetas vivam para além
Da vida que o Senhor lhes permitiu.
Não lhes negueis o sol de qualquer bem,
Mesmo se a noite esfíngica os vestiu.

Suportai-lhes as queixas e o desdém
De quem sonhou um sonho que fugiu
E deixai-os cantar sem que ninguém
Saiba se a voz chegou ou já partiu.

Que as horas sejam calmas ou inquietas;
Que pulse ou gele o sangue em cada veia;
Que o céu seja mais alto ou o mar mais fundo.

É preciso suster a alma dos Poetas,
Que é na alma dos Poetas que se ateia
A chama eterna onde se aquece o mundo.



FINAL DA HISTÓRIA

Contei a minha dor ao sol, ao vento
Às montanhas, aos grandes matagais.
Enchi o mundo inteiro com meus ais
E o céu com meu profundo sofrimento.

Contei o desvario de um momento
E as semanas depois, todas iguais;
Frases que disse, duras e brutais,
E em seguida o remorso, lento, lento...

Contei o tom amigo de uma festa
E o mel da minha boca recusada
E o sangue em fúria, como o longo mar.

Hoje, tudo contado, só me resta
Essa expressão dramática e parada
De quem já nada tem para contar.




AGUACEIRO

Tomba de manso uma chuvinha triste.
(O céu que chora nem eu sei que pena.)
Cai sem descanso. Alaga, aumenta, insiste,
Numa toada lenta de novena.

Não sei se a vida existe ou não existe,
Que um silêncio mortal tudo envenena.
Sei que a chuva não dorme e que persiste
E que o céu chora, nem eu sei que pena.

Já sentindo que a morte anda vizinha,
Tendo cheio de luto o coração
E sendo mais amarga do que Job,

Eu oiço a chuva, pálida e sòzinha,
Tão sòzinha que a própria solidão
Chega a ter pena de me ver tão só.



BALANÇO TRÁGICO

Chega-se pela estrada do mistério
De longes insondáveis e profundos
Trazendo na verdade do olhar sério
Nem eu sei que lembranças de outros mundos.

Sofre-se a sequidão sem refrigério
E a tortura dos passos vagabundos.
E a vida queima e dói como um cautério
E rasga abismos cada vez mais fundos.

Depois, dá-se a beber o próprio sangue
E, através do portão, vê-se o jardim,
Pagando-se a mercê por alto preço.

E de alma esfacelada e corpo exangue,
Depois de tanta dor, chega-se ao fim
Sem desvendar a origem do começo.




LINHA INQUEBRÁVEL

Foi assim que nasci, de ombros vergados
E cheios de sinais de cicatrizes,
Trazendo já nos olhos torturados
A fundura, nem sei de que raízes.

Passaram dias certos, calculados:
Uns nasceram com sorte, outros felizes,
E os meus passos nos trilhos mal andados
Alheios a nascenças e a matizes.

Foi assim que nasci e, até morrer,
Eu serei sempre esta árvore sem ramos
Onde pássaro algum se recolheu.

E não pense ninguém mudar meu ser,
Que neste imenso mundo que habitamos 
Nama mais posso ser, senão ser eu.




"SPLEEN"
   
          Para MANUEL TÂNGER

Nem sequer versos me apetece ler!
Tenho as mãos cansadíssimas de nada
E sinto a carne inútil impregnada
Da sensação tremenda de não-ser.

Voos azuis, quem os pudesse ter
No meio de uma vida retalhada
Pelos humanos golpes da nortada
Do pôr do sol até amanhecer.

Céu sem nuvens! Sei lá! Tudo é medonho,
Vazio de sentido, ermo de sonho,
Sem princípio nem meio até sem fim.

Positivo, sòmente o gesto fundo
De sentir bem que não suporto o mundo
E nem o mundo me suporta a mim.




HUMANA COMPREENSÃO

Irmão que tanta mágoa me tens dado!
Filhos do mesmo Pai! Da mesma luz!
Irmão que vais comigo lado-a-lado
E não me ajudas a levar a cruz.

Antes, se vês meu céu iluminado,
Tentas velar-me a estrela que reluz
E recusas teu manto de brocado
À crueldade dos meus ombros nus.

Irmão que negas ímpeto ao meu voo
E anoiteces o sol que em mim lateja
E arrancas os aloés do meu jardim,

Eu te compreendo, irmão, e te perdoo,
Porque no homem, por mais Abel que seja
Há sempre qualquer coisa de Caim.



OLÍMPICA INDIFERENÇA 

Vêm todos gritando contra mim
Numa provocação de alucinados:
Que os meus dias deviam ser contados,
Que estou a mais na estrada e no festim.

Que se me negue a entrada no jardim
—— Pois tenho os passos sujos e culpados ——
E me dispam dos cânticos roubados,
Do negro fel, do riso carmesim.

Meu céu ou meu inferno, não os sentem;
E devassam-me a vida lés-a-lés,
E os meus cabelos, deixam-nos dispersos.

Buscam, farejam, mexem, gritam, mentem,
E, sem nada os deter, calcam-me os pés
E eu deixo-me pisar e faço versos...



MARÉ-BAIXA

Só eu fiquei na dobra do caminho
Depois de tantas quedas pela estrada...
Comigo trouxe a alma devastada
Mais o amargor de um coração sòzinho.

Das minhas mãos, de macerado linho,
Tombou o amor e estão cheias de nada
E a minha boca é seca e esfomeada
Sem que ninguém lhe dê nem pão nem vinho.

Só eu fiquei, depois de tanta luta,
E a minha pobre face nunca enxuta
E estes soluços que não têm fim.

Só eu fiquei inteira, mas vazia,
Sem saber de que encher a noite e o dia,
Pois não consigo enchê-los só de mim.



ALMA CRUCIFICADA

O cadáver de mim ficou exposto
Ao tempo, na mais funda solidão.
No olhar parado a sombra de um desgosto
E o lanho de uma chaga em cada mão.

Braços abertos, inclinado o rosto,
Uma lançada sobre o coração
E uns pingos a escorrer e cor de mosto
E a abrir rosas de sangue pelo chão.

A par desse cadáver, mais ninguém:
Nem o amparo das lágrimas da mãe,
Nem Madalena a partilhar da cruz.

Que triste, a minha sina de negada:
Ser cuspida por todos e pregada
E nem ao menos me chamar Jesus!




CONTÁGIO
                               (PARA UMA JOVEM)

É de alma em ascensão que olhas a Vida
Numa crença vivíssima e segura
E te ajoelhas na terra, comovida,
E beijas, a cantar, a terra dura.

Rezas ao sol uma oração erguida
Para o esplendor idílico da altura
E caminhas alegre e destemida,
Numa ilusão que nada desfigura.

E eu que vejo o fervor que em ti se expande,
Mal sinto a solidão que tenho ao pé
E o peso injusto que da cruz me vem,

Pois em teus olhos há uma fé tão grande,
Que me deixo embeber em tanta fé
E quase chego a acreditar também.



DEPOIS...

Como todos, também hei-de passar.
Cerrados os meus olhos de cansaço,
Há-de apagar-se a luz em meu olhar
E no caminho, o sulco dos meus passos.

Continuarão as ondas no alto mar
E as estrelas brilhando nos espaços.
Só eu me irei embora, sem voltar,
E ninguém mais me apertará nos braços.

Depois da minha sina já cumprida,
Meus versos morrerão da minha morte
 Que um mau destino trouxe-me e levou-me.

E daquilo que foi a minha vida,
Apenas ficará o vento norte
A repetir às folhas o meu nome.




VERDADE AMARGA

Porque julgava que trazia em mim
Um destino fantástico e sem par,
Olhava de alto as rosas do jardim
E as ondas nômadas do grande mar.

Porque os meus dedos eram de cetim
E pulsava a distância em meu olhar,
Via na vida apenas um festim
Que Deus criara só para me dar.

Mas o tempo chegou e sem aviso
Negou-me o bem da luz que me console
Entre as negruras de uma noite má.

Ah! Quanto inferno em vez de paraíso!
E eu que me acreditava quase um Sol,
Sou uma sombra que nem sombra dá!



DESFALECIMENTO

Impossível reagir uma vez mais!
Já não me sobra ardor nem resistência.
Cansei-me de quimeras e de ideais,
De lutar sem auxílio nem violência.

Já não entendo o mar nem a cadência
Da voz quente e madura dos trigais.
A minha alma sem para, morre de ausência
E de instantes vazios, sempre iguais.

Que faz que seja quase primavera!
Anos e anos de uma lenta espera
Mataram-me o calor de qualquer luz.

Sucumbi sob a dor de mil cansaços.
Aqui estou sem defesa: abri os braços
E venha quem quiser pregar-me à cruz.



SUFICIÊNCIA

Como todos, pequei e os meus Irmãos,
Pecadores como eu, mas disfarçados,
Não entendem caminhos torturados
E condenam-me os gestos, maus ou sãos.

Já esquecidos dos dogmas dos cristãos
Que manda amar os santos e os culpados,
Tentam cegar-me os olhos deslumbrados
E matar-me por suas próprias mãos.

Homens que sois meus pares, meus iguais,
E me vedes perdida em negro mar
E quereis dar um fim ao meu pecado,

Podeis arrecadar vossos punhais,
Que a minha imensa dor há-de chegar
Para varar-me o peito lado-a-lado.



IMPLORAÇÃO

Tempo: Deixa os crisântemos em flor
No estático silêncio dos canteiros.
Não lhes quebres a forma nem a cor
Na pressão dos teus dedos traiçoeiros.

Não destruas, num gesto sem amor,
A altitude dos voos verdadeiros
Nem transformes na mais nevoenta dor
A alegria cantante dos salgueiros.

Deixa a Vida expandir-se em cada insecto
E na abundância pródiga do trigo
E nas devastações do vento norte,

Porque em mim trago um mundo tão completo,
Que um dia, quando me levares contigo,
Basto eu sozinha para encher a morte.



SEM CULPA

Bem sei que os mais não vêem o que eu vejo
No círculo apertado que os limita
E me culpam do amor que em mim habita
E dos sonhos que tenho de sobejo.

Sei muito bem que todo o meu desejo
De pisar terra alheia e interdita,
Me faz diferente e única e precita
E me nega a razão por que pelejo.

Sei que os mais não entendem meus acenos
  —— Que é outra a directriz da minha estrada ——
E acham meus passos líricos e vãos.

Se eu nasci loira e eles são morenos,
Quem se atreve a afirmar que sou culpada
De não me parecer com meus irmãos?




IMPOSIÇÃO

Alma partida pelas mãos da sorte...
Vida indecisa, trémula de frio...
Um silêncio tão grande e tão vazio,
Que é pouca para enchê-lo a própria morte.

Partida a estrela que indicava o norte...
Afogou-a a maré de um mar sombrio!
E partido também o débil frio
De um peito frágil a outro peito forte.

Partida a estrada crédula e terrena
E a certeza da minha lucidez
E o meu sonho maior desfeito em pó...

De inteiro apenas resta a voz que ordena
Que avance para a frente de uma vez
Ou volte para trás de uma vez só!




DA VIDA



GÉNESE


Homens como eu sou homem! Pecadores
De todos os pecados conhecidos
E que tendes colados aos sentidos
O perfume dos beijos e das flores.

Homens que transportais luares e dores 
Nos braços humaníssimos erguidos
E que hoje sois troçados e vencidos
Quando inda ontem fostes vencedores.

Homens como eu sou homem! Maré-cheia
De mil contradicções, da base ao topo,
Conjunto de cristãos e de judeus,

Nãos vos julgueis apenas grão de areia,
Porque num corpo igual ao nosso corpo,
Já coube inteira a dimensão de um Deus.



RAJADA

Movimento brutal que tudo arrasas
E me cobres de fel e desenganos:
A par do anseio zul de duas asas,
Tenho dois braços sôfregos e humanos.

Sinto no sangue a combustão das brasas
E os desejos mais vivos e profanos
E a tentação das superfícies rasas
E o precursor de mais erguidos planos.

Ó desencontro imenso dos meus passos
E gosto a terra em minha boca impura 
E sonho de outra mão em cada mão:

Enquanto, de olhos fitos nos espaços,
Minha alma é fogo e aroma e luz e Altura,
Meu corpo é barro e cinza e noite e chão!



ÍMPETO

Ter braços e ter sangue, não me basta.
Ter um corpo mortal, é muito pouco.
Não cabe o sonho imenso que me arrasta
Dentro da algema do meu grito rouco.

Queria a recta da planície vasta
Em vez da curva de um coração oco;
Queria a luz da lua, boa e casta
Ou mesmo a luz do sol, perverso e louco.

Ser a frescura dos botões abertos,
A sede extensa e ruiva dos desertos
A cartada final de qualquer jogo.

Ser uma coisa sôfrega e precisa ,
Quer me abatesse em convulsões de cinza,
Quer me ateasse em vendavais de fogo.



IRREMEDIAVELMENTE!

Quebrar as duas mãos e os seus afagos
Em movimentos lentos, mas reais.
Matar na alma a placidez dos lagos
Ou a fúria dos grandes temporais.

Despedaçar, sem dó, os sonhos vagos
Feitos de céu e de paixões carnais;
Não mais beber amor a longos tragos
E não sonhar em verso nunca mais.

Deixar de ver as nuvens indecisas...
Perder o leme, a bússola e os portos...
Queimar o coração até ao fim.

Em seguida nascer das próprias cinzas
E, depois de juntar os sonhos mortos,
Voltar a construir-me igual a mim!



REPTO

Vem, que te espero de alma levantada.
Tenho o sangue mais quente do que pensas
E uma crença mais firme e enraizada
Do que as mais firmes e enraizadas crenças.

Abro-te a minha vida renovada:
Não procuro nem bens nem recompensas.
Vivo apenas o sonho de chamada
Nem sei a que fantásticas presenças.

Podes tentar erguer qualquer atrito;
Medir distâncias, preparar o assalto
E a minha própria queda preparar.

Não te receio nem sequer te evito.
O meu sonho de artista é muito alto
Para que um homem possa lá chegar.



FRUSTRAÇÃO

Que faz que a vida agora seja pouca,
Se vivi sonhos castos e pagãos
Na alegria total da minha boca
E no esplendor das minhas duas mãos!

Nada me dói que a voz me seja rouca
Depois de a ter erguido em cantos sãos.
Deixem ser grande a mágoa que me touca,
Que os desgraçados sejam meus irmãos!

Mesmo que sinta perto o fim ao dia,
Bendita seja a cor do entardecer
A encher de sombra o coração vencido.

Não cante eu nunca mais, nunca mais ria!
Que importa a dor de não voltar a ser
Depois da imensa glória de ter sido!



PHOENIX

Era o dia a explodir em cor, em ânsia,
Na floração leitosa dos rebentos:
Era o céu sem crepúsculo e sem ventos
A latejar de azul e de distância.

Era a terra gritando de abundância
Na vida sem rumor dos crescimentos;
Era a fusão de todos os adventos
Das formas, dos limites, da fragrância.

Era a festa pagã da maior boda
E o zumbido fecundo dos enxames
E o verde numa oferta vertical.

Era a terra febril a dar-se toda...
Era a seiva, era o pólen e os estames
E eu a sentir-me quase vegetal...



MARCHA TRIUNFAL

Que importam pragas, uivos doloridos,
Prantos de dor, o fel de qualquer dano,
Se a vida me floresce nos sentidos
Ardente como um cravo sevilhano?

Que importa aos meus anseios renascidos
Que haja rosas ou espinhos todo o ano
E que os instantes inda não vividos
Em si tragam engano ou desengano?

Que importam céu e terra e sobressalto
E as horas maculadas de quebranto
E as ondas, nem eu sei de que maré,

Se no meu sangue vibra em tom mais alto
O cansaço de ter andado tanto
E a vitória de ainda estar de pé!




REGRESSO

Quebrei a maldição do cativeiro!
Subi, sem medo, pelo tempo fora.
Venho das bandas onde nasce a aurora
E trouxe o sol nas mãos o dia inteiro.

Agora piso o chão forte e trigueiro
E já não peço nem soluço, agora.
Canto a vida e a terra e o mar e a hora,
Num tom de voz ardente e sobranceiro.

Com os olhos febris, bebo os espaços.
Queima-se o mundo ao fogo dos meus passos,
Abrem-se em delta os meus desejos sãos.

Homens de pouca fé, olhai-me a face,
Que eu vim do sítio aonde a aurora nasce
E trouxe o dia inteiro o sol nas mãos.



VITALIDADE

Um sangue feito sol, como um clarão,
Irrompe-me das veias, tumultua,
No clamor de uma estranha vibração
E na arrogância de uma espada nua.

Põe-me brasas a arder em cada mão;
Queima-me os braços; todo se insinua.
Sabe a fruta verde, a vinho, a pão,
E é tão aberto e livre como a rua.

Não possui tons sombrios de sol-posto.
Abre-me rosas cálidas no rosto
E transborda de luz todo o meu ser.

Irmão! Não chores mais! Faze como eu,
Porque esta vida que o Senhor nos deu
É qualquer coisa mais do que morrer!



TABOR

Ainda que me ofenda toda a gente
E me crave na fronte espinho a espinho,
Mesmo assim não desisto: vou em frente
Num frémito de Altura e de caminho.

Porque a luz da manhã se fez presente
E a noite se perdeu fora do ninho,
Levo comigo a cor do sol nascente,
Que o Sol embriaga tanto como o vinho.

Por mais que me interceptem a viagem,
Há cadências de cimos e folhagem
Na canção paganíssima que entoo.

Que transformem em morte a minha vida,
Vou de olhos mais subidos que a subida,
De asas mais altas do que o próprio voo.



TRANSFIGURAÇÃO

Cavalgada de instantes e minutos,
As horas vão passando de corrida,
Pelos atalhos íngremes da Vida
Ao compasso de passos resolutos.

Vão-se integrando as solidões e os lutos
No sonho da alvorada adormecida,
Enquanto uma luz-sombra mal nascida
Desenha troncos, pétalas e frutos.

Na curva do Infinito e num tom brando,
Pressente-se a existência de um fogacho
Enchendo a terra e o mar de sobressalto.

E à medida que as horas vão passando,
A noite chora, cada vez mais baixo
E o dia canta, cada vez mais alto!



SOBREVIVÊNCIA

Tudo têm tentado, mas em vão.
A vida inda persiste dentro em mim
Como o aroma persiste num jardim
Depois da raiva hostil do furacão.

Ainda se ergue ao alto o coração
Mesmo quando o afugentam do festim
E quanto mais procuram dar-me um fim,
Tanto mais continuo em ascensão.

Trago no sangue o anseio das marés
E a força altiva que derruba escolhos
E o perfume sem flor de um sonho vago.

Podem negar-me o sol. Calcar-me os pés,
Anoitecer o dia dos meus olhos,
Que eu sou como as estrelas: não me apago!



RAIZ

Se a agitação da seiva me sufoca,
Que ninguém contrafaça o meu sentido.
Bicho da noite, quero a minha toca
Aberta à grande luz do sol nascido.

Rompe um botão e a sua luz provoca
Um fulgor de milagre acontecido
E se o Sol que o gerou, minha alma toca,
Tem meu corpo demências de brasido.

Se uma lembrança atávica em mim vive,
Arde-me a pele do látego do ar livre
E das carícias brancas do luar.

Não me apartem os mais nem façam guerra,
Porque tal como sou, nasci da terra,
Vivo da terra e à terra hei-de voltar.



TRANSUBSTANCIAÇÃO

A primavera anda no ar, suspensa,
E eu sinto-me tão cálida, tão viva,
Que a terra e o céu transbordam da presença
Dos meus braços erguidos em ogiva.

A contracção de uma alegria imensa
Tomou posse de mim, quase agressiva,
E enche as coisas de brilhos e de crença
A liturgia de uma luz festiva.

Ébria de aromas, a manhã delira
E eu dou-me toda, em síncopes de amor,
Nas chamas de um silêncio verdadeiro.

Quem foi que disse que morri? Mentira!
Tenho dentro de mim tanto calor,
Que dá para queimar o mundo inteiro!



CÂNTICO TELÚRICO

Vou sòzinha e o caminho é mais estreito
Do que era no princípio da viagem.
Nem um braço romântico e perfeito
A apontar-me a beleza da paisagem.

Porém, ao meu olhar ficou-lhe o jeito
De morder, frutos e folhagem,
E por mais triste que me seja o peito,
Deles recebo auxílios e coragem.

Embora a pouca luz seja outoniça
E sob o vendaval de uma injustiça
Tenham morrido em mim todas as fés,

Caminho sem temor nem embaraços,
Que o eco solitário dos meus passos
É a voz da terra que me canta aos pés.



INSATISFAÇÃO

Este desejo sôfrego de mais!
Mais raízes! Mais asas! Mais nascentes!
Mais verde nas artérias dos pinhais!
Mais promessas na carne das sementes!

Esta febre de coisas irreais
A transbordar de cimos e vertentes:
Mais ritmo nos acordes matinais!
Mais sangue derramado nos poentes!

Este anseio humaníssimo do grito,
E do silêncio que ajoelha os monges
Dentro da catedral de uma oração...

Mais fundura! Mais sol! Mais Infinito!
Oh! Esta fome lírica dos longes
E os longes que se negam a ser pão...



EM UNÍSSONO

Canta o azul mal desperto da manhã
 —— Vencida a noite e o rápido quebranto —— 
E da terra acordada ergue-se um canto
Vibrante como a flauta de deus-Pã.

Cantam pregões numa alegria sã
E a voz doira o mais lúgubre recanto,
E tem um tom divino de acalanto
O ar que sabe a tomilho e a maçã.

Canta a fonte sem leitos e sem margens
E, na distância, canta o grande mar
Quando as marés as ondas alevantam.

Cantam brisas e voos e folhagens
E até eu esqueço e fico-me a cantar
No silêncio das coisas que não cantam!



DECLIVE
           
 Para PEDRO CALMON


Sinto que já hesito e que mal vivo,
Mas rio, num gorjeio que me espanta.
 Alegria de pássaro cativo
Que, apesar de fechado, ainda canta.

Sei que já não encontra lenitivo
O grito que sufoco na garganta,
Mas dou à minha voz o tom festivo
Do dia, quando o dia se levanta.

Que me importa o meu ricto de faminta
E a consciente amargura dos meus dramas,
Se eu sou, entre os escombros do meu rumo,

Como a alma da brasa já extinta.
Que já sem forças para erguer-se em chamas,
Inda se alteia em turbilhões de fumo!




              DO SONHO




NASCENTE...


 Tal como sou, assim me hás-de querer
Transbordante de mundo e de perdão,
Com a noite fechada em cada mão
E no sangue um perene amanhecer.

Agora, em riso aberto de prazer;
Logo, enchendo de luto o coração.
Fraternalmente, dando todo o pão...
Depois, pedindo para não morrer.

No caminho da vida, asas de rastros,
E preso o olhar num cativeiro de astros,
Assim me hás-de querer tal como sou.

Não condenes as minhas reacções,
Que este conjunto de contradições
É a obra de um deus que se enganou.



PROMESSA

Depois, verás! O vento há-de cantar
Estranhas melodias ignoradas
E a tona verde, líquida do mar,
Há-de encher-se de rosas encarnadas.

O sol será mais sol, mais tutelar
A aquecer terras frias, mãos geladas,
E os voos hão-de erguer-se pelo ar
No encantamento de asas libertadas.

Depois, verás! Nem cruzes nem espinhos!
E há-de haver água em todos os caminhos
E em cada sombra o riso de um lampejo.

Há-de crescer o bem, secar o mal,
Quando eu florir teus lábios de mortal
Com a imortalidade do meu beijo!



RESSURREIÇÃO

Não vês? Ergueu-se a chama prisioneira
E que aos poucos morria de abandono.
O teu olhar poisou-se na roseira
E a roseira floriu, perto do outono.

O meu sonho de luz em cachoeira
Não tinha cor nem frémito nem dono
 —— Que estava ainda a meio da ladeira
E agonizava de vazio e sono.

Porém, o sol rompeu no céu contente
E o meu corpo cansado de poente,
Amanheceu numa alegria sã.

Não vês? Beija-me a boca ardente e louca
E dize-me depois se a minha boca
Não tem um gosto nítido a manhã.



TRANSFIGURAÇÃO

Prende nas tuas minhas mãos cansadas
De tanta solidão, de tanto frio.
Enche-lhes o amaríssimo vazio
Do arrojo de carícias realizadas.

Dá-lhes a cor lustral das madrugadas
Dos dias quentes, bárbaros de estio;
Despe-as com devoção do tom sombrio
De tantas, tantas noites consumadas!

Em seguida, num místico lampejo
Mas no calor ascensional das brasas,
Beija os meus dedos trémulos e vãos,

Que depois do milagre do teu beijo,
Eu ficarei, amor, com duas asas
Onde Deus colocara duas mãos.



APENAS SONHO...

Na hora magoadíssima do poente
—— Quase apagada já a luz do dia ——
Rezava a tua voz tão docemente
Que nem o mar, o grande mar ouvia.

Na minha mão, a tua mão ardente;
No meu, o teu olhar que se morria
E o mar a nossos pés em tom crescente
Cantando, nem eu sei que litania.

Depois... Sei lá que sucedeu depois!
A mesma chama nos prendeu aos dois
E a ambos fustigou, como um açoite.

Nem sei se foi subtil, se foi agreste...
Apenas sei que o beijo que me deste,
Foi a primeira estrela dessa noite.



ÀQUELE QUE AINDA NÃO CHEGOU


Passou o inverno e foi-se a primavera.
Chegaram asas e depois partiram
E olhando estrelas que não desistiram,
Sem desistências, eu fiquei à espera.

Numa crença fundíssima e sincera,
Todas as minhas horas se esvaíram
E os dedos que os teus dedos não sentiram
Vão morrendo de ausência e de quimera.

Bebi distâncias; devassei montanhas
E sempre em vão o esforço do meu ser
Para entre os homens te encontrar.

Talvez chegues um dia, talvez venhas
Quando eu não tiver olhos para ver
Nem braços onde possas repousar.



CRISE

   I

  ACESSO


Homem que eu não conheço mas que existes
Em qualquer sítio que eu não sei onde é,
Eu te estendo os meus braços mais que tristes
Mas transbordantes de ternura e fé.

Homem que não me encontras mas persistes
E és no meu sangue a mais carnal maré,
Eu te estendo os meus braços mais que tristes
E toda a terra que me fica ao pé.

Eu te estendo os meus braços de vencida
Mas onde ainda vive muita vida
Embora já desfeita em mil pedaços.

Vem!, quer estejas longe ou muito perto
E então verás que o mundo era um deserto
Para cá da insistência dos meus braços.




CONVALESCENÇA

     II

Hoje, passada aquela febre imensa
Que me acendia sóis em cada artéria,
E que a fascinação quedou suspensa
Duma hora mais lúcida e mais séria;

Agora, que a razão se fez presença
o venceu os impulsos da matéria,
Não oicas minha voz humana e tensa,
Cheia de apelos, vagamente aérea.

Homem que não conheço e não procuro
A quem eu nunca chamarei futuro
E que talvez encontre, porque existes,

Vivas tu neste mundo ou nos espaços,
Eu te recuso a curva dos meus braços,
Estes dois braços cada vez mais tristes.





                 DA MORTE
   



DOLOROSA EXCEPÇÃO

Numa explosão de sons e de fragrância,
Todo o mundo se excede em formosura:
O vento canta preces de distância
E as asas rezam cânticos de Altura.

As sementes, sem medo ou vigilância,
Cantando, buscam a maior fundura
E uma galharda e viva ressonância
Chega do mar, dos cimos, da planura...

Só eu não tenho rumo nem coragem
E não vibro entre os braços da alegria
Nem canto com as rosas do jardim.

Só eu me sinto fora da paisagem,
Porque se o sol da vida em tudo é dia,
Não sei que a morte é que anoitece em mim.



COMPENSAÇÃO

Hoje, ninguém me quer, ninguém me vê,
Que andam os olhos cegos de desdém.
Chegam os mais e seguem para além
Sem reparar na graça da mercê.

Todos me negam sem saber por quê;
Se eu creio em todos, não me crê ninguém.
E a vida vai passando e a morte vem
E eu sou a página que não se lê.

Mas um dia  e o dia há-de chegar! 
Os meus irmãos, num pasmo singular,
Vendo onde me levou a minha sorte,

Hão-de invejar-me e ver-me bem de frente
Quando o meu sangue rubro, vivo, ardente,
Encher de vida o coração da morte!



RECURSO EXTREMO

   I

Vou e não sei ao certo onde é que vou!
Braços caídos, num tremor sombrio,
E a boca triste, pálida de frio,
Crucificada em beijos que não dou.

Sei lá bem se inda sou ou já não sou!
Tudo sabe a raízes, a vazio...
Como lutar, vencer o desvario,
Se a minha vida, a vida ma negou!

No entanto, não me domam os crepúsculos,
Que o sol insiste, numa ardência nua
E a negação, nem sei de onde me vem.

Se ainda tenho carne e sangue e músculos,
Ó morte, aqui me tens! Faze-me tua,
Já que não posso ser de mais ninguém!



    II

Bato à porta da morte, de mansinho,
Num movimento lento de abandono.
Venho morta de tempo e de caminho,
E trago tanto pó e tanto sono!

Perdi-me no caudal de um torvelinho
E fiquei sem amor nem sol nem trono...
Trago desilusões nas mãos de linho
E vendavais no coração sem dono.

Bem sei que a vida guarda a tua porta
E que só deixa entrar no teu domínio
Quem alma já não tem dentro do olhar.

Morte, mas tu bem vês que eu já sou morta:
Olha a minha tragédia, o meu declínio,
E dize à vida que me deixe entrar.



DESTINO CUMPRIDO

Sim! Amo a curva azul dos longes infinitos
E a noite, a grande noite esfíngica e pausada,
E a dureza brutal da carne dos granitos
E a espuma toda céu de uma asa levantada.

Amo o branco do riso e o vermelho dos gritos,
A nudez da raiz e a flor desabrochada,
A fúria do nordeste e o canto dos "benditos"
E as velas de um navio e o gume de uma enxada.

Sim! Amo a luz do sol fecundamente louca
E a boca que sorveu a cor da minha boca
E o gelo do silêncio e a inquietação do mar.

E quando me impuser a morte a sua lei,
Hei-de partir feliz e calma, porque amei
Tudo o que neste mundo havia para amar.



DESESPERADAMENTE

Olhei a morte frente a frente. Olhei-a
E prendi-a aos meus olhos, bem no fundo,
E, desde então, o sangue em cada veia
Tem-me um gosto vazio e moribundo.

Na minha alma sem luz, da morte cheia,
Não há sonho nem frémito nem mundo...
Só um punhado irônico de areia,
Cada dia sem sol, mais infecundo.

Mas a vida bateu à minha porta
E o meu corpo tristíssimo de morta
Renega noite, lágrimas e abrolhos.

Quem vem mudar o rumo à minha sorte?
Quem me vale? Quem vem soltar a morte
Que eu tenho presa ao fundo dos meus olhos?




ESCLARECIMENTO

Seria do perfume das cravinas
E da sombra fresquinha do palmar?
Do sussurro das asas matutinas
E dos gritos coléricos do mar?

Seria das promessas clandestinas
Que em noites sem perdão me fez o luar
Ou foi de ti, ó sol que me dominas
E que não deixas nunca de brilhar?

Seria do fragor do vento norte,
Da macerada cor do entardecer
Ou da manhã erguida em apogeu?

Vem-me buscar depressa, ó minha morte!,
Que só assim eu poderei saber
Se foi a vida ou não que me perdeu.



GRITO DESESPERADO

Morte; por que não vens? Tanto te chamo
E negas-te a escutar os meus apelos.
Acaba-me este mar de pesadelos
E as horas tristes em que me derramo.

Nada espero nem sonho nem reclamo.
Vem-me acabar os dias paralelos
E desfazer o nó dos meus cabelos
E mais esta ansiedade em que me inflamo.

Nada possuo já que me conforte.
Perdi a esperança e as ilusões e a calma
—— Que me roubaram todos esses bens.

 Por que não queres vir, senhora morte?
Se te chamo do fundo de minha alma,
Não entendo as razões por que não vens.



DA SÚPLICA INATENDIDA

Foi com o sangue a latejar de esperança
E o coração desfeito na procela
Que te chamei, e tu és sempre aquela
Que a voz da minha mágoa não alcança.

Mostrei-te os olhos de ovelhinha mansa
E o meu mar sem o afago de uma vela
E a minha alma onde a pena se encastela
E os meus passos sem sol nem segurança.

A estrebuchar num pântano de lodos,
Dando a vida que é minha e não é minha,
Mostrando aos outros o meu peito nu,

Vejo que neste mundo que é de todos,
Todos me vêem pálida e sòzinha
Mas que ninguém me quer... nem mesmo tu!



                  DE DEUS


ORAÇÃO FALHADA

A carne, nem violenta nem altiva;
Os olhos até onde o olhar permite,
Ponho a teus pés minha alma em carne viva
E toda a crença que nessa alma habite.

Ando no mundo aos tombos e à deriva
Sem encontrar alguém que me limite 
E por ti chamo numa rogativa,
E tu ficas alheio ao meu convite.

Deus que moras tão longe e lá tão alto,
Dissipa-me a incerteza e o sobressalto
E rasga as trevas deste negro véu.

Responde à minha voz molhada em ânsia
E acaba de uma vez com a distância
Que separa o meu barro do Teu céu. 




DÁDIVA

Porque a alma que eu tinha e tu me deste
Era grande de mais só para mim,
Aos meus Irmãos a dei, pura e celeste
Como na hora em que do Céu eu vim.   

Porém os mais, numa expressão agreste
E num riso sarcástico e ruim,
Não quiseram a alma que me deste
E que eu lhes dava, para qualquer fim.

A soluçar de angústia verdadeira
Pela recusa em cruz de cada Irmão
Que me tratou com frígido desdém,

Devolvo-te a minha alma toda inteira.
Fica com ela sobre o coração,
Se é que não a recusas tu também.



DIRECÇÃO EXACTA

          (ANTE UM CRUCIFICADO)

Há quase dois mil anos, mãos ferozes
Pregaram-te à tortura de um madeiro
E tu ficaste heróico e verdadeiro,
Suplicando perdão para os algozes.

Há dois mil anos quase, e as mesmas vozes
Inda gritam num grito sem parceiro
E queimam-te nas chamas de um braseiro
E, depois de gritar, partem velozes.

Vejo a tua agonia sem encanto
Aberta por um negro bisturi
Na luz das tuas faces que descoram.

Tens os olhos no céu, turvos de pranto,
E foi no teu olhar que eu aprendi
O caminho de todos os que choram.



CONFITEOR DEO OMNIPOTENTI...

Emprestaste-me a vida, por favor,
Para ta devolver tal qual ma deste
  Que me domasse riso ou amargor,
Viesse o vento do sul ou do nordeste.

Mas um dia de sol, chegou o amor
E tornou-se de mel o que era agreste
E correu com mais ímpeto e calor
O sangue que nas veias me puseste.

Deus que vês nossos erros e misérias:
Aqui estou culpadíssima e mesquinha
A confessar-te o horror do meu pecado:

De a sentir tão veemente nas artérias,
Até supus que a vida fosse minha
E dei o que me havias emprestado.



ÍNTIMO CREPÚSCULO

Que triste eu hoje estou, Senhor Meu Deus!
Que amargura sem lágrimas nem gritos
E que pequenos são os infinitos
Para os olhos febris iguais aos meus!

Quantas pedradas, quantos fariseus
No caminho sem sol, cheio de atritos!
Quantos peitos, mais duros que granitos,
Negando-me vitórias e apogeus!

Só a tortura de um calado ai
E esta cruz pesadíssima, tão alta,
E a cor doente de um precoce outono.

Que estranho és e que insondável, Pai:
Não deixas que eu encontre quem me falta
Nem consentes que morra de abandono.




TRILHO INTERCEPTADO

Foi uma estrada toda berta à luz
Por onde eu caminhava cegamente;
Foi a minha ansiedade de ir em frente
E a total exclusão da tua cruz.

Foi o desejo que se não traduz
Mas que em silêncio o coração consente;
Foi o aceno de uns dedos sem presente
A encher-me de promessa os dedos nus.

Mas um dia apagou-se o lumaréu
E retalhei a carne espinho a espinho
Na última ilusão que me fugia.

Pai que me vês do alto do Teu céu:
Fizeste bem cortando o meu caminho,
Que eu já fui mais além do que devia.



DEFINIÇÃO

Silêncio é o tom profundamente vago
De contornos idílicos, incertos,
Que transborda dos cravos mal abertos
E do sono sem sonhos que há num lago.

Silêncio é a curva doce de um afago
E os dedos desse afago já libertos...
A areia ensolarada dos desertos,
O arrobo do que é santo ou de algum mago.

Silêncio é luz que desce do Infinito;
O encantamento de um jardim em calma;
A compostura do luar tranquilo.

Silêncio é o som deste espantosos grito
Que eu grito tão no fundo da minha alma,
Que nem mesmo o Senhor consegue ouvi-lo.



A MAIOR CULPA

Nos caminhos do mundo vou seguindo
Numa dúvida intensa, malsofrida:
Fui eu que dei a vida a um sonho lindo,
Mas ao luar foi Deus que lhe deu vida.

É minha voz que, aos poucos, vai subindo
Até chegar a frase destemida,
Mas Deus é que lhe deu um tom infindo
E que lhe pôs milhões de asas na subida.

Se o vinho é meu, Ele é que fez a vinha;
Se eu me nublei, deu-me Ele o amanhecer;
Se existe o amor, por Ele foi gerado.

Vendo a obra de Deus e vendo a minha,
Até hoje não pude compreender
Qual será de nós dois, o mais culpado.



VIGÍLIA

    I

Muda e sòzinha pela noite além,
Entre o sono da casa e a minha dor,
Choro longe dos mais e sem clamor,
Enquanto o riso da manhã não vem.

        Minha cabeça sem auxílio nem                 
Um pouco de ternura ou de calor,
Tomba exausta de um fogo interior
Sem que lhe acuda o amparo de ninguém.

Na longa solidão da noite escura,
Meus olhos são dois rios de amargura
Sem a festa de um riso que os melhore.

Meu Deus: Aonde está o ser eleito
Que me encoste a cabeça no seu peito
E, chorando, me peça que não chore?



    II

Vão as horas tombando,lentamente,
Na lentidão dos que não têm pressa,
Sem que se ateie a chama da nascente
Nem o pavor da solidão me esqueça.

Vão as horas tombando, em ar doente,
Isentas de saúde e de promessa,
Delindo-me na carne o sonho ardente,
Deixando a noite na minha alma impressa.

Por que não vem alguém ao pé de mim,
E me livre da cruz de cada ai
E me converta à fé de dogmas sãos?

Alguém que saiba ver-me até ao fim
E me lembre que Deus ainda é meu Pai
E que os homens são todos meus irmãos?



    III

Mas entre as garras frias do abandono,
Ninguém me enxuga pranto nem suor.
Tão grande a noite já, fez-se maior
Nos meus olhos febris, ermos de sono.

Da minha boca, a ressumar outono,
Lenta, cai uma queixa em tom menor
E uma angústia se espalha em derredor
Da minha alma tristíssima e sem dono.

Ó Senhor que me deixas sem um bem,
Muda e sòzinha pela noite além,
Imersa neste inferno em que me atristo:

Como hei-de ver-te cheio de clemência,
Se depois de me dares a existência,
Nunca mais te lembraste de que existo!



A MEIO DA INSÔNIA

De entre a sombra na terra projectada,
A voz de um grilo, estrídula, sonora,
Rasga o seio da noite realizada
E apunhala o silêncio desta hora.

Fere-me a alma a cor avermelhada
Daquela voz que se não vai embora...
É chama que se alteia, alucinada,
E fica ardendo pelo tempo fora.

Tenho as mãos frias duma angústia lenta.
E a voz do grilo insiste, sobe, aumenta,
Num timbre inda mais nítido, mais fundo.

Deus que me vês, impávido e tranquilo:
Mata o canto infernal daquele grilo,
Mata todos os grilos deste mundo!



SONHO IMPOSSÍVEL

Pudesse eu ir além da noite escura
E acender sóis no espaço que os não tem
E, olhando a vida pródiga e futura,
Pensar na morte sem chamar-lhe mãe.

Cedesse eu ao convite da aventura
Sendo livre e mais alta que ninguém
E julgasse que o bem tem longa dura,
Que do mal brota sempre qualquer bem.

Cantasse eu, sem receios e sem véu,
As estrelas e o pão, o fogo e o sal,
Os abismos fundíssimos e os combros.

E depois de cantar a terra e o céu,
Sentisse eu, num afago paternal,
As mãos de Deus poisadas nos meus ombros...



DE JOELHOS

Senhor, deixa que eu reze e tenha fé!
Dá-me uma esperança ardente e resoluta
Em vez desta descrença que em mim luta
E tanto me espedaça e tão grande é!

Defende-me da cruz e da maré
Destes soluços que ninguém escuta.
Vê-me a face sem cor e nunca enxuta
E desprende-me a argola da galé.

Dá-me umas asas puras, sem passado,
Em vez destes dois braços de pecado
Onde anoitece tanto desengano.

Faze o meu ser de luz e de perdão,
Que eu não posso rezar-te uma oração
Tendo nos lábios um sabor humano.



QUEIXA

Tanto "não" a gritar à minha volta!
Tanta recusa a anoitecer-me a estrada!
E tu não vês minha alma angustiada
Nem ouves os queixumes que ela solta.

Aos meus passos humanos, uma escolta
Limitou-lhes a marcha projectada
E o meu sonho sem fel, de iluminada,
Mudaste num abismo de revolta.

Tentei voar, disseste-me que não;
Negaste-me a beleza de onde vim
Mais o consolo de qualquer mercê.

Senhor: Depois de tanta negação,
Ao menos, uma vez dize que sim,
Embora eu fique sem saber a quê.



ASCESE

Em busca de um encontro mais fecundo,
Deixei matas, charnecas, maresia,
E fui-me na demanda de outro mundo
Enquanto a luz em sangue se morria.

Nunca farta do sonho em que me inundo,
Numa arrancada para além do dia,
Canto um salmo litúrgico e profundo
Feito de esperas, longes e poesia.

Liberta já da carne tão restrita,
Ultrapasso a prisão que me limita
E venço a dúvida em minha alma inquieta.

Meu olhar não se afasta nem se turva:
Despedaçada a minha humana curva,
Uno-me à divindade em linha recta.




DIONISÍACAS




A TERRA

Aberta a fome bíblica das gentes,
Rasgada pelo esforço das rabiças,
Em maio, na pujança das sementes, 
Em setembro, de vestes outoniças,

A terra dá-se em trigo e nascentes
  Cheias de sumo e cor, as mãos submissas 
Uma grita no curso das correntes,
Um sossego no sono das cortiças.

A transbordar de frito e de raiz,
O sol, queima-lhe o espírito e a matriz,
Pega fogo às ramagens e aos restolhos.

E vendo a terra que meus olhos junca,
Sinto o corpo mais terra do que nunca
De toda a terra que me junca os olhos.



O FOGO

Começou entre os braços de dois gumes
  Braços de pedra tímida e lascada 
E amanheceu clarões, desfez negrumes
No silêncio da noite prolongada.

Vestiu a terra a brasa de mil lumes
Quando a terra morria de gelada.
Acendeu sóis em pântanos e cumes
Sem o auxílio vital da madrugada.

Venceu medos e curvas e neblinas
—— Que tem a alma do sol dentro de si
A afastá-lo de todas as misérias.

Pai-fogo que me encantas e dominas:
Foi de tanto prender o olhar a ti,
Que trago o sangue em chamas nas artérias.



SILENO

Pelos cantos da boca, escorre o mosto
Que era há momentos seiva nos bacelos.
Traz vermelhos de sangue e sol no rosto
E folhas todas verdes nos cabelos.

Veste-lhe as carnes a nudez de agosto;
A incidência d luz, doira-lhe os pêlos.
E a babar-se de vícios e de gosto,
Enche os longes de lúbricos apelos.

De mãos sujas de terra e de festim,
Entorna bebedeiras no caminho,
Expõe à luz da tarde o corpo nu.

Sileno, meu Irmão, chama por mim,
Que eu quero ter a boca a pingar vinho
E as mãos sujas de terra como tu.



A ÁGUA

Nasce junto à raiz de um rosmaninho,
Sem litorais que a cinjam e sem margens
E, correndo entre os dedos das folhagens,
Deixa estrelas acesas no caminho.

Desce do alto da serra, em desalinho.
Canta ao fundo de todas as paisagens.
Depois é raiva e grito das voragens,
Sorvedoiro brutal de redemoinho.

Vem do início do tempo mais profundo.
É gota, é rio, é fúria destemida,
É maré a lutar de encontro ao porto.

E eu julgo ao ver-te deslizar no mundo,
Que és a última lágrima caída
Dos olhos inda quentes de um deus morto.



O CICLONE

Entre os dedos febris, espiralados,
No ritual de uma estranha devoção,
O vento quebra os ramos desgrenhados
E louco de furor, joga-os ao chão.

Fez-se voz o silêncio dos montados;
Tombam asas cansadas de ascensão
E a poeira, nos caminhos chicoteados,
Baila, nem sei que dança de aflição.

Obedecendo à força da voragem,
As águas sobem, vencem cada margem,
Matam a flor, onde uma flor houver.

E eu oiço o vento e entendo-lhe os apelos
E abro os braços em cruz, solto os cabelos,
E o vento que me leve onde quiser!




Deus nu que não precisas lança ou escudo
(Pois não encontras forças que te domem)
Cheio de fogo, o peito cabeludo
—  Pêlos de chibo em arcaboiço de ouro;

Velas onde escabuja um sangue rudo,
Quando as raivas do cio te consomem;
Um sol que não tem céu, no olhar agudo
— Olhos que bebem água e terra comem;

Pés caprinos, o corpo ermo de parras,
Nos beiços, a violência das cigarras
— A alma a repetir a voz incauta.

Deus que trazes nas mãos fenos e piornos
E cachos de uva enfeitando os cornos,
Adormece-me ao som da tua flauta.



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