À ETERNA LUZ DOS INFINITOS SÓIS (1954)




















(Poesias, MARIA HELENA, Lisboa, 1954, 142 páginas)






Ex-libris de
Álvaro Duarte de Almeida








À ETERNA LUZ

DOS INFINITOS SÓIS








DEDICATÓRIA

PARA


OLEGÁRIO MARIANO








PRIMEIRA MANEIRA





FIGURAS PROJECTADAS









EPOPEIA DA VIDA


Já ressoa o clangor de mil fanfarras!
A vida ergue-se ao alto, em vertical!
Vibra no Espaço o grito universal
Dos pulsos sem grilhões, dos barcos sem amarras.
Traz cada hora uma alegria sã;
Cada passo, a certeza dum destino.
E na voz dos Poetas canta um hino
Composto ao Sol de bíblica manhã.
Já não lembram as chagas derradeiras
Que a carne lhe queimavam como lume
E, a transbordar de seiva e de perfume,
A terra bebe a cor das sementeiras.
Em tontos e constantes redemoinhos
O vento, até há pouco ao abandono,
Anda agora a correr e a perturbar o sono
De cada flor que dorme à beira dos caminhos.
E o mar, esse gigante de outras eras,
Num titânico esforço
E pleno de intenção, alteia o dorso
Sem a mórbida calma das esperas.
E o sangue é Sol a arder em cada veia,
Sol isento das mágias do poente,
E o coração palpita, doidamente,
Num ritmo triunfal de maré-cheia.
E até o pó, perdida a humilde compostura,
Já liberto do chão e do tormento,
Canta entre as mãos olímpicas do vento
O seu canto efêmero de altura.
E o homem, já esquecida a vida amarga,
O pão que não comeu, a sorte do enjeitado,
Num ímpeto de herói pega no arado
E faz a seara cada vez mais larga.
E quando a tarde, sem poder vencê-las,
Veste nuvens - o trágico mantéu -
O canteiro de noite que há no Céu
Floresce todo em roseiral de Estrelas.
E, numa estrada rútila e sem fim,
O mundo avança, rápido, fiel,
Porque Deus aceitou as dádivas de Abel
E se esqueceu do crime de Caim.
E eu caminho sem leis nem sobressalto,
Colhendo cravos e queimando tojo,
Porque, numa ascensão pleníssima de arrojo,
Verticalmente, se ergue a vida ao alto! 



FINALIDADE

Seja, pois, o caminho pouco certo
E mal andado.
Tanto me faz que seja Céu aberto
Ou Céu negado.
Seja a loucura de qualquer momento
Sem hesitação.
O vento é que mudou! Porque mudou o vento,
Mudou também a minha direcção.
Seja a mentira de palavras vãs
A servir-me de arrimo e de farol,
Que para o coração de todas as manhãs
Nunca é mentido o Sol.
Seja o destino a si contrário:
Sonho que se despreza ou se deseja...
O que é humanamente necessário,
É que seja!






DIVAGAÇÃO NO ESPAÇO

Vivo agarrada à terra e ninguém olha
Nem vê que eu vou de rastros
Quando a noite se esfolha
Em mil pétalas de astros.
Ninguém vê os abismos de onde eu venho
E onde persisto entronizada em rei,
Que eu desejo um desejo que não tenho
E quero mais o que não sei.
Atravessei o mar - o mar da vida! -
E passei ondas sem poder sustê-las.
(Entanto a noite régia e adormecida
Realizava-se em silêncio e Estrelas).
Não existe farol que possa iluminar-me
O trilho que me leva e donde vim,
Que, por mais que eu insista em procurar-me,
Sou de longe de mim.
O plaino não me quer nem os escolhos.
Recusam-me os irmãos beijos e ais.
E olhando os outros, olho-me nos olhos
E vejo-me de mais.
E vejo que me negam o luar
Mais a luz da manhã, quando ela vem,
E eu não tenho coragem de afirmar
Que a Lua é minha e o Sol é meu também.
Enquanto eu calo a minha queixa
E o lenho mais me pesa sobre os ombros,
A noite avança omnipotente e deixa
Atrás de si um turbilhão de assombros.
Morrem horas sem fim. E o Tempo erra
Inda quente da mão que o imortalizou.
E ninguém vê que eu continuo agarrada à terra
E que de rastros é que eu vou.
À vista dos meus dias tão sombrios,
Quando a vida mortal por si responsa,
Chorei lágrimas grandes como rios
Que arrecadei das minhas mãos em concha.
Tudo ruiu, me devora e atormenta:
Um riso de prazer, o verde de uma palma...
Até a fé, que as almas acalenta,
Não me pertence, que eu não tenho alma.
Até a minha vida sem vitória
Bem a sinto afogar-se em negação
Quanto caminho extática e marmórea
Por distâncias febris de solidão.
E enquanto eu choro sem disfarce
Como cantam, à tarde, os rouxinóis,
A noite continua desfolhar-se
Na luz das rosas dum jardim de Sóis.
Assim eu vivo e sofro e me detenho
E, embora os gritos de hoje e os que ontem já gritei,
Ninguém vê os abismos de onde venho
E onde persisto entronizada em rei.




MOMENTO DESESPERADO

Raiva do medo que me tolhe os passos
E me não deixa caminhar!
Raiva da indecisão dos meus abraços...
Raiva da imensa fome de abraçar!
Raiva ante a tentação de todas as subidas
E dos mil cimos conquistados.
Raiva das mãos caídas
E dos ombros vergados.
Raiva de só beber água que é minha
Quando o fogo de ti é que nasceu.
Raiva de ver voar uma andorinha
Sem perguntar a quem pertence o Céu...
Raiva de me saber profundamente triste
Quando há gente que vive e sabe rir.
Raiva de mim, de tudo quanto existe
E de tudo o que está por existir.
Raiva de não poder mudar a sorte
E a mágoa consentida.
Raiva da Vida, que não traz a Morte!
Raiva da Morte, que me deixa a Vida!
Raiva da noite sem entardecer
Que apagou o meu dia.
Raiva mortal que me não deixa "ser",
Quando "ser" era tudo o que eu queria.
Raiva de me sentir de boca exangue,
Lábios que o desespero torce e laiva.
Raiva profunda de ter sangue
Porque é no sangue que escabuja a raiva!
Raiva da Lua imaculada e calma
E do Sol que não deixa de chamar-me.
Raiva de ser de carne e de ter alma
E não poder negar ou a alma ou a carne!



DEFESA

Por que me hão-se atribuir as coisas mais amargas:
Os astros por nascer e as trevas já nascidas?
Que culpa tenho eu das rosas desfolhadas
E das asas partidas?
Não condenem a curva do meu porto
E o seu apelo forte,
Nem acusem o sangue do meu corpo
De o milagre da Vida não ser Morte!



VAGA RECORDAÇÃO

Sei que havia luar,
Um luar vago, mas profundo.
Só não sei bem se era no mar,
Se em qualquer canto de outro mundo.
Se fosse mar, teria visto as ondas
Azuis e desiguais,
Dançando sucessivas rondas
Em demanda do cais.
Também não era vale. Faltava-lhe frescura
E plantações e casas...
Altura, também não. Se fosse altura,
Lembrava-me das asas.
Inverno, com certeza que não era,
Pois não esquecia as hors tormentosas.
Também se fosse Primavera
Tinha nos olhos as feições das rosas.
Sei que andava um caminho sem ter fim,
Alheia a medos e cansaços.
Ou voava, talvez, que não sentia em mim
O ímpeto dos passos.
Não me lembro se a cor era suave ou forte,
Que o tom não era negro nem azul.
Sei que esqueci onde ficava o Norte
E onde ficava o Sul.
Meu coração seria escravo ou rei?
E aconteceu aqui ou foi noutro lugar?
Não me lembro de nada! Apenas o que sei
É que havia luar...



O FRUTO DA VIDA

Pende dum ramo que não está num alto:
Mesmo ao alcance de qualquer.
Apenas um pequeno salto
E o fruto é de quem o der.
Mas, apesar da carne desvendada,
Ninguém cede à vertigem.
E o fruto continu na ramada
Intacto como o corpo duma virgem.
Agora, já começa a apodrecer
Ao calor que o consome.
E não chegam as mãos para o colher!
Ou todos têm medo de comer,
Ou acabou-se a fome!



MÚSICA

Nos longes da paisagem,
Entre ramos vibrantes ou dormentes,
Não é música o coro da folhagem:
Música é o caminho das sementes.
Quando a noite vertiginosa ou lenta
Se debate nas garras das procelas,
Não é música o grito da tormenta:
Música é o silêncio das Estrelas.
Se a terra está bordada a lantejoilas
De tons violentos, quase audazes,
Não é música o rubro das papoilas:
Música é o perfume dos lilases.
Embora sem desdém,
Matando fomes e aloirando dias,
Não é música dar quando se tem:
Música é a esmola dumas mãos vazias.
No Céu indefinido,
Ao ritmo dum compasso singular,
Não é música a luz do Sol nascido:
Música é a agonia do luar.
E doidamente, sem receio ou lei,
Nas assonâncias duma tarde agreste,
Não foi música o beijo que te dei,
Mas foi música o beijo que me deste!



SACRIFÍCIO CARNAL À VIDA RENOVADA

Conheço-te no dia que se expande
E no clarão das Luas-cheias.
Sei que és tu, porque me entras pelo sangue
Por mais que eu feche as veias.
Nos meus trilhos de mágoas e cansaços
Sobre a terra maninha,
Sinto os teus passos junto dos meus passos
Por mais que eu queira caminhar sòzinha.
Sei que és tu! Nem precisas de chamar-me
Na voz da Primavera.
Porque, por mais que eu negue a minha carne,
Sei que na minha carne alguma coisa espera.
És tu, porque me afastas dos escolhos
Duma tortura vã
E porque amanheceste nos meus olhos
Não sei em que idílica manhã.
Bem sei que és tu, omnipotente e forte
- Que tudo manda a tua mão.
Venha a vento do Sul, venha do Norte,
És sempre tu a dar-lhe a direcção.
Dona dos longes afastados,
Das searas e das ilhas,
És tu na ponta dos arados
E no gume das quilhas.
És tu em mim presente,
Nos meus sonhos pagãos,
Florindo uma promessa de nascente
Na estéril aridez das minhas mãos.
Por mais longe que eu seja e mais esquiva,
Bates à minha porta.
Sei que és tu, porque afirmas que estou viva,
Quando eu me cria morta.
És tu que reges cem milhões de coros
Nem sei de que sonhado Paraíso, 
Tu, que rasgas com látegos sonoros
A mudez do meu riso.
Vives oculta em cada sorte
Porque em tudo te escondes
E, quando eu grito e grito pela Morte,
És sempre tu que me respondes.
Sei que és tu que me embalas com mil trovas,
Que me trazes sujeita à tua lei
E que foste acender Estrelas novas
No Céu que eu apaguei.
Ama e Senhora do meu ser,
Leva tudo o que Deus me destinou,
Por que eu não sei nem posso combater
Quem é muito mais forte do que eu sou!



POEMA INQUIETO

Foi-se o dia, vazio de sentido
E dorido de mórbidos cansaços.
(Quem foi que pôs teu rosto apetecido
Onde não chega a fome dos meus braços?)
Doidas de sol, as nuvens não são minhas
Quando correm o mundo lés-a-lés.
(Quem foi que deu o Céu às andorinhas
E fez nascer raízes nos meus pés?)
Na bênção dum crepúsculo sereno
Cruzam-se asas, frementes, nos Espaços.
(Quem foi que fez o mundo tão pequeno
E tão grande a largura dos meus passos?)
Abriu-se em flor a terra que era nua
Sem que o medo dos outros a deprima.
(Quem fez rimar minha alma com a tua
Para depois lhe condenar a rima?)
Farta da escuridão de cada instante,
Nem me refresca a sombra do palmar.
(Quem colocou a Lua tão distante
E me deu tanta sede de luar?)
Canto a vida num tom quase indeciso
Pois ao certo, nem sei por que nasci.
(Quem foi que me expulsou do Paraíso
Por um pecado que eu não cometi?)
Despida de alegrias e apogeus,
Vivo aguardando a mágoa que vier.
(Quem foi que me criou igual a Deus
E me obrigou, depois, a ser mulher?) 



POSIÇÃO DEFINITIVA

Era ao longo da Vida que eu passava,
Mas sem colher a vida.
Também ao pé do sonho
Foi que passei,
Mas o sonho deixei
Num ângulo da estrada impercorrida.
Passei junto da fonte e tive sede...
A água cantava numa voz de amor...
Por que disseste ao meu ouvido
Que a fonte não era minha,
Senhor?
Passei ao pé do riso lado-a-lado,
Mas o destino
Prendeu-me as mãos inquietas...
Então compreendi que o riso não nascera
Para a boca dos poetas.
Um dia (o Sol queimava como lume
Na hora exacta em que me conheci...)
Como quem passa junto dum perfume,
Passei junto de ti.
E em tudo passo sem me demorar:
No silêncio, na luz, na cor da minha face...
E porque estou cansada de passar,
Quero uma dor inteira que não passe.
Ao menos que a saudade
Não tenha fim
No seu tom de procela:
Que ela não passe para além de mim
Nem eu para além dela.
Venha o açoite brutal de qualquer vento,
O sal de qualquer mar,
Que eu já me não contento
Só em passar.



SÚPLICA FALHADA

Foi com as mãos sujas de terra
Que Te pedi.
Tu não valeste à minha sede
E eu cá fiquei na vida agreste e má,
Que há um abismo de Céu
Entre a minha mão que pede
E a Tua mão que dá.


 ALUCINAÇÃO

Tenho o peso do mundo sobre o peito!
Preciso de ar! Alarguem os Espaços!
Quem me dera voar desesperadamente
Mudando em asas os meus braços.
Alarguem os Espaços!
Não me recusem ar!
O mundo é desmedido! Arrasa-me as entranhas!
Quebram-se no meu corpo os ímpetos do mar
E como pesam, as montanhas!
Por piedade! Quem vem em meu socorro!
Quem ouve a minha voz quase partida!
Quero fugir e vejo os dias presos
Neste casulo que se chama vida.
Tenho o peso do mundo sobre o peito
E sinto o coração todo esmagado.
Senhor, Senhor! Nunca pensei
Que o mundo fosse tão pesado!
Meus ombros são vertentes, ribanceiras.
Rasga-me as carnes tudo que é ruim.
E todas as cachoeiras
Brotam de mim.
Não sei se os dias morrem
Ou começam os dias.
Não vejo o Céu azul nem vejo os astros.
O vento quebra-me hoje as energias
Como dantes quebrava as árvores e os mastros.
Tenho o peso do mundo sobre o peito!
Já não sou eu! Que estranha sensação
De frio e de calor!
Minha cabeça é gelo e os pés de gelo são
E brasa-me a cintura a linha do Equador.
Não preciso de pena ou de conselho
Mais tenho precisão de mais artérias
E sem demoras e sem peias,
Que todo o Mar Vermelho
Transborda já das minhas veias.
Piedade! Quem me vem salvar
Do mais atroz dos pesadelos!
As raízes dum cedro secular
São hoje os meus cabelos.
Gritei aos Céus omnipotentes
Meu castigo sem culpa nem delito
E ao mesmo tempo
Todas as bocas das nascentes
Gritaram o meu grito.
Feriram minha pele de cambraia
Inconcebidos turbilhões
E nesse mesmo instante os cimos do Himalaia 
Chagaram-se em vulcões.
Não sei por que fantásticos bruxedos
Em paisagens dormentes ou agrestes,
Agora, quando curvo os dedos,
Curvam-se os troncos dos ciprestes.
E o mundo foi pesando, contundente,
E com desapiedado jeito
Rasgou meu peito angustiado e mole
E, tendo entrado o mundo no meu peito,
Sou eu agora que perdidamente
Giro à roda do Sol!




ABSTRACÇÃO

Ao longe a paisagem tem contorno astral.
Nos cabelos finos que o luar desata.
Ai! vida que foste concreta e real!
Ai! noite total, totalmente exacta!
Silêncios da Morte que ninguém quebrou.
Gritos de silêncio onde a vida se encerra.
Caminhos pisados que o Tempo alargou...
... Tantas, tantas rugas na face da terra!
Que louco é o Homem que estuda e não sabe
Por mais que se esforce em humanos cansaços.
Ai! quanto Infinito ilimitado cabe
No limite certo da curva dos braços.
E cabe uma vida vivida sem calma
Na lágrima ardente vertida com mágoa;
E cabe a tua alma dentro da minha alma
Como a Lua cabe numa poça de água.
Sangue de perdidos, de santos, de heróis...
Ferida a gotejar em abismos profundos.
Que louco é o Homem apontando Sóis
Vivendo algemado ao contacto dos mundos.
Ai! voz indecisa, que é virgem a trova
E a música há pouco inda foi começada.
Alma que traçou qualquer estrada nova
Não pode ter medo do início da estrada.
Ai! mares da vida onde a maré se expande
Em leitos macios de areias sem fim.
Que enleio de amor e que sonho tão grande,
Tão fora dos outros, tão dentro de mim!





DÁDIVA

Bem hajas pelos cravos, pela cruz,
Pelo vento que passa...
(Aqui tens minhas mãos plenas de luz
E os meus olhos, Senhor, cheios de graça).
Bem hajas pelo bálsamo da vida
Que a Tua augusta mão sobre nós derramou...
(Aqui tens minha carne amanhecida
Onde há pouco o Sol se levantou).
Bem hajas pela giesta calma e langue,
De recatada essência...
(Aqui tens a alegria do meu sangue
A cantar a vitória da existência).
Bem hajas pelas nuvens dos Espaços
Que vão sem que ninguém possa detê-las.
(Aqui tens o infinito dos meus braços 
Onde repousa o sono das Estrelas).
Bem hajas pela seiva, pelo mosto
E pelas frutas sãs...
(Aqui tens minha boca de Sol-posto
A comungar o corpo das manhãs).
Bem hajas pelos trigos já colhidos
Murmurando em silêncio uma oração de fé...
(Aqui tens meus cabelos desprendidos
E espraiados num gesto de maré).
Bem hajas pelos vales, pelos combros,
Pela cinza já morta e pelas brasas...
(Aqui tens a nudez dos meus dois ombros
Aguardando a promessa dumas asas...)
Bem hajas pelo aroma e pela cor
Da mística açucena aos girassóis pagãos...
(Aqui tens os meus versos sem valor
Que eu deponho, a rezar, nas Tuas mãos).
Bem hajas pelas águas de cristal
Matando a sede até à saciedade...
(Aqui tens o meu peito de mortal
Onde palpita a Tua Eternidade).
Bem hajas pela flor e pelo cardo agreste,
Pela vida que vive em cada ser...
...Só não Te dou a alma que me deste
Porque alguém ma levou sem eu saber!





MULTIDÃO

Partem gritos em todos os sentidos
Molhados de suor, cheios de pó...
E eu sinto-me feliz por me sentir
Completamente só.
É maior o entusiasmo de hora a hora:
Domina cada coisa e cada ser.
E eu tenho uma alegria dolorosa
Em me sentir sofrer.
O Sol, no azul, é cada vez mais Sol.
Um Sol que não se entende nem traduz.
E cheia de esplendor rolo no solo
Despedaçada em luz.
O som aumenta apaixonado e louco.
Vai sempre além, a sôfrega avantesma!
Todos juntos, os mais formam um todo
E eu quebro-me em mim mesma!
Sangram bandeiras numa longa fila...
A luz bate violenta a cada porta...
Que desdém louco eu sinto pela vida
Por me saber já morta!
Os meus Irmãos são carne e sangue em chamas
Numa loucura viva e carmesim.
Só eu sou cada vez menos humana
A subir-me de mim!
Eu sigo o meu caminho sem desvio,
Isenta de conselhos sem valor. 
(A tarde continua a abrir-se em gritos
E a estrebuchar na cor).
Nada que vença ou que me curve ou dome.
Sinto-me só nos trilhos que são meus.
Ah! Talvez que entre a multidão dos homens
Eu seja qualquer deus.



MOTIVO

É a festa do Sol que me faz mal.
É a brisa cantando suaves trovas
E o verde forte e adulto do pinhal
Junto à cor infantil das folhas novas.
É o anseio de febre que há nos ninhos
Ao primeiro clarão da madrugada.
É o apelo de todos os caminhos
E a descrença total na caminhada.
É a campina a latejar, fremente,
Na bacanal olímpica da cor.
É a certeza, em cruz, de ser semente
E nunca, nunca mais poder dar flor.
É o grito que vai de rua em rua
E que o eco repete Céu em Céu
Da voz de um mundo que me chama sua,
Um mundo a que eu não quero chamar meu.
É a fria indiferença de quem passa
De olhar perdido ao longe e porte altivo
E este convite azul que me espedaça
Na vibração das horas que não vivo.
É a espera enigmática do "fim"
Sob o olhar impiedoso das Estrelas.
É ver tantas mimosas no jardim
E nunca mais ter mãos para colhê-las.
É beber a agonia dos poentes
E esquecer as manhãs de tons sadios.
É ver os ramos cada vez mais quentes
E ter os braços cada vez mais frios.
Sentir que não há pranto igual ao meu
Nem noite igual ao meu anoitecer.
É toda esta amargura de ser eu
E a certeza de não deixar de o ser.
É ter inveja às rochas escalvadas
Onde o musgo cinzento a custo medra
E ver pisar as pedras nas estradas
E lamentar não ter nascido pedra.
É este perguntar em voz dorida
A cada coisa morta e a cada ser,
Por que é que, a par de tanta, tanta vida,
Eu tenho tanta pena de viver!



POEMA SEM RAZÃO NEM SENTIDO

Talvez do horror que espreita a cada esquina
E do silêncio frio como as loisas...
Sei lá! Talvez da chuva, da neblina,
Deste arrepio que arrepia as coisas...
Talvez dos longes, duros como os mármores,
Mal definidos, vagamente absortos...
Talvez das folhas trémulas as árvores
Atapetando a terra de oiros mortos...
Talvez das nuvens baixas, silenciosas,
Correndo numa estrada desigual...
Talvez da face lívida das rosas
Cheias dum pranto que não sabe a sal...
Talvez da noite que não teve luar
Nem consolo nem sono e sem tamanho...
Sei lá! Talvez dos mais que, sem pensar,
Têm uma alegria que eu não tenho...
Talvez do sangue que sem dó esbraveja
E fala aos meus sentidos em voz alta...
Talvez duma saudade que sobeja...
Talvez duma presença que me falta...
Talvez da indecisão rubra, em marés,
Desta luta em que eu ardo como as brasas,
Entre o chão húmido onde ponho os pés
E os Infinitos onde tenho as asas.
Sei lá! Talvez da cor das sardinheiras
Gritando brilho nos canteiros baços...
Talvez dos braços curvos das videiras...
Talvez da linha recta dos meus braços...
Talvez destes momentos vis de tédio
Destruindo o que é meu e não é meu...
Talvez desta amargura sem remédio
De inda não ter deixado de ser eu...
Talvez da Vida incerta, sem um Norte,
Restrita à dor da sua pequenez...
Talvez da ideia trágica da Morte,
Dessa certeza que não tem "talvez"...
Talvez da mágoa lúcida e suprema
Que me rasga sem pena o coração
Ou da inutilidade deste poema
Que não tem nem sentido nem razão...
Talvez da minha crença ajoelhada,
Da rebeldia do meu grito agudo...
Talvez dum tudo que não sabe a nada
Ou desse nada que me sabe a tudo...



CAMINHADA HERÓICA

Sim! É o Futuro a caminhar comigo
Por uma estrada plena de luar.
O Futuro, com as mãos cheias de trigo
E os olhos por chorar!
Levamos dentro em nós a chama de cem fés
Erguida de cem brasas
E a latejar ao ritmo das marés
E ao compasso das asas.
Irmãos! Sussurros de qualquer nascente!
Planuras de charneca e vastidões de mar:
Abri alas de Esperança à nossa frente,
Que nós vamos passar!



FONTE NEGADA

De aonde vieste, Inspiração,
Ao fundo mais profundo da minha alma,
Violenta como um clarão,
Erguida como uma palma?
Ah! por que vens anunciar-me o dia
Com a luz da manhã serena e acesa?
Quem te vestiu roupagens de alegria
No corpo emagrecido de tristeza?
Se já desaprendeste de sonhar,
Se não há esperança que em ti cante,
Por que te deixas embalar
Pelo vento nem sei de que quadrante?
Se a saudade se deu e é toda tua
E sempre está em ti presente,
Como é que ainda podes ver a Lua
No Céu da tua noite permanente?
Não me venhas dizer que a Vida é bela
E que há lá fora um lindo Sol doirado.
Quem te mandou que abrisses a janela
Que a minha imensa dor tinha fechado?
Vai! Eu continuarei vencida,
Mais fria do que os frios alabastros.
Quem chorou tantas lágrimas na vida,
Já não tem olhos para olhar os astros.
Talvez não mintas. Tua voz persuade.
Falas num tom amigo, tutelar.
Mas não podes impor-me uma verdade
Que a minha alma não quer acreditar.
Deixa-me só nas minhas horas sós,
Estéril e maninha.
Eu não consinto à tua voz
Que vá mais longe do que a minha.
Noite! Noite é que eu quero! Noite fria
A estrebuchar de mágoa e de cuidado.
Que para mim se acabe o dia
Quando os outros o vejam começado.
Agora, vai-te embora, Inspiração.
Deixa-me ser tal como sou.
Não aceito o teu pão;
Não quero a tua mão na minha mão
Nem foi por ti que a minha dor gritou.





SEGUNDA MANEIRA



LINHAS CLÁSSICAS




TRÍPTICO

I

Ao perto, a voz soturna dum oceano...
Muito ao fundo, o recorte da montanha
E uma palpitação viril e estranha
De sangue vegetal e sangue humano.
Uma esperança trouxe um desengano
E a dor sem nível uma fé tamanha...
Lua que em flor abriu... E o luar banha
Com luz igual o angélico e o profano.
Sonho que veio e mal que em nós se plasma...
Rosa que deu perfume e é já fantasma
Entre os silêncios dum jardim ausente.
Na curva astral dum Céu violento ou manso,
Os mundos que se agitam, sem descanso,
E Deus olhando os mundos, vagamente...


II

Deus! Sempre Deus! A Sua augusta mão
A acender Sóis e a equilibrar os mundos.
Sempre o mistério, a mesma inquietação
Do cume erguido aos barrocais mais fundos.
E chamo-Te, Senhor,e é sempre em vão
Que os meus gritos são altos e profundos.
Se tento ir mais além, a cerração
Nega luz aos meus passos vagabundos.
Sempre as quatro Estações em cada ano:
Um nevoeiro trágico e suspenso
Ou a cor luminosa duma alfombra.
Ó raiva de não ser mais do que humano!
No fim do meu apelo, o Teu silêncio
E no fim do Teu Sol, a minha sombra...


III

Sei lá! Sabemos lá! Um quase nada
E um TUDO sem conforto nem motivo.
Por que anoitece a luz da madrugada
E chora a voz dum rouxinol cativo?
Por que há sangue na Hóstia consagrada
E nas veias dum verme repulsivo?
Depois da plenitude conquistada,
Por que se verga o girassol altivo?
Mar que durante o ardor da maré-cheia
Se roja e humilha e apouca e abrasa a areia,
Quem desfez os impulsos que eram seus?
Vida de Norte a Sul, de Sul a Norte,
E, ao fim da Vida, a confusão da Morte
E, além da Morte, a incógnita de Deus...





À DISTÂNCIA DE MILÊNIOS

Feliz? Talvez o fosse noutra idade,
Quando o mundo era edênico canteiro
E se ignorava o peso dum madeiro
E quanto dói a dor duma saudade.
Quando a terra era um poema cor de jade, 
Escrito em verso no arvoredo inteiro
E havia Sol no dia verdadeiro
E cor e sangue em cada mocidade.
Se já fui Céu, encontro só fundura;
Se já tive asas, hoje tenho pés;
Se já me ri, hoje vivo em mágoa.
Sou como o sal na paz da cozedura,
Tão distante da raiva das marés,
Que nem se lembra de ter sido água...



TURBILHÃO

Por mais que eu grite ou cante, o mundo continua
Num movimento lento, antigo, pendular...
Se eu desejo ser lago, é certo que sou mar,
Se o Sol é que me apraz, logo apeteço a Lua.
Se há crispações de cor na minha carne nua,
Visto-a de renda branca e fria do luar...
Tenho e não tenho nunca! Asa que não tens par,
Que triste Céu o teu, que triste sina a tua!
E a Morte que não vem e não se vai embora!
E o riso que se nega em lúbrico prazer
Numa visão que se deseja e não deseja.
Sempre o anseio maior em cada hora!
Sempre a amargura atroz de não saber
Se o que me falta é vida, ou vida que sobeja.



CAMINHO IGNOTO

                    I

Aonde vais tão alto, Pensamento,
Banhado de esplendor, Espaços fora,
Que já passaste os turbilhões do vento
Mais as distâncias onde nasce a aurora?
Por que me levas tu cada momento
Mais longe ainda do que a Lua mora,
Onde o Inverno prepara o seu advento
E a Primavera de matiz se enflora?
Por que te enches de azuis que não são teus
E de calmas branquinhas de luar
E de Sol em triunfos e ascensão?
Por que te abrasas tu na luz de Deus,
Se deixas o meu corpo a rastejar
No lodaçal da humana escuridão?


                    II

Vai para além de mim, ó meu anseio!
Sangue que já não cabe em cada artéria
Quebre as grades fechadas da matéria
E espedace-me as veias meio-a-meio.
Mais alto! Nova fé e novo esteio!
Longe das garras de qualquer miséria!
Seja a prisão granítica e funérea
A eterna chama de onde a luz me veio.
Liberta já de estradas e cansaços,
Sem peso nem de braços nem de abraços,
Hei-de subir no impulso que me exalta.
Hei-de subir e, vitoriosa e forte,
Procurarei nos pélagos da Morte
Até achar a Vida que me falta!




ABRAÇO FALHADO

A pino o Sol na exactidão da estrada
E na distância azul e pouco certa...
Sol no sangue de cada rosa aberta
E Sol em cada rosa inda fechada.
Sol dentro da minha alma esfacelada
Inda há pouco tristíssima e deserta...
Sol que exige e avoluma e que desperta
A tentação mais louca e mais errada...
Tonta da luz que me encharcava os passos,
Para abraçar o Sol, abri os braços
Na mais funda e sentida exaltação.
Mas o Sol não me viu ou não me quis!
E do abraço só resta a cicatriz
Que a minha sombra em cruz abriu no chão!



MATINAL

Era a noite, pesada de grandeza,
Num fundo negro como uma traição...
Era o facho vermelho da certeza
Que aos poucos se apagava em cada mão...
Era o febril silêncio de quem reza
No silêncio febril do coração...
Era a vida a acabar-me sem beleza
E no amargor de a ter vivido em vão...
Mas a manhã rasgou trevas e assombros
E, lírica, entornou sobre os meus ombros
A bênção duma luz precisa e franca.
E eu fiquei pura, transparente e calma,
Como se de repente na minha alma
Tivesse aberto uma açucena branca.



SONETO À MORTE

Digo o teu nome, digo de mansinho
Com uma voz de pulsações estranhas,
Mas só respondem, altas, as montanhas
E as pedras solitárias do caminho.
Digo o teu nome, digo... Ave sem ninho
Vagueia o eco em extensões tamanhas...
Ó Morte: venhas tu de onde me venhas,
Leva o meu coração que está sòzinho!
Já não te oponho diques nem entraves.
A minha alma é uma lágrima caída
Que dos meus olhos trágicos resvala.
Mas tu não vens, ó Morte!, porque sabes
Que há no meu coração tão pouca vida,
Que nem te vale a pena vir buscá-la!


ALTISSIMUS

Tenho sede, Senhor! Sede de luz!
Olho as Estrelas e mais sede tenho!
Vê que intenso negrume se produz
No caminho sem luz por onde venho.
Tenho sede, Senhor! Os braços nus
Gotejam sangue da pressão do lenho...
Ai! a secura que se não traduz
E que não tem limites nem desenho!
Tantas Estrelas pela noite fora
E é em vão que a secura me devora,
Que os meus lábios jamais hão-de bebê-las.
Deus que atendes qualquer humano grito:
Se me dás esta sede de Infinito,
Por que não liquefazes as Estrelas?



AUTO-RETRATO

Murcharam pouco a pouco as alegrias
Que eu tinha ao meu alcance e não vivi.
Os meus dias são ecos de outros dias
Cheios de Sol, mas que eu anoiteci.
O vinho das mais loucas fantasias
No meu copo o deitei, mas não bebi,
E este peso brutal das mãos vazias
O Tempo é que o deixou atrás de si...
Neguei-me à Vida, às rosas do jardim,
E hoje nada me resta além da glória
Duma saudade que se não dilui.
Que estranha anomalia eu fiz de mim:
Sou apenas a linha transitória
Que liga o que hei-de ser ao que não fui.


...E ASSIM FALOU AQUELA TRÁGICA FIGURA:

"Traição! Traição! Mentiste à tua idade!
Mentiste ao Deus que tudo ordena e cria,
Pois, negando o que o sangue te exigia,
Traíste a tua própria humanidade.
A boca, recusaste-a sem verdade...
Fechaste a porta aos risos e à alegria...
Calaste o coração, por cobardia,
E aos sonhos impediste a liberdade.
Tiveste medo de encarar a luz
E, alongando os teus braços numa cruz,
Ficaste exposta, maculando os ares.
Vil traidora! Aqui tens a tua estrada:
Vai! Vai e deixa a vida estrangulada
Na primeira figueira que encontrares!"



MOMENTO

Névoas que nem o vento despedaça
Nem o Sol vence com a sua luz...
A profunda indiferença de quem passa...
Oceanos sem marés... Braços em cruz!
A minha voz que pede, lenta e baça,
E que o eco do mundo reproduz...
Um tom cinzento e longo de desgraça...
Nem promessa de flor nos troncos nus...
Uma saudade enorme e sem remédio
Alarga a minha angústia desmedida
E faz maior a noite do meu tédio.
Horas sem fim, na solidão tamanha...
A Morte que não quer levar-me a vida
E a Vida à espera de que a Morte venha...



LOUCURA

Eu, pisando amarguras ou quimeras
- Vencida a terra ao peso dos meus passos -
Trazendo em mim o abrir das Primaveras
E a paisagem dormida nos meus braços;
Eu, manancial de todas as esperas,
Fonte sem fim de todos os cansaços...
Eu, a bater no coração das feras
E nas asas febris violando Espaços.
Ressurjam fés, desapareçam fés
Num movimento intenso de paixões
Dando à vida um sabor de caos profundo.
Murchem rosas, acalmem-se marés...
Eu, além das humanas compreensões!
Eu, acima das leis de qualquer mundo!



INCÓGNITA

Noite plena de anseios e de lumes
Que vens não sei por quê e não sei donde
Palpitante de líricos perfumes,
Por que perguntas, se ninguém responde?
Água do mar, gelada como gumes,
Que mistério infinito em ti se esconde
E de ti nasce envolto em mil queixumes,
Por que perguntas, se ninguém responde?
E toda a Natureza é voz sequiosa
Que se ergue para lá de qualquer meta
Desde o calor do ninho às frias loisas.
E ainda mais erguida e mais ansiosa
Vai a minha alma eternamente inquieta
Além da eterna inquietação das coisas.



SONHO VERTICAL

Por tua mão subi, ousadamente,
Sem temer a vertigem da ascensão.
Subi, na luz radiosa do nascente,
Que me guiava o farol da tua mão.
O Destino deixou de ter presente;
A Amargura chamou-me e foi em vão.
Tinha o Espaço infinito à minha frente
E asas a palpitar no coração.
Nada detém meu vôo longo e fundo.
As humanas prisões hei-de vencê-las
E eu serei meu princípio, meio e fim.
Hei-de fugir da órbita do mundo!
Hei-de alcançar o nível das Estrelas
E obrigá-las a vir atrás de mim!



MOTIVO

As mãos eram extremos de cem braços
A construir um mundo ainda maior.
Não me detinham chuvas nem cansaços
Nem a blusa empapada de suor.
Os meus dedos partiam nós e laços
Quando a vida os atava em derredor.
Nem precisava olhar para os Espaços,
Porque os Espaços, tinha-os eu de cor.
Depois, o mal nem sei donde me veio!
As mãos tombaram. Deus abandonou-me
E eu fiquei só na minha rebeldia.
Quis o mundo maior e destrocei-o!
O mal foi não bastar à minha fome
O pedaço de pão que me cabia.



SOL

Tanto Sol entornado pelo mundo!
Tanta luz espalhada terra fora!
Do Horizonte ao barranco mais profundo
Pulsa uma vibração, quase sonora.
Há Sol nas mãos do vento vagabundo
E Sol no coração de cada amora.
Um Sol violento, lúbrico, fecundo,
A encher de fogo a lucidez da hora.
O Sol enxuga o pranto mais secreto;
O Sol aquece as folhas e a raiz;
O Sol acende a Vida e aloira o "fim".
E há tanto, tanto Sol neste soneto,
Que até duvido se fui eu que o fiz,
Se foi o próprio Sol que o fez em mim!



DISCORDÂNCIA

Pedi-Te aquela Estrela que luzia
No coração da Noite sempre acesa.
Mas, em lugar da Estrela que eu pedia,
Puseste um fruto mais na minha mesa.
Tonta de fé, pedi-Te a luz do dia
Radiosa de frescura e de beleza.
Mas Tu, em vez da luz que anoitecia,
Do meu porvir fizeste uma certeza.
Pedi-Te aurora e negas-me as auroras.
Quis ficar... impuseste-me o regresso.
Busquei a Morte, e a Vida é mais tenaz.
Assim, ó Deus!, eu passo as minhas horas
Vendo aumentar o pão que Te não peço
E com fome do Céu que me não dás.


APONTAMENTO

As montanhas tranquilas e redondas
Dormem ao Sol, sem crispações algumas.
Que mar sereno, tão avaro de ondas!
Que probrezinha, a renda das espumas!
As águas dançam escrespadas rondas
Sobre o doirado coração das dunas.
Nem um lugar agreste onde te escondas,
Ó minha alma enevoada pelas brumas!
Só os barcos cativos da agonia
Duma corrente vil passam a vida
Sonhando viagens que não chegam mais.
Também eu me debato noite e dia
Entre um desejo louco de partida
E a cobardia que me prende ao cais...



DIÁRIO

Mais um dia, Senhor! Nada mudou:
O mesmo Sol, a mesma claridade,
O mesmo pranto lento de saudade
Que hoje rola como ontem já rolou.
Caminho estreito e mau por onde vou
Já o piso, sei lá desde que idade!
É sempre a mesma angústia que me invade,
Sempre a mesma amargura que Te dou.
Nem um queixume no meu lábio mudo!
E sinto já sem forças as mãos flébeis,
Sem coragem o corpo vacilante.
Guia-me o vôo, Deus que podes tudo,
Que eu tenho as asas cada vez mais débeis
E o Teu Céu cada vez é mais distante.


CREPUSCULAR

Nem um canto, sequer! O Sol, já na descida,
Caminha pelo Céu num passo devagar.
Inda tonto de luz, mas já com pouca vida,
Avança lentamente em direcção ao mar.
Na terra nem um ai. Na raiz escondida
O sangue adormeceu cansado de girar...
Sereníssimo, o azul, deixando pressentida
A calma que depois há-de vestir ao luar...
O vento irrequieto e de asas altaneiras
Deixa dormir enfim os plátanos e as poeiras
Já esquecido da força onde bebeu a origem.
Silêncio em derredor: nos perfumes, nas cores...
Apenas eu a ver com olhos pecadores
Como cândidamente a tarde morre virgem....



OMINIPOTÊNCIA

        I

Se eu pudesse saber! Ir mais além
Da asa que conquista e logo cai...
Poder saber da nuvem onde vai
E perguntar ao vento de onde vem!
Se eu pudesse saber, ou mal ou bem!
Fosse à custa do Sol, fosse dum ai...
Que sucede ao perfume que se esvai?
A luz da Lua-cheia, quem a tem?
E dói-me a alma até à carne viva!
Ninguém ouve os meus gritos persistentes
Sem mentiras, enredos ou ludíbrio.
Que força é esta que me traz cativa,
Que põe fronteiras de água aos continentes
E que os mundos sustenta em equilíbrio?


         II

A mão de Deus e o Seu poder divino.
Aquela mão sem gumes nem arestas,
Que faz nascer o roble das florestas
Mais o trevo rasteiro e pequenino.
A mão de Deus, vibrante como um hino.
A que deu Sol às veias das giestas
E azul e altura às asas mais modestas
E a cada coisa deu o seu destino.
A mão de Deus e o Seu imenso império
A entornar oiro em pó em cada praia
E a vestir as magnólias de cetim.
Aquela mão tão cheia de mistério
Que levantou o pico do Himalaia
E ao mesmo tempo me criou a mim...



DÁDIVA

Quero dar o que tenho para dar:
Este Sol que me queima e que sobeja,
Mas não o quer a calma do luar
Nem a fúria dos ventos o deseja.
Fui dá-lo ao mar e recusou-o o mar
por mais sincero e puro que ele seja.
E o Sol ascende sempre, devagar,
Este Sol que me queima e que sobeja!
E os dias passam tristes e vencidos!
Tenho Sol entornado nos sentidos
Que prendo na renúncia do meu ser.
E eu finjo que desprezo a sua teia,
Mas oiço bem o Sol em cada veia
A exigir qualquer Céu para nascer.



CONDIÇÃO

Homem: quem te supões, se tens na boca
Um grito que não chega ao Infinito?
Se possuis voz, é tão mesquinha e rouca,
Que não passa do eco do teu grito.
Por que pretendes, em vertigem louca,
Ir além do teu drama de proscrito?
Limita-te ao silêncio que te apouca
E à tua pequenez fica restrito.
Tu que vives em pélagos submerso
E não mandas na luz da madrugada
Nem desceste aos abismos mais profundos,
Não te acredites dono do Universo,
Que não és mais que célula apagada
Entre a grandeza cósmica dos mundos!



SONETO DA ÍNTIMA DESESPERAÇÃO

Por que me chama o Sol esta manhã
Numa voz todo fogo e inquietação?
Por que suplica a minha carne sã
E por que não posso eu dizer que não?
Por que adivinho os lábios da romã
Se a romã não é mais do que um botão
E por que tenho na alma a noite vã
Se o dia me palpita em cada mão?
Por que passa o destino à minha beira
E abre rosas nos trilhos onde vou
E põe laivos de cor na minha face?
Por que me quer a Vida toda inteira
E por que foi que a Morte me deixou
Se eu tanto lhe pedi que me levasse?


SEM ALGEMAS

Duas asas apenas nos meus ombros
E o Céu aberto ao vôo ilimitado...
Duas asas, voando sem pecado
Sobre a nudez de pântanos e combros.
Nem renúncias nem medos nem assombros:
A Verdade comigo lado-a-lado
E o castelo do Sonho mais alçado
Sem o fantasma vivo dos escombros.
Uma esperañça maior de lés-a-lés
Erma do açoite negro das procelas
E da prisão do mais humano grito.
Todo o mundo de rastos a meus pés!
Duas asas apenas e com elas
Catadupas de azul e de Infinito!



ÁGUA QUE NINGUÉM BEBE

Eu não peço a ninguém! Não peço nada
- E demais sei que vou morrer de dor!
A quem mo nega, não suplico amor
Nem mendigo carinho pela estrada.
Naufrago numa noite antecipada
De solidão e lágrimas e horror.
Venha-me a companhia donde for,
O que eu não posso é ver-me abandonada!
Já não sou eu, nua de esperança e calma!
Dói-me a alma da ausência de outra alma,
Tenho os olhos vazios de outro olhar.
Irmãos: eu nada peço, ouvi-me bem:
Eu só desejaria achar alguém
Que aceitasse o que eu tenho para dar!


IMPOSIÇÃO

Humilde como sou - um grão de areia
Perdido na grandeza do areal -
Eu me recuso toda, veia a veia,
À rigidez da execução final.
Que o Sonho se confunda com a Ideia
Integrando o fantástico no real
Ou na verde raiz da maré-cheia
Sucumba a flor alvíssima do sal...
Levanto a minha voz timbrada e forte
- Esta voz que me vibra na garganta
A afirmar bens e males que possuo:
Eu me recuso a acompanhar a Morte
Sem que a Morte primeiro me garanta
Que, para além de mim, eu continuo.


INDEFINIDAMENTE

É quase vibração e quase calma.
Não chega a ser silêncio nem é grito.
Pulsa no azul distante do Infinito
E no gesto febril de cada palma.
Se tem ama, não chega à nossa alma.
Impõe obrigações dum novo rito
E, embora encontre um coração aflito,
Não desiste, não parte e não se acalma.
Lateja em qualquer vento pressentido
E traz dentro de si fomes e sedes
E não ouve nem rogos nem conselho.
Donde vem este anseio indefinido?
Talvez seja dos campos, que são verdes...
Talvez seja do sangue, que é vermelho...!


DESAFIO

Pois que venha de novo qualquer dor!
Brote a nascente imensa do meu pranto,
Que eu hei-de suportá-la sem quebranto
Chegue a amargura de que sítio for!
Na apoteose duma luz maior,
Olhem-me os meus irmãos hirtos de espanto
E oiçam a escala viva do meu canto
E contemplem-me as asas de condor!
Se a Morte me julgava a si vencida,
Tenho vida que chega para a Vida,
Que o sonho dentro em mim é que floriu.
Nada pode abalar a minha fé!
Se o mal vier, encontra-me de pé
E da altura que Deus me consentiu!


SONETO DO OCULTO ARREPENDIMENTO

Divina e pura vom das Tuas mãos
Que modelaram sombras e ardentia.
Trazia em mim o germe da alegria
E o Sol nascente nos meus dedos sãos.
Pura e divina como os meus irmãos,
Rasguei minha alma em tentação bravia
E recusei-me a estradas de valia
E perdi-me por becos e desvãos.
Minhas veias, manchei-as de pecado
Quando senti o sangue alvoroçado
Tumultuar em convulsão agreste.
Senhor: quedas e ais, tive-os de sobra!
Volta a fazer em mim a Tua obra,
Porque eu já desfiz tudo o que fizeste!



TERCEIRA MANEIRA



DESENHOS ASSIMÉTRICOS


DESENHO ASSIMÉTRICO

Quando a hora chegou, não tinha batido ainda
Em qualquer relógio:
Veio com a antecipação de uma fatalidade impaciente.
Chegou junto da porta
E, sem esperar nem convite nem escusa,
Entrou.
Nesse momento,
Os barcos que navegavam na liberdade dos mares
Criaram amarras sem explicação
Tão fundas como raízes;
Quebrou-se a linha ascensional de todos os vôos
E o Céu, que estava cheio de asas,
Ficou só cheio de penas.
Quando a hora chegou,
De tão inesperada,
Nem deu tempo a ninguém de perguntar
"Por quê?!"
Chegou e a Morte encheu a casa de silêncio,
Porque as suas mãos hirtas
Apagaram da face das coisas
O último sorriso da Vida.
Depois...
Depois tudo retornou a trajectória interrompida:
O Sol continuou o seu caminho
A caminho da aurora
Num ritmo compassado,
E o mundo continuou
E o mar continuou
E o Céu continuou,
Como se a hora
Não tivesse chegado.


ATITUDE

Não me deixes comigo a sós
Neste silêncio sem futuro,
A mim, que em tudo procuro
O eco matinal da Tua voz.
Não me deixes sem Ti nesta estrada deserta
Rodeada por traições e por mentiras,
A mim, que adivinhava na flor recém-aberta
O vestígio dos dedos com que a abriras.
Senhor: sem que eu nunca o saiba
E sem que o saiba a minha inquietação,
Faz que a Tua vontade caiba
Dentro da minha aceitação.
Bem vês que Te desejo com meus olhos carnais,
Com toda a minha humana secura
E que o impulso da minha alma não é mais
Que um movimento intenso de procura.
Dantes, quando inda não era escrava
Nem do desespero nem da agonia,
Em cada asa liberta Te encontrava,
Em cada nardo em flor Te conhecia.
Antes da minha cruz e da coroa de espinhos,
Iluminada ao Sol da maior das fés,
Eu seguia cegamente por todos os caminhos
Onde há dois mil anos puseras os Teus pés.
Só tinha fome de mais largos Horizontes
E uma sede imensa das Tuas palavras,
Ouvia a voz puríssima das fontes
E já sabia que eras Tu que me falavas.
Na luz rosada e azul do entardecer,
Se o vento sussurrava em oração,
Era a Tua voz de Mestre a esclarecer
As dúvidas da minha imperfeição.
Mas agora que naufraguei num oceano de escolhos
E que vou sossobrar neste abismo profundo,
Já não diviso o fogo ardente dos Teus olhos
Nos milhares de Estrelas com que vias o mundo.
Senhor: olha que eu estou sem guia e sem farol
E não posso fugir deste fatal remoinho.
Se for preciso, acende um novo Sol
E ilumina com ele o meu caminho.
Bem vês que Te procuro entre as minhas tristezas
E reconheço a Tua omnipotência,
Mas olha para mim e põe as incertezas
Onde não chegue nunca a minha inteligência.
Vê quanto sofro e quanto já sofri
E, embora o mundo seja muito vasto,
Mostra-me o atalho que reconduza a Ti,
Que em qualquer parte existe a estrada de Damasco.
Se a todos criastes iguais,
Dá-me também a mim um pouco de alegria,
E que não seja apenas para os mais
Que derramas no Céu as pétalas do dia.
Quando, na solidão, a minha dor imensa
Se liquefaz em turbilhões de pranto,
Mostra-me a exactidão da Tu presença,
Que chorar junto a alguém, já não dói tanto.
Eu tenho um coração que só deseja amar-Te
e aquecer-se no amor que em Tua alma desponte.
Eu não me canso nunca de buscar-Te,
Tu é que não consentes que Te encontre.
Sinto-Te cada vez mais longe e mais esquivo,
Mais além da minha alma torturada,
Que ante a impaciência dum desejo afirmativo
Encontro a negação duma porta fechada.
Olha a vida que tenho e que verga na haste,
Esta vida sem flor, triste e agreste,
Que é Tua, porque Tu é que a geraste
E minha, porque Tu é que ma deste.
Meu Senhor e meu Deus: eu sei que não sou nada.
Que sou menos que a pedra mais singela.
Mas pequena é a Hóstia consagrada
E Tu cabes inteiro dentro Dela.
Atende-me, Senhor! Que a Tua maravilha
Transforme em luz a dor de cada ai.
Eu bem posso pedir, porque sou filha,
E Tu deves ouvir-me, porque és Pai.



SÍNTESE TRÁGICA

"...E depois, meu Irmão?
"Depois,
A Morte nunca perdoa
Quando somos dois."

"Em seguida..."
"...Cerrou-se de todo a bruma,
Que a alma não tem mais Sol
Quando volta a ser só uma."


INICIAÇÃO

Não! Não cantes ainda
Porque ainda não choraste.
Primeiro é preciso
Que chores todas as lágrimas
E vivas todas as amarguras;
Que saibas de cor o gosto
Das noites sem luar nem sono;
Que te não seja estranho o sabor
Dos dedos convulsos de desejo e de impossível.
Não! Não cantes ainda!
Tu, que sabes do caminho das lágrimas,
Se no teu rosto jovem
As lágrimas não abriram caminho...
Se a tua voz nunca se quebrou num soluço
Deixando interrompido o sorriso começado...
Não! Não cantes ainda!
Sofre! Chora! Pragueja! Grita! Uiva!
Depois, só depois e de todo o teu ser,
CANTA, seja qual for o tom,
Que só então tu poderás compreender
Como cantar é bom!


A MONDA DO ARROZ

Sol a Sol. Troncos encurvados.
Rostos na sombra quente do chapéu
Chorando lágrimas de suor.
Aqui é que o Homem quase toca o Céu.
Aqui é que o mundo é maior.
Pés firmes enterrados lodo dentro.
As mãos lá vão cumprindo o seu destino.
E nas veias um sangue inda mais quente
Que o Sol a pino.
"Água!" E o grito alarga numa longa espera.
E os beiços gretados, já mal fazem doer.
E o Sol totura, não desiste, quase ulcera...
Aqui é que a sede tem razão de ser!
Impertubàvelmente calmo,
O vale espraia-se a perder de vista
Num braseiro que vento algum destrói.
E o Homem vence a terra palmo a palmo
E não sente sequer orgulho na conquista
Porque nem mesmo sabe que é herói.
O dia caminha e o Sol é constante ameaça
De calor e de secura.
E o esforço aumenta, quase a transbordar da taça...
Aqui é que o Homem ultrapassa
A sua própria altura!
"Água!" E a voz é mais soturna e rouca
E o grito mais profundo,
Como se para aquela sede louca 
Fosse pouca
Toda a água do mundo!
O Céu, impiedoso, é dum azul sem gelha.
Os canteiros do arroz são oceanos de escolhos.
E o Homem, alucinado, vê a terra vermelha
Porque o Sol do meio-dia lhe pegou fogo aos olhos.
Além, os sobreirais de sossegadas ramas
Estendem no brasido do chão
A frescura apetecida duma alfombra.
E o Homem, de corpo e alma em chamas,
Resiste à tentação
E ao convite da sombra.
"Água!" E a mente em sonhos prolongados
Vê fontes e lagoas e represas.
Mas a água quando chega aos lábios inchados
Sabe a tojos queimados
E a brasas acesas.
E as horas arrastam-se e amargam como fel
Eternizando o drama:
Mãos cumprindo um destino cruel,
Pés descalços calçados de lama.
E a vida, amanhã, não é melhor nem pior:
Mais alguns metros conquistados
À terra mole
E os mesmos rostos chorando suor
E os mesmos troncos cada vez mais curvados
De Sol a Sol.



E ASSIM SERÁ QUANDO "ELA" VIER...

Um dia, também para mim há-de chegar
A Hora por que todos esperam.
Ela virá transbordante de Eternidade,
E presa da mais lúcida certeza,
Há-de gravar no Ilimitado absoluto
A curva limitada do meu último gesto.
Então as minhas pálpebras se fecharão
Num cansaço de luz
E todo o meu ser repousará
Da luta sem resolução duma íntima procura.
Será inútil que depois os dias cheguem
E as noites partam.
As minhas mãos, inertes a todos os contactos
E penetradas da ausência de tudo,
Nada mais serão do que uma sombra
Que o Tempo vai projectando
Cada vez mais alongada na distância.
Nesse dia, quando eu partir de mim
Ao encontro de mim,
Não importa que os meus passos
Não tenham ainda concluído
O caminho da Vida:
Talvez a Hora me traga umas asas
Com a antecipada trajectória do vôo...
Depois, tudo se vestirá
Da aparência das coisas inadiáveis:
O mundo a girar na órbita dos mundos,
O Sol a acender e a apagar Estrelas
E as minhas pálpebras irremediàvelmente fechadas
Num cansaço de luz...




ENTREACTO

Porque em mim existe um frio de morte,
Desenhei na quietude do meu sangue
O recorte assimétrico duma labareda.
Porque os lábios, os sentia gretados de sede
E de ausência de recalcadas ternuras,
Humanamente sonhei com efervescências de mosto
E generosidades de vinho novo...
Mas hoje que me queima a minha própria chama
E o vinho que não bebo me envenena,
Quem me salva do drama
Que eu mesma pus em cena?



MEDO
                    Para Júlio Dantas

Tudo, tudo, menos este silêncio que sabe a morte.
Este silêncio violento
Que se enrosca em tudo,
Nas coisas e nas almas,
Nos músculos e no pensamento.
Este silêncio que aperta como um nó cego
E a cada esforço de libertação
Ainda mais aperta.
Este silêncio que desesperadamente
Deixa a casa deserta...
Deixa a vida deserta...
Deixa a alma deserta...
Tudo, tudo, menos este silêncio que sabe a morte.
Antes ouvir os uivos dos chacais
E as maldições do vento,
Do que este silêncio que se enrosca em tudo,
Nas coisas e nas almas,
Nos músculos e no pensamento.
Vou sair para a rua.
Hei-de vencer a noite
E a passividade das Estrelas
E a solidão e as ruas silenciosas,
Também hei-de vencê-las.
Meus gestos quebrarão este sossego.
Hão-de ser tão veementes os meus passos,
Que este silêncio que sabe a morte
Há-de partir-se aos pedaços.
E hei-de acender luzes
Em todas as janelas
E abrir todas as portas.
E hei-de dar alma e vida
À muda quietação das coisas mortas.
E sacudirei as árvores felizes e adormecidas
E os pássaros adormecidos nos cimos do arvoredo
Com tanta violência, tanta,
Que as raízes despertem uivando com medo.
Tudo, tudo, menos este silêncio que sabe a morte!
E andarei por todos os jardins da cidade,
Imperiosa como o destino e activa como o lume.
E a minha sombra fará tanto rumor,
Que o silêncio adormecido nas corolas
Há-de gritar de perfume.
Prefiro que as rosas chorem de medo
E solucem os cravos num lamento,
A ouvir este silêncio que se enrosca em tudo,
Nas coisas e nas almas,
Nos músculos e no pensamento.
E pisarei o pó de todos os caminhos,
O pó, que a tudo se sujeita e a a tudo adere,
E alucinada de silêncio
Obrigarei as pedras a cantar
Nem que seja um "miserere".
E o silêncio da noite majestosa
Gerado em mil milhões de Infinitos,
Há-de vergar-se ao meu desejo,
Esburacado de sons
E fremente de gritos.
E sem pensar em prémios ou castigo,
Na mais apocalíptica desordem,
A Natureza inteira há-de gritar comigo
Até que Deus nos oiça
Ou que os mortos acordem!


PEQUENA SINFONIA DUMA MANHÃ DE MAIO

Completamente em vão!
Fecho os meus olhos, fecho,
Para que não vejam este Sol
Que insulta a noite
Que eu trago no fundo.
E, ó desespero imenso!
Ó intentos falhados!,
É tudo em vão porque este Sol
É tão humanamente intenso,
Que até se vê de olhos fechados!


RAPARIGA DE PRAIA

Rapariga de praia, sentada na areia,
De olhar de vestal,
De cabelos revoltos de maré-cheia
E dentes mais brancos que as pedras de sal;
Rapariga singela e virgem de mágoa,
Que tens nas artérias o fluxo do mar
E na alma salgada uma pureza de água
Por navegar;
Rapariga morens, de chita vestida,
Que nunca sonhaste com outras paisagens
E que ainda vês o oceano da vida
Isento de náufragos e de viagens;
Rapariga linda quando o luar brilha
E apaga no Céu qualquer outro astro;
Corpo harmonioso de harmoniosa quilha
E ao mesmo tempo ercto como erecto mastro;
Rapariga honesta, de bravio jeito
E seio ondulante como o grande mar,
Que trazes ainda escondido no peito
Ilhas por descobrir e cabos por dobrar;
Rapariga inculta, de saia redonda
E lábio sadio
Que distingues no mar a primeira onda
Ainda a saber às margens do rio;
Rapariga rude, queimada dos ventos,
Sem gestos pensados, sem mãos de fidalga,
Mas que tens na graça dos teus movimentos
Restos de sereia e qualquer coisa de alga,
Quem me dera a mim ter a tua sorte
E, sem saber ler nem saber sonhar,
Esperar longamente que viesse a Morte

Sentada na areia, em frente do mar!


POEMA DO MOMENTO SEM CONTESTAÇÃO

O silêncio da noite caminhava a par
Do mais íntimo silêncio.
Fechado o círculo da calma absoluta,
Nada mais restava além da expressão anódina
Das atitudes impostas pelas mãos do sossego.
Barco sem quilha e sem rumo
A navegar num oceano ermo de cais,
O sonho ficara estagnado
Nos gestos suspensos
Sem retrocesso nem realização.
O momento erguia-se para além dos Tempos,
Eterno e vertical.
Não sei que vaga música ficara adormecida
No perfil hesitante dos recortes longínquos.
Sei que ouvia latejar os acordes emudecidos
Duma harmonia que a lei do Sol impusera
Ao ritmo glorioso da manhã realizada.
Mas o silêncio da noite insistia
E tornava impossível qualquer tentativa de luz.
Então fechei os olhos para a intenção do dia a germinar
E, cega de mim,
Deixei-me adormecer no silêncio da noite
Como todas as outras coisas
Que a noite adormecera de silêncio...


ROMANCE

A folha desistiu do intento da vida.
Sem que nenhum vento a forçasse,
Desprendeu-se e caiu.
Depois, a escorrer seiva e remorso,
Ficou acorrentada ao chão
A ver como as outras eram felizes...
E quantas almas como a folha antecipadamente morta!
Quantas almas que ficam amarradas à margem
Vendo as outras a caminho do mar
E que, tendo um medo louco de partir,
Só não lhes faltou coragem
Para ficar!



REQUIEM

Ó meus Irmãos, vinde chorar comigo!
Acaba agora mesmo o Sol de naufragar!
Debruçou-se do Céu e, sem um grito,
Caiu ao mar!
Desde manhã que o mar o atraía,
Como um apelo forte.
E assim passou o dia
A caminhar de encontro à própria morte.
Por que seria que o Sol, sem hesitar,
Se lançou no mar salgado?
Só se julgava que o azul do mar
Era Céu continuado...
E assim mergulhou as formas redondas,
Luminosas e perfeitas,
Porque acreditou que as ondas
Eram nuvens liquefeitas...
E a cegueira foi tão louca e singular
Que, apesar de não terem lumaréu,
Pensou que as estrelas do mar
Tinham caído do Céu...
A terra que o via desde a aurora
Avançando no trágico resvalo,
Ainda estendeu mais os cabos pelo mar fora,
Mas não consegiu salvá-lo.
A própria serra, em longes desiguais,
De pele em flor e coração de mármore,
Foi em vão que lhe fez dramáticos sinais
Com as mãos verdes de cada árvore.
E o vento bem lhe gritou:
"Sol: repara, tem cuidado..."
Mas o Sol não se importou
E lá morreu afogado!
E, já depois de morto, num gesto reverente,
As espumas, talvez até com mágoa,
Envolveram-lhe o corpo ainda quente
Num grande lençol de água.
E é tão sincera a dor presente
Que, embora de olhar enxuto,
A terra e o Céu, lentamente,
Estão a vestir-se de luto.
E a noite amargurada, mas sem pranto
- Que lágrimas, vergonha é vertê-las -
Vestiu ao Céu um negro manto
Esburacado de Estrelas.
E em meio de caladas amarguras,
As areias silenciosas, a folhagem que não bole,
Os perfumes, os rios, as planuras,
De alma elevada às Alturas,
Rezam por alma do Sol.

E todos vós, os que habitais o mundo,
Monges, poetas, sátiros, pagãos,
E que inda há pouco vistes o Sol moribundo,
Num movimento uníssono e profundo,
Vinde chorar comigo, ó meus Irmãos!!!


POSIÇÃO

Morte que fosse! Antes a Morte
Do que este ar tépido de coisa nenhuma.
Mesmo que fosse Vida! Sempre seia um caminho
Para o sonho passar.
Fosse o que fosse! Tudo, menos a atonia
Duma hora assexuada.
Tudo: Estrela há pouco acesa,
Fogueira a arder sem lenha...
O que importa é que seja uma certeza
Ou que vá ou que venha!


ALTURA CONSEGUIDA

Agora, deixem-me olhar a Vida
Com estes olhos que encontrei de novo...
Deixem-me atravessar o mundo
Com estes passos renascidos
Do cruzamento dos mais diversos caminhos...
Deixem-me colher os frutos
Com estas mãos que inutilizaram as sementes
No pavor secreto de qualquer possível maçã...
Deixem que me esqueça da certeza do Tempo.
Quero viver a presença da Hora que o Destino trouxe
Sem perguntar aos minutos que ainda tenho para viver
Quando é que o Destino a leva...


TEIMOSIA

Vieram as noites sem sonhos nem Estrelas.
Vieram as Estações com as mãos carregadas de frutos,
De neves e de perfumes.
Vieram as esperas sem resolução,
Os desesperos sem vantagem,
As raízes que se afundavam hora a hora
No medo de que as flores viessem à superfície...
Depois, foi a Morte que chegou
E com ela a inutilidade da existência.
Mas apesar da queda há muito pressentida,
Deste mal que é morrer sem ser morrer,
Não desistiu a Vida de ser vida
Nem eu de ser!



POEMA DA NOCTURNA PURIFICAÇÃO

No mistério da noite ainda a realizar-se,
Unjo as mãos de silêncio e de Estrelas acesas
E sinto escorrer entre os meus dedos
O vago contorno duma pureza reconquistada.
No sossego da noite para depois do Tempo,
É tão verdadeira a inocência da intenção,
Que as minhas mãos tocam a candura da hora
Para além do consentimento de todos os limites.
Na eternidade da noite a latejar de asas adormecidas
E de sementes buscando ignoradas funduras,
O luar veste-me as artérias de estranhas confissões
E as minhas mãos ficam brancas
Como lírios que nenhum olhar profanou.
Agora que tudo em mim está puro de harmonia
- Que a alma o grita e o sangue mo repete -
Agora tenho mãos para colher o dia
Que a noite há tantas horas me promete.



A ÁGUIA MORTA
               Para o José Manuel

Na fogueira da tarde
- O Sol acendia brasas -
Segura da grandeza do teu vôo,
Tu voavas sem um grito.
O Céu era infinito,
Talvez pouco maior do que as tuas asas.
Tu olhavas do alto
E comungavas de todos os destinos,
De todas as fragrâncias,
Mas alheia ao limite dos caminhos
E à impossibilidade das distâncias.
A terra - que as tuas asas não compreendiam -
Florida mas subjugada
Por sonhos já cumpridos,
Era um abismo onde havia água estagnada
E passos perdidos.
E tu, embrulhada em azul e alegria,
Arqueavas as asas altaneiras
E transpunhas as nuvens conquistadas,
Que a tua liberdade não conhecia
O marco das fronteiras
E a sujeição das estradas.
A vida, para ti, brotava das Alturas silenciosas
Onde a vida é maior
Porque não anda de rastros.
Tu não sabias nada do nascimento das rosas
Mas sabias de cor
Como floriam os astros.
No Céu pouco distante,
Não conhecias voz que não fosse
O silêncio das nuvens indefesas.  
Só a noite falava a linguagem cintilante
Das Estrelas acesas.
E era uma orgia de tintas e de intenção
Quando a manhã inquieta
Se transmudava em dia,
E apontava as asas em ascensão
À linha recta
Que ao Sol te conduzia.
E tu subias, num vôo deslumbrado
-Longe da terra mesquinha e rasa -
Por um caminho ignorado
Levando Sol entornado
Na curva de cada asa.
Depois, tudo foi bem calculado
Na ensaguentada luz do entardecer:
Um tiro e uma dor, que de tão rápida,
Nem te chegou a doer.
As nuvens tornaram-se roxas, verdes, amarelas,
Num tom que em sítio algum medra.
E fechando as asas inúteis e paralelas,
Tombaste como uma pedra.
Nenhum pensamento consciente
Mostrou a verdade
Aos teus olhos cobertos por um denso véu.
Apenas pressentiste vagamente
Que naquele momento de maldade
Tinha acabado o Céu!


SEGUNDO POEMA DA ÁGUIA MORTA

Agora está imóvel sobre um tronco morto.
Já não se lembra da cor do Céu no Verão
Nem do Infinito apagado.
Mãos humanas sem piedade nem direcção
Abrilham-lhe as asas num vôo parado.
Olha em frente paisagens incriadas
Para lá da distância, muito para lá,
E tem as penas metòdicamente arrumadas,
Essas penas inertes
Que o vento nunca mais revolteará!
A cabeça ergue-se insubmissa,
Pronta para a batalha,
Mas numa altivez postiça,
Toda feita de palha.
Ali a puseram mãos impuras
Completamente vãs,
Longe de qualquer porto.
Ai! a volúpia das Alturas!
Ai! a vertigem das manhãs!   
Agora está imóvel sobre um tronco morto!
Há qualquer coisa que não ilude
- Misto de inconsciência e de pecado -
Nessa falsa atitude
Com que as garras se prendem ao tronco mutilado.
Talvez seja essa expressão fingida
Que eu não sei se é profundamente calma,
Se revolta de não o ser...
Talvez esse ultraje à própria vida
Que faz doer dentro da alma
E lhe roubou o direito de viver.
Sei que é um grito o seu vôo interceptado
- Dor da cinza já fria a lembrar-se das brasas.
A noite veio, nem ela sabe de que lado,
E nunca mais teve Sol entornado
Na curva das asas.
E aqueles olhos mentidamente vivos
Que eram agudíssimos e vários
E que a morte parou...
Cegos! Cegos e cativos,
Aqueles olhos extraordinários
Que nenhum Sol cegou!
Porque lhe dava o ninho e o conforto,
A terra era linda e era suave:
A intenção dos homens é que foi má!
Agora que está imóvel sobre um tronco morto,
Onde estará a sua essência de ave
E a sua alma de pássaro onde estará?
Que fizeram da sua liberdade?
Por que a prenderam num quarto sombrio?
E ali há-de passar a Eternidade
A gemer de saudade
Por um Céu que a sua morte deixou vazio.
E agora que está imóvel sobre um tronco morto,
Sem pena,
Sem ira,
Totalmente absorta
Em visões incertas,
Tenho medo de olhar a águia morta
Porque há não sei o quê que apavora e condena
Naqueles olhos cheios de mentira,
Naquelas asas falsamente abertas!  


RELÓGIO DE SOL

O instante bateu, enfim, no coração do Tempo!
Trazia a envolvê-lo um manto de ansiedades
Humanamente certas.
Veio do fundo da mais funda inquietação
Ainda trémulo do momento da partida.
E já seguro do alvoroço da chegada.
Veio por uma estrada que os séculos abriram
A caminho da Eternidade.
Chegou e com ele a incógnita dum destino
Que se devia cumprir sem revolta nem explicação.
Das mãos intemporais caídas ao longo  
Do corpo inexistente,
Escorria o sangue dos mistérios por desvendar.
Dos olhos, que pálpebras nenhumas enchiam de vazio,
desprendia-se a realidade das formas incompletas
Por falta de contorno a definir-lhes a exactidão.
Tudo nele era um absurdo de incerteza
E uma certeza confirmada pela sua própria presença.
De longe, de qualquer mundo isento de órbita,
Chegava a vibração de distâncias impercorridas.
E assim o Instante bateu no coração do Tempo,
E, depois de latejar no rosto da superfície,
Diluiu-se no silêncio das coisas acontecidas... 


FATALIDADE

O Sol, foi a atencipação da noite que o cegou.
As rosas, as prematuras mãos do Outono.
Que as interrompeu.
O meu sangue, uma exigida frieza
Que lhe sufocou os ímpetos de aceleradas viagens.
Brumas cerradas por extensões de mim!
Ó corpo esquivo
Caído de bruços,
Quase sem ser!
E vivo, vivo, vivo,
Que não tenho na vida outro recurso
Se não viver!     



 ALGUÉM...

Alguém bateu à minha porta
E ficou à espera...
Não sei se foi um perfume,
Se um bater de asa...
"Vida: vai dizer à Primavera
Que não estou em casa."
E bateram outra vez...
Foi uma pancada mansa,
Dada com mãos de Porvir...
"Vida: vai dizer à Esperança
Que acabei de sair."
E novamente bateram!
E todo abriu numa flor
O jardim que eu não semeei...
"Vida: vai dizer ao Amor
Que ainda não voltei."
Mas uma pancada forte
Ficou vibrando no ar...
"Ó Vida: vai depresa e diz a Morte
Que pode entrar!"  



  ULTIMATO

Foi a exuberância do Sol
Que vestiu a minha alma dum luto maior.
Por que há certezas na gravidez dos troncos
E nos olhos dos que amam a Vida?
Por que latejam promessas de viagens
Até no desejo dos que não podem partir?
Por que há tanto, tanto dia,
Que não há sangue nem asas nem jardins
Que admitam a hipótese da noite?
E por que é que eu me sinto ímpar
E a claridade bate na minha vida
Sem penetrar na Morte que me anoiteceu?
Ah! Deus que vês o mundo e os meus Irmãos e a mim,
Agora tens que escolher,
E ou apagas o Sol,
Ou me deixas morrer! 


VIDA INTERIOR

Porque me perco a olhar a Lua,
Querem-me abrir as veias
Para a poesia correr a par do sangue...
Como se a flor colhida perdesse o perfume
No acto de ser cortada!
Como se a espuma do mar que o vento leva
Deixasse o sal no íntimo das ondas!
Aqui estão os meus dois pulsos,
Minha carne completamente nua.
Cortai! Abri-a em punhaladas certas,
Porque eu continuarei a ver a Lua
Com as veias abertas!


PALAVRAS À MORTE

Quando chegares, plena de intenção,
Trazendo nos olhos ausentes
Reflexos singulares
E nas veias existentes
A rebentação
Não sei de quantos mares;
Quando trouxeres o suspiro extremo
Nas mãos leais,
Entra devagarinho, sem aspereza,
Não por mim, que te não temo,
Mas pelos mais
Para quem serás sempre uma surpresa;
Quando chegares e contigo o esforço derradeiro,
Põe-me na boca o tom do amanhecer
Em vez da expressão-noite da vencida,
E mostra ao mundo inteiro
Que bem sabe morrer
Quem nunca teve jeito para a vida.


DESFILADEIRO

Dói-me daquela dor que não acaba nunca.
Daquela dor da flor que não dá fruto,
Da água que não tem sal.
Dó-me sem que ninguém possa valer-me
Nem com beijos nem com ordens.
Dia a dia, minuto a minuto, hora a hora,
A dor desce a todos os abismos
Que há em mim,
Além de mim
E aquém de mim.
Tudo me rui  e nada me constrói.
É que eu tenho uma alma, não sabiam?
E é justamente a alma que me dói!



EXAME SUBJECTIVO

Não acuso ninguém!
Só as minhas mãos têm preparado
Movimentos ascensionais
Ou quedas na vertical.
Quando grito,
É tão minha a voz, como a intenção de gritar.
Quando ando,
Os passos pertencem mais à minha vontade
Do que às exigências do caminho.
Quando nego,
É só a minha alma que mede a distância
Que separa o meu desejo da minha renúncia.
No meu sangue nasce todo o mal e todo o bem.
Só eu me começo e só eu me dou fim.
Meus Irmãos, homens ou deuses:
Se eu não acuso ninguém,
Quem vem salvar-me de mim?



ÂNGULO DESESPERADO

Por um caminho antecipado,
Foi que a Vida chegou.
O Sonho, quase diluído de espera,
Ficou sem defesa nem reacção.
O Tempo cavou um abismo no meu fundo
- Que era na minha alma que a Vida impunha
E o Sonho ia cedendo.
Os meus olhos foram-se fechando
À realidade das coisas,
Mas abriam-se desmesuradamente
À promessa pressentida.
E tudo se confundiu e integrou tão no íntimo,
Que eu deixei de distinguir
Os gritos da vitória
Dos uivos da abdicação.
Mais tarde, "Ela" nasceu duma onda virgem de mar,
E, num movimento absoluto,
Submergiu o perfil do litoral.
E nada mais aconteceu!
Mas hoje! Agora que eu estou morta e vivo
- Que o mundo a isso me levou! -
Não haverá ninguém que me diga o motivo
Por que a Vida chegou?



IMPENITÊNCIA

Fui eu! Gritem ao mundo inteiro que fui eu!
Vão contar tudo às ondas
Para que a minha Verdade se eternize
Agarrada ao cais e às quilhas dos barcos.
Digam às sementes, digam!,
Para que um dia os rebentos verguem
Ao peso do segredo desvendado.
Afirmem que nada foi lenda!
Jurem-no ao Céu, à mais funda raiz,
Que nem a terra nem o Céu conseguem
Que eu me arrependa
De ter feito o que fiz!



ODE À TERRA

Não era depois de morta que eu queria voltar para ti,
Era agora!
Agora, que tenho a minha vida inteira para te dar.
Agora, que ergo a todo o seu tamanho
A verdade absoluta do meu ser.
Agora, que posso conduzir os meus passos conscientes
Para o oculto reino
Onde destinas os aromas
E permites os caminhos das raízes.
Era agora, que podia levar nas minhas mãos vivas
O peso dos gestos
Que a Morte me não deixará concluir;
Que podia levar nos meus olhos cheios de paisagens
A beleza de todas as presenças
E o sofrimento de todas as distâncias;
Que podia levar na minha boca ainda a realizar-se
A certeza das águas bebidas
E dos beijos sonhados.
Era agora, era agora!
Que importa que depois me abras os braços!
Se eu tiver os meus olhos já fechados,
Como hei-de ver os teus braços abertos?
Era agora e eu saberia levar comigo
A tragédia e a ventura dos homens e das coisas:
A ansiedade dos que esperam uma partida
Que o destino se esqueceu de tornar possível;
O desespero dos que aguardam uma chegada
Que o tempo não se lembra de fazer chegar;
Os êxtases dos santos;
As hesitações dos tentados;
O som do riso duma criança
Que ri pela primeira vez
E o grito das asas que batem
No derradeiro vôo.
Agora, que ainda sei de cor
O movimento das nuvens
Interrompidas pelas mãos do vento.
Agora, que iria dar notícias à humildade das raízes
Da magnificência das ramarias.
Agora, que tenho nos olhos
A medida exacta das montanhas
E no coração
A exacta grandeza do meu amor sem medida.
Agora, que eu podia levar em mim
A alucinação das noites mal dormidas
E o orgulho dos maiores triunfos;
A plenitude dos oiros derramados ao meio-dia
E o esplendor da minha própria vitalidade.
Era agora, que eu queria voltar para ti
E não depois de morta!



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