(SONETOS E POEMAS, Maria Helena Duarte de Almeida (Maria Helena), Portugália Editora, Lisboa, 1946, 78 páginas)
Capa desenhada por Edgard Duarte de Almeida
Ex-libris desenhado por Álvaro Duarte de Almeida
ASCENSIONAIS
PARA TI, MEU AMOR, E PARA TI,
MEU QUERIDO FILHO, SOL
DA MINHA VIDA, POLOS
DO MEU MUNDO,
MEU PROMETIDO E ALCANÇADO
CÉU...
Sonetos
Ascensão
Mais para além do mundo e desta vida,
Para além da ilusão de ter vivido,
Minha alma, numa ânsia indefinida,
Há-de-se erguer, depois de ter partido.
Mais para além de toda a dor sentida
Que do meu coração fez um vencido,
Há-de brotar de mim uma outra vida
Para além do que sou e tenho sido.
E hei-de fugir da vida que de rastros
Me traz cativa a namorar os astros
Numa saudade imensa do proscrito.
E hei-de ir além do Céu de azul cobalto,
E hei-de subir, subir, tanto e tão alto,
Que me perca nas brumas do Infinito!
Eu também creio!
Eu também creio! Creio ardentemente
Em Deus Nosso Senhor, na outra vida,
Na Ascenção desejada e prometida,
Na Sua Essência sempre em nós presente,
Creio com toda a fé de quem é crente
Que a nossa alma há-de erguer-se, redimida,
E alcançar o Infinito na subida,
"Até viver em Deus eternamente..."
Mas não creio na vida deste mundo
E não vejo o motivo são, fecundo,
Daquele que no mundo espera e crê.
E não achando um fim ao meu anseio,
E vendo-me no mundo em que não creio,
Eu pergunto a mim mesma: para quê?
Inquietação
Que força é esta que me traz cativa
E me fez desviar do meu caminho
E deixou no meu peito em desalinho
O pungente sabor da carne viva?
Por que é que na minha alma alegre e esquiva
A ansiedade e o temor fizeram ninho,
E tenho as mãos da palidez do linho,
E passo horas e horas pensativa?
Por que me bate forte o coração?
Por que soluça a minha inquietação
Se à minha voz febril ninguém responde?
Porque sigo uma estrela malfazeja,
Buscando um bem que eu não sei bem qual seja
E que um dia hei-de achar, não sei aonde...
Perdido rumo
Naufraguei em mim mesma. Andei perdida
No encapelado mar do pensamento,
Tanto busquei a diretriz à Vida,
Para nada encontrar a meu contento.
Busquei-a, numa ânsia mal sofrida,
Na Força, na Beleza, no Talento...
Mas do combate de tão dura lida
Só me resta cansaço... e desalento!
Num desejo inocente, quase etéreo,
Quis provar os segredos do Mistério
— Árvore santa de vedados pomos.
Mas desse ataque vão à Divindade
Só me ficou por única Verdade
A certeza do nada que nós somos!
?
Quem sou eu? Donde vim? Para onde vou?
Quantas eras por mim foram vividas?
Quem sabe se no mundo aonde estou
A minha vida é fruto de mil vidas?
Antes de eu ser, que foi que se passou?
Tive horas de prazer, sem fel, sentidas,
Ou nesta dor que a vida me enlutou
Há lembranças de então, incompreendidas?
Minha alma é imortal, não terá fim.
Mas quem viveu com ela antes de mim,
Quem viverá depois de eu ter morrido?
Quem sou eu nesta luta sempre viva?
O átomo dum átomo, à deriva
Na maré alta do Desconhecido.
Naufrágio
Ao mar da vida lancei meu batel
Na conquista das terras da Alegria
Aonde habita a Deusa — Fantasia
E a vida tem um gosto bom a mel.
Mas as ondas galgaram em tropel
O meu pobre barquinho que rangia
Nas desvairadas mãos da ventania
Como se fora feito de papel.
Já sem remos, nem bússola, nem velas,
Sob a luz indistinta das estrelas,
Fiquei perdida e só na noite escura.
E só mais tarde vi — tempo acalmado —
Às desoladas praias da Amargura.
Sonho eterno
"Ergue-te, ó Alma Inquieta, do abismo
Aonde mergulhaste o coração."
Tens que viver com fé, com heroísmo,
Embora a vida seja uma traição.
Sonha, que o sonho dá-nos a ilusão
De vivermos num mundo de optimismo,
Pois neste inferno de cruel egoísmo,
É tanto vida o sonho, como o pão.
Abre as janelas da alma par em par,
Dá largas ao teu sonho em ânsia infinda
Numa ânsia que o tempo não levou.
E quando a mocidade nos deixar
Que bom envelhecer vivendo ainda
Das saudades que o sonho nos deixou!
Indefinido
Se eu soubesse contar isto— que sinto,
Toda esta mágoa, toda esta ansiedade,
Verias, meu Amor, que não te minto
E como pesa a cruz desta verdade.
Meu pobre coração, triste, faminto,
Gosta do pão amargo da saudade.
E é nos males da vida — que eu pressinto —
Que ele bebe o tormento que me invade.
Ó meu Amor! Se tu pudesses ver
Que dor é esta que se ri de mim,
Porque vive minha alma atormentada...
Talvez seja receio de morrer...
Talvez desejo de chegar ao fim...
Quem sabe lá? Talvez não seja nada...
Ansiedade
Agosto. Sol em brasa. Nos caminhos
Uma poeira de luz envolve tudo.
Há maciezas fôfas de veludo
No chão onde floriram rosmaninhos.
Dormem as velas brancas dos moinhos
Num pesado torpor, tranquilo e mudo.
E na doirada luz que envolve tudo,
Rezam as aves no altar dos ninhos.
Calam-se as fontes. Mesmo o rouxinol
Sob a carícia lânguida do Sol
Calou seu canto amargo de saudade.
Tudo se acalma nesta tarde calma...
Só na tormenta imensa da minha alma
Não se acalma esta febre imensa de ansiedade!
Ignorância
Não sei que anseio é este que me invade
Quando minha alma quer o que não tem.
Não sei bem se é desejo... se é saudade...
Se mal que vai... se lágrima que vem...
Por que sinto sem fim esta ansiedade
— Mortalha negra do meu claro bem...
Por que soluça a minha mocidade
Se me sinto feliz, como ninguém...
Numa luta feroz que não se vê,
Procurando as origens do "porquê",
Num esforço que a calma lhe roubou,
Minha alma vive a combater, sozinha,
Esta alma que eu não sei para que é minha
Nem porque foi que Deus me destinou.
Contrasenso
Alongo os olhos pelo mundo fora
E vejo todo o mal que o mundo encerra:
ódios, inveja, lágrimas e guerra
Num cortejo infindável que apavora.
Sem se acalmar, é um vulcão a terra
Vomitando metralha a toda a hora.
E enquanto meio mundo sofre e chora
O outro meio, imponente, manda... e erra!
Se esta vida é um caos voraz, profundo,
Como deve ser bom deixar o mundo
E no sono da morte adormecer.
...................................................................
Mas apesar da vida ser impura
E de no mundo haver tanta amargura...
Gosto perdidamente de viver!
Hora negra
Quando eu morrer, Amor, não tenhas pena.
Há-de acabar de vez esta agonia
Que sem cessar minha alma desfazia
No lento corroer duma gangrena.
Quando findar a vida que envenena
E para mim nascer o eterno dia;
Quando for como a neve branca e fria
A minha pele ardente de morena;
Quando deixar o mundo onde não vivo,
Então minha alma livre, sossegada
— Quando mais nada já houver de mim —
Será como o perfume doce e esquivo
Que se evola da flor já desfolhada
Na calma luarenta dum jardim.
Mentira!
É mentira o que diz o pensamento
Porque é mentira o que o norteia e cria.
Mentira toda a dor do sofrimento
Como é mentira o riso da alegria.
Até no próprio Céu há fingimento
Porque a luz que nos doira e alumia,
Quando cai do azul do Firmamento
É só a noite a imaginar que é dia!
Mentira todo o amor que a carne inspira,
A comunhão das almas, é mentira,
Mentira que esta vida seja um bem.
No meio deste abismo vil, sem fundo,
A única verdade que há no mundo
É eu não ser igual a mais ninguém!
Consummatum est!
(Numa hora de desalento)
Nunca mais faço versos, nunca mais!
Hei-de extinguir em mim a ânsia antiga
E a vida olhar como uma boa amiga
Obedecendo às suas leis fatais.
Hei-de afazer-me às horas vãs, banais,
Num clima que não cansa e não fatiga,
Feliz por ser "a boa rapariga"
Sem desejos, nem sonhos, nem ideais.
Hei-de viver no mundo resignada,
Com um sorriso a iluminar-me a face,
Procurando outro abrigo em outros portos:
Embora a alma acesa, desvairada,
Se revolte e esbraveje e despedace
Sob a injustiça dos meus sonhos mortos!
A alguém que me pedia mais versos
Mais versos para quê? Não sou ninguém.
Apenas a minha alma insatisfeita
Busca encontrar aquilo que não tem
Dentro desta prisão, lúgubre e estreita.
E tenho que viver feliz, sujeita,
Sem pensar no que existe para Além,
Quando a alma, insubmissa, não se ajeita
A esperar em vão o que afinal não vem.
E tento erguer-me à região etérea
Acorrentada ao jugo da Matéria
Que escraviza esta ânsia de ascender.
E choro e grito e odeio e desespero
Vendo aquilo que sou e que não quero
E o que seria, se pudesse ser!
Suavidade
Chego de longe, Amor, venho cansada.
Regressei das distâncias da amargura
E venho triste e só — alma penada —
Pedir-te um bocadinho de ternura.
Trago a alma sedenta, esfarrapada,
No delírio da sêde que tortura,
Porque as fontes que vi na minha estrada
Não tinham água para tal secura.
Venho em busca da calma que perdi
Quando um dia ansiosa me parti
Em busca de ilusões pelos Espaços.
E enquanto eu for como um bébé doente,
Deixa-me adormecer suavemente
Na curva protectora dos teus braços.
Contradição
Que complicado e estranho ser o meu!
Às vezes canto e rio, descuidada,
Mas num momento a linda madrugada
Anoitece, inda mal amanheceu.
E em vão levanto os olhos para o Céu
Pedindo a Deus a calma desejada,
Porque me sinto exausta, aniquilada,
Da luta acesa no meu próprio Eu.
E ninguém compreende o meu tormento,
Porque se muda o riso num lamento,
Porque o pranto num riso se mudou.
E quanta vez até me desconheço!
Porque eu não sou aquilo que pareço
E não pareço o que em verdade sou.
Vanitas...
E julguei que não era igual aos mais!
E julguei que podia ser alguém
Quando a vida, ao passar, não se detém
E a todos dá o fel dos mesmos ais!
E pensei encerrar os meus ideais
Na torre de marfim do meu desdém,
Quando, afinal, a dor que a dor contém
Senti-a eu, por todos os mortais!
Presa dentro de si, de si ausente,
Na loucura de quem se encontra só
Entre as garras sangrentas dum conflito,
A minha alma sucumbe lentamente,
Entre o horror de ser um grão de pó
E a sêde de beber o Infinito!
Visão
Quem bateu? Quem gritou pelo meu nome?
Quem me turbou a vida sempre calma
Batendo às portas da oiro de minha alma.
Mostrando um loiro pão à minha fome?
Quem cruzou meu caminho e obrigou-me
A erguer da ansiedade a louca palma
E provocou em mim a luta incalma
Que o meu sossego queima e o consome?
Ó visão! Deixa em paz a minha vida!
Segue o teu trilho lúgubre ou risonho.
Foge de mim e perde-te no pó,
Que a minha alma insubmissa e incompreendida
No castelo fechado do seu sonho
Há-de ficar eternamente só!
Paradoxo
Que anseio é este que palpita em mim
E me faz desejar um sonho vão
E colocou ao pé da minha mão
Veneno perfumado com jasmim?
Que sucedeu, que me mudou assim
E me apagou as luzes da razão
E conduz o meu pobre coração
Para um fatal, desconhecido fim?
Ai mas que louca, ai mas que estranha eu sou!
Nesta luta que a calma me levou,
Bendigo o mal que me levou a calma.
Ó turbação febril, incompreendida:
Sendo um tormento que me gela a vida,
És uma chama que me aquece a alma!
Desengano
Ergui um lindo sonho, idealizado
Como o dogma sagrado de uma crença
Pensando ter uma alegria imensa
Se alguma vez o visse realizado.
Tão grande era o poder do sonho alado,
Que eu vivia sentindo-lhe a presença
E a minha alma quedava-se, suspensa,
Desse sonho tão lindo e desejado!
Assim fui caminhando pela vida
Até que, um dia, todo o meu empenho
Eu consegui, enfim, realizar.
Hoje, que é minha a Terra Prometida,
Em vez duma alegria imensa, tenho
Uma vontade imensa de chorar!
Mea Culpa!
Por que não hei-de ser igual aos mais?
Porquê, esta ansiedade de Infinito?
Porquê, este tormento de proscrito
Que à terra mãe não voltará jamais?
Quem responde nas noites sempre iguais,
Ao meu profundo e revoltado grito?
Quem vem abrir, nas trevas onde habito,
A porta às claridades matinais?
Por que hei-de olhar a vida em inimiga
E não achar a paz na crença antiga
Que ainda hoje é tudo para mim?
Por que hei-de o mundo olhar de olhos irados,
Se nem mundo nem vida são culpados...
...Se a culpa a tenho eu só, por ser assim!
Insatisfeita!
Tudo aquilo que tenho desejado
E que no mundo é lícito esperar
— Um companheiro, um filho, o pão, um lar... —
A mão do Omnipotente me tem dado.
Mas nas cinzas de um sonho que hei sonhado
Renasce um sonho ainda por sonhar.
E a minha alma, na ânsia de o alcançar,
Nunca mais lembra o sonho realizado!
Quando no mundo nada mais houver
Que o meu desejo possa apetecer
— Ó vida! Onde há destino igual ao meu? —
Por nova senda guiarei meus passos
E hei-de erguer para o Céu os frágeis braços
Na ânsia louca de alcançar o Céu!
Melancolia
Na hora triste do entardecer,
Fico-me a meditar profundamente
Enquanto o Sol, com febre, todo a arder,
Se envolve na mortalha do Poente.
Mas amanhã, nos tons do alvorecer,
O Sol perde o aspecto de doente,
E ébrio da própria luz e de prazer,
Volta a brilhar, mais límpido e mais quente.
E assim há-de ser sempre até "ao fim".
Mas o Céu triste que me cobre a mim...
Há-de manter-se triste como agora.
Ó Sol! Vê que destino tão diferente:
A tua Aurora nasce do Poente...
E o meu poente nunca tem aurora!
Dúvida
Tu, que conheces toda a minha vida
E tão bem sabes quanto sou feliz,
Explica-me esta ânsia mal sofrida
Que sinto na alma e o coração me diz.
Diz-me porque caminho entontecida
Em busca duma nova directriz,
Se a minha estrada é plana e está florida
De rosas, de crisântemos, de lis...
Tu, que sofres do mesmo sofrimento,
Bem sabes que não há maior tormento
Nem mal que se compare a este nosso.
Ai, diz-me então porque duvido assim.
Que luta é esta que se trava em mim...
Que eu não sei... que eu não devo... que eu não posso!
Lirismo
Quando a noite galopa, destemida,
E o mundo esquece a vida e seus cansaços,
Aninhei-me no berço dos teus braços
E também esqueci o mundo e a vida.
Passou o tempo inquieto, de corrida,
E a noite desmaiou pelos Espaços.
Tu, então, apertaste os meigos laços
E beijaste-me a boca adormecida.
Abri os olhos e oh esplendor divino!
Não vi a noite já com o seu cortejo
Mas um tom luminoso, matutino.
E eu fiquei sem saber — vê tu que louca! —
Se da luz da manhã nasceu o beijo...
Se o beijo amanheceu na minha boca!
Insónia
Sem parar bate a chuva na vidraça
Com seus dedos esguios e molhados.
(Pelas ruas, sombria, anda a desgraça
À procura de novos desgraçados.)
A luz, que até parece uma ameaça,
Mal se vê através dos cortinados.
Minha alma é como a luz, difusa e baça,
Macerando meus nervos fatigados.
E sinto a mágoa onde naufraga o mundo
Num mar de dor, caótico, profundo,
Sem bonança, nem tréguas, nem porvir...
Teimosa a chuva cai... Senhor! Senhor!
Se eu não posso valer a tanta dor,
De que serve ter alma pra a sentir?
Passeio primaveril
Havemos de ir os dois, manhã a abrir
Em pétalas de luz no Sol em flor,
Ver nos campos as rosas a sorrir
Numa aleluia de perfume e cor.
Mãos enlaçadas, olhos a exprimir
As delícias olímpicas do amor,
Até faremos parte, sem sentir,
Do encanto da paisagem em redor.
E ouviremos a música dos ninhos,
Doirados pelo Sol, toucados de hera,
Ébrios da luz rosada da manhã.
E havemos de entender os passarinhos
E com eles cantar a Primavera
Ao som da flauta idílica de Pan!
Manhã
Rompeu há poucas horas a manhã.
Num indomável cântico de orgia,
A luz sensual do Sol, quente e pagã,
Empresta o seu fulgor ao novo dia.
E na minha alma — que é da noite irmã —
Ao calor desse beijo que inebria,
Num homérico esforço de titan,
Vão entreabrindo as rosas da alegria.
E sinto a vida a fecundar-me toda
E o mundo gravitando à minha roda
No resplendor sem par desse arrebol.
Como se fosse um mito a minha cruz
E se a minha alma, grávida de Luz,
Tivesse dado à luz a luz do Sol!
Sonho vão
Procuro... nem eu sei o que procuro!
Espero... e como é vã a minha esperança!
Que sonho então é este, doce e puro,
Que quanto mais se quer, menos se alcança?
Pus nele toda a fé do meu futuro.
Dele viveu minha alma de criança,
Mas quando penso tê-lo mais seguro,
Mais a vida me rouba a confiança.
Vogando à toa, como que perdida,
Apertada nos braços da amargura
Que a escraviza, enlouquece e dilacera,
Minha alma vai perdendo o amor à vida,
Sem encontrar jamais o que procura,
Sem ver chegar o sonho por que espera...
Luz cinzenta
Embora a vida só me dê ventura
E passem os meus dias sem cuidados,
Sinto em meu coração toda a amargura
Que fere o coração dos desgraçados.
E nos meus versos tristes, sem frescura,
Onde há soluços roucos, desvairados,
Perpassa o fel duma íntima tortura
De dramas não vividos, mas sonhados.
Numa ansiedade que jamais se acalma,
A dor que se debruça na minha alma
Pondo aos meus ombros uma alheia cruz,
É como a luz cinzenta das procelas
Que mal trespassa os vidros das janelas
Mas que não deixa nunca de ser luz...
A Fonte
No meio das mais bravas penedias,
Num precipício de causar horror,
Um veiozinho de águas luzidias
Gritava ao Céu a dor da sua dor.
Nunca sentira as grandes alegrias
Dos infindáveis dias de calor:
Dar de beber às aves fugidias
Ou acalmar a sêde a uma flor.
E o fiozinho de água dolorida
Num sussurrar inútil e plangente,
Vai caindo, caindo, sem um bem...
Ó fonte! É como tu a minha vida:
Vai passando, passando inùtilmente,
Sem mitigar a sêde de ninguém!
Bendito
Bendito seja sempre o Criador!
Bendita seja a doce protecção
Que num arroubo de infinito amor
Derrama sobre nós a Sua mão.
Bendito Deus, que ao pobre pecador
Consola com a bênção do perdão
Dando o Seu Corpo enorme de Senhor
No mistério humildíssimo do pão.
Bendito Deus na Sua Cruz bendita,
Na voz do mar, na asa que palpita,
Na grandeza do Céu que prometeu...
Bendito Deus nas ervas dos caminhos,
Na luz do Sol, na mágoa dos espinhos,
No bem sem par da vida que nos deu!
Hora negra
Quando eu morrer, Amor, não tenhas pena.
Há-de acabar de vez esta agonia
Que sem cessar minha alma desfazia
No lento corroer duma gangrena.
Quando findar a vida que envenena
E para mim nascer o eterno dia;
Quando for como a neve branca e fria
A minha pele ardente de morena;
Quando deixar o mundo onde não vivo,
Então minha alma livre, sossegada
— Quando mais nada já houver de mim —
Será como o perfume doce e esquivo
Que se evola da flor já desfolhada
Na calma luarenta dum jardim.
Mentira!
É mentira o que diz o pensamento
Porque é mentira o que o norteia e cria.
Mentira toda a dor do sofrimento
Como é mentira o riso da alegria.
Até no próprio Céu há fingimento
Porque a luz que nos doira e alumia,
Quando cai do azul do Firmamento
É só a noite a imaginar que é dia!
Mentira todo o amor que a carne inspira,
A comunhão das almas, é mentira,
Mentira que esta vida seja um bem.
No meio deste abismo vil, sem fundo,
A única verdade que há no mundo
É eu não ser igual a mais ninguém!
Consummatum est!
(Numa hora de desalento)
Nunca mais faço versos, nunca mais!
Hei-de extinguir em mim a ânsia antiga
E a vida olhar como uma boa amiga
Obedecendo às suas leis fatais.
Hei-de afazer-me às horas vãs, banais,
Num clima que não cansa e não fatiga,
Feliz por ser "a boa rapariga"
Sem desejos, nem sonhos, nem ideais.
Hei-de viver no mundo resignada,
Com um sorriso a iluminar-me a face,
Procurando outro abrigo em outros portos:
Embora a alma acesa, desvairada,
Se revolte e esbraveje e despedace
Sob a injustiça dos meus sonhos mortos!
A alguém que me pedia mais versos
Mais versos para quê? Não sou ninguém.
Apenas a minha alma insatisfeita
Busca encontrar aquilo que não tem
Dentro desta prisão, lúgubre e estreita.
E tenho que viver feliz, sujeita,
Sem pensar no que existe para Além,
Quando a alma, insubmissa, não se ajeita
A esperar em vão o que afinal não vem.
E tento erguer-me à região etérea
Acorrentada ao jugo da Matéria
Que escraviza esta ânsia de ascender.
E choro e grito e odeio e desespero
Vendo aquilo que sou e que não quero
E o que seria, se pudesse ser!
Suavidade
Chego de longe, Amor, venho cansada.
Regressei das distâncias da amargura
E venho triste e só — alma penada —
Pedir-te um bocadinho de ternura.
Trago a alma sedenta, esfarrapada,
No delírio da sêde que tortura,
Porque as fontes que vi na minha estrada
Não tinham água para tal secura.
Venho em busca da calma que perdi
Quando um dia ansiosa me parti
Em busca de ilusões pelos Espaços.
E enquanto eu for como um bébé doente,
Deixa-me adormecer suavemente
Na curva protectora dos teus braços.
Contradição
Que complicado e estranho ser o meu!
Às vezes canto e rio, descuidada,
Mas num momento a linda madrugada
Anoitece, inda mal amanheceu.
E em vão levanto os olhos para o Céu
Pedindo a Deus a calma desejada,
Porque me sinto exausta, aniquilada,
Da luta acesa no meu próprio Eu.
E ninguém compreende o meu tormento,
Porque se muda o riso num lamento,
Porque o pranto num riso se mudou.
E quanta vez até me desconheço!
Porque eu não sou aquilo que pareço
E não pareço o que em verdade sou.
Vanitas...
E julguei que não era igual aos mais!
E julguei que podia ser alguém
Quando a vida, ao passar, não se detém
E a todos dá o fel dos mesmos ais!
E pensei encerrar os meus ideais
Na torre de marfim do meu desdém,
Quando, afinal, a dor que a dor contém
Senti-a eu, por todos os mortais!
Presa dentro de si, de si ausente,
Na loucura de quem se encontra só
Entre as garras sangrentas dum conflito,
A minha alma sucumbe lentamente,
Entre o horror de ser um grão de pó
E a sêde de beber o Infinito!
Visão
Quem bateu? Quem gritou pelo meu nome?
Quem me turbou a vida sempre calma
Batendo às portas da oiro de minha alma.
Mostrando um loiro pão à minha fome?
Quem cruzou meu caminho e obrigou-me
A erguer da ansiedade a louca palma
E provocou em mim a luta incalma
Que o meu sossego queima e o consome?
Ó visão! Deixa em paz a minha vida!
Segue o teu trilho lúgubre ou risonho.
Foge de mim e perde-te no pó,
Que a minha alma insubmissa e incompreendida
No castelo fechado do seu sonho
Há-de ficar eternamente só!
Paradoxo
Que anseio é este que palpita em mim
E me faz desejar um sonho vão
E colocou ao pé da minha mão
Veneno perfumado com jasmim?
Que sucedeu, que me mudou assim
E me apagou as luzes da razão
E conduz o meu pobre coração
Para um fatal, desconhecido fim?
Ai mas que louca, ai mas que estranha eu sou!
Nesta luta que a calma me levou,
Bendigo o mal que me levou a calma.
Ó turbação febril, incompreendida:
Sendo um tormento que me gela a vida,
És uma chama que me aquece a alma!
Desengano
Ergui um lindo sonho, idealizado
Como o dogma sagrado de uma crença
Pensando ter uma alegria imensa
Se alguma vez o visse realizado.
Tão grande era o poder do sonho alado,
Que eu vivia sentindo-lhe a presença
E a minha alma quedava-se, suspensa,
Desse sonho tão lindo e desejado!
Assim fui caminhando pela vida
Até que, um dia, todo o meu empenho
Eu consegui, enfim, realizar.
Hoje, que é minha a Terra Prometida,
Em vez duma alegria imensa, tenho
Uma vontade imensa de chorar!
Mea Culpa!
Por que não hei-de ser igual aos mais?
Porquê, esta ansiedade de Infinito?
Porquê, este tormento de proscrito
Que à terra mãe não voltará jamais?
Quem responde nas noites sempre iguais,
Ao meu profundo e revoltado grito?
Quem vem abrir, nas trevas onde habito,
A porta às claridades matinais?
Por que hei-de olhar a vida em inimiga
E não achar a paz na crença antiga
Que ainda hoje é tudo para mim?
Por que hei-de o mundo olhar de olhos irados,
Se nem mundo nem vida são culpados...
...Se a culpa a tenho eu só, por ser assim!
Insatisfeita!
Tudo aquilo que tenho desejado
E que no mundo é lícito esperar
— Um companheiro, um filho, o pão, um lar... —
A mão do Omnipotente me tem dado.
Mas nas cinzas de um sonho que hei sonhado
Renasce um sonho ainda por sonhar.
E a minha alma, na ânsia de o alcançar,
Nunca mais lembra o sonho realizado!
Quando no mundo nada mais houver
Que o meu desejo possa apetecer
— Ó vida! Onde há destino igual ao meu? —
Por nova senda guiarei meus passos
E hei-de erguer para o Céu os frágeis braços
Na ânsia louca de alcançar o Céu!
Melancolia
Na hora triste do entardecer,
Fico-me a meditar profundamente
Enquanto o Sol, com febre, todo a arder,
Se envolve na mortalha do Poente.
Mas amanhã, nos tons do alvorecer,
O Sol perde o aspecto de doente,
E ébrio da própria luz e de prazer,
Volta a brilhar, mais límpido e mais quente.
E assim há-de ser sempre até "ao fim".
Mas o Céu triste que me cobre a mim...
Há-de manter-se triste como agora.
Ó Sol! Vê que destino tão diferente:
A tua Aurora nasce do Poente...
E o meu poente nunca tem aurora!
Dúvida
Tu, que conheces toda a minha vida
E tão bem sabes quanto sou feliz,
Explica-me esta ânsia mal sofrida
Que sinto na alma e o coração me diz.
Diz-me porque caminho entontecida
Em busca duma nova directriz,
Se a minha estrada é plana e está florida
De rosas, de crisântemos, de lis...
Tu, que sofres do mesmo sofrimento,
Bem sabes que não há maior tormento
Nem mal que se compare a este nosso.
Ai, diz-me então porque duvido assim.
Que luta é esta que se trava em mim...
Que eu não sei... que eu não devo... que eu não posso!
Lirismo
Quando a noite galopa, destemida,
E o mundo esquece a vida e seus cansaços,
Aninhei-me no berço dos teus braços
E também esqueci o mundo e a vida.
Passou o tempo inquieto, de corrida,
E a noite desmaiou pelos Espaços.
Tu, então, apertaste os meigos laços
E beijaste-me a boca adormecida.
Abri os olhos e oh esplendor divino!
Não vi a noite já com o seu cortejo
Mas um tom luminoso, matutino.
E eu fiquei sem saber — vê tu que louca! —
Se da luz da manhã nasceu o beijo...
Se o beijo amanheceu na minha boca!
Insónia
Sem parar bate a chuva na vidraça
Com seus dedos esguios e molhados.
(Pelas ruas, sombria, anda a desgraça
À procura de novos desgraçados.)
A luz, que até parece uma ameaça,
Mal se vê através dos cortinados.
Minha alma é como a luz, difusa e baça,
Macerando meus nervos fatigados.
E sinto a mágoa onde naufraga o mundo
Num mar de dor, caótico, profundo,
Sem bonança, nem tréguas, nem porvir...
Teimosa a chuva cai... Senhor! Senhor!
Se eu não posso valer a tanta dor,
De que serve ter alma pra a sentir?
Passeio primaveril
Havemos de ir os dois, manhã a abrir
Em pétalas de luz no Sol em flor,
Ver nos campos as rosas a sorrir
Numa aleluia de perfume e cor.
Mãos enlaçadas, olhos a exprimir
As delícias olímpicas do amor,
Até faremos parte, sem sentir,
Do encanto da paisagem em redor.
E ouviremos a música dos ninhos,
Doirados pelo Sol, toucados de hera,
Ébrios da luz rosada da manhã.
E havemos de entender os passarinhos
E com eles cantar a Primavera
Ao som da flauta idílica de Pan!
Manhã
Rompeu há poucas horas a manhã.
Num indomável cântico de orgia,
A luz sensual do Sol, quente e pagã,
Empresta o seu fulgor ao novo dia.
E na minha alma — que é da noite irmã —
Ao calor desse beijo que inebria,
Num homérico esforço de titan,
Vão entreabrindo as rosas da alegria.
E sinto a vida a fecundar-me toda
E o mundo gravitando à minha roda
No resplendor sem par desse arrebol.
Como se fosse um mito a minha cruz
E se a minha alma, grávida de Luz,
Tivesse dado à luz a luz do Sol!
Sonho vão
Procuro... nem eu sei o que procuro!
Espero... e como é vã a minha esperança!
Que sonho então é este, doce e puro,
Que quanto mais se quer, menos se alcança?
Pus nele toda a fé do meu futuro.
Dele viveu minha alma de criança,
Mas quando penso tê-lo mais seguro,
Mais a vida me rouba a confiança.
Vogando à toa, como que perdida,
Apertada nos braços da amargura
Que a escraviza, enlouquece e dilacera,
Minha alma vai perdendo o amor à vida,
Sem encontrar jamais o que procura,
Sem ver chegar o sonho por que espera...
Luz cinzenta
Embora a vida só me dê ventura
E passem os meus dias sem cuidados,
Sinto em meu coração toda a amargura
Que fere o coração dos desgraçados.
E nos meus versos tristes, sem frescura,
Onde há soluços roucos, desvairados,
Perpassa o fel duma íntima tortura
De dramas não vividos, mas sonhados.
Numa ansiedade que jamais se acalma,
A dor que se debruça na minha alma
Pondo aos meus ombros uma alheia cruz,
É como a luz cinzenta das procelas
Que mal trespassa os vidros das janelas
Mas que não deixa nunca de ser luz...
A Fonte
No meio das mais bravas penedias,
Num precipício de causar horror,
Um veiozinho de águas luzidias
Gritava ao Céu a dor da sua dor.
Nunca sentira as grandes alegrias
Dos infindáveis dias de calor:
Dar de beber às aves fugidias
Ou acalmar a sêde a uma flor.
E o fiozinho de água dolorida
Num sussurrar inútil e plangente,
Vai caindo, caindo, sem um bem...
Ó fonte! É como tu a minha vida:
Vai passando, passando inùtilmente,
Sem mitigar a sêde de ninguém!
Bendito
Bendito seja sempre o Criador!
Bendita seja a doce protecção
Que num arroubo de infinito amor
Derrama sobre nós a Sua mão.
Bendito Deus, que ao pobre pecador
Consola com a bênção do perdão
Dando o Seu Corpo enorme de Senhor
No mistério humildíssimo do pão.
Bendito Deus na Sua Cruz bendita,
Na voz do mar, na asa que palpita,
Na grandeza do Céu que prometeu...
Bendito Deus nas ervas dos caminhos,
Na luz do Sol, na mágoa dos espinhos,
No bem sem par da vida que nos deu!
Poemas
Balada das três palavras por dizer
Três palavras banais e pequeninas
Trazendo em si desconhecidas sinas
Vibraram no ar sem fim.
E ouvindo essa balada singular,
A noite que era fria e sem luar,
Fez-se ainda mais noite dentro em mim.
Num íntimo alvorôço
Quero ouvir as palavras e não posso
Nem as devo entender.
E a Razão gritou alto a sua queixa
Porque o mundo não deixa
Ouvir palavras... por dizer!
Mais tarde, quando a noite desmaiou,
O tormento que a alma me enlutou
Aos poucos desmaiou também.
E as palavras num tom ascensional
Trocaram a côr do Mal
Pela aparência do Bem.
A treva densa e fria como o mar
Que a minha alma zurzia qual açoite
Começou a sentir-se aniquilada
Quando no ventre grávido da noite
Sentiu a palpitar
A luz da madrugada.
Na minha alma batida como a rocha
Vai serenando o mar
Na suavíssima paz da confiança.
E à medida que o dia desabrocha
As palavras começam a ensaiar
O bailado fantástico da Esperança.
Num misto inexplicado
Sinto o calor ardente da vertigem
Andando lado a lado
Do frio alvoroçado
Duma lâmina virgem.
E o Sol grita mais alto a sua luz.
E a cruz, agora, não é cruz:
É um brilho estonteante de arrebol.
E eu não sei o que impera em minha alma dorida:
Se o meu direito à Vida
Se a luz quente do Sol!
E esse calor ardente,
Nato das nebulosas do Mistério,
Purifica minha alma penitente
Como a platina incandescente
Do termocautério!
E as três palavras pequeninas
E banais,
Em três ascensões matutinas
Chegam às regiões divinas
E tornam-se imortais!
Nocturno
Desço ao jardim na noite silenciosa
Buscando lenitivo
E um pouco de conforto,
Porque a minha alma quer amortalhar, silenciosa,
O germen dum sonho vivo
Nas cinzas dum sonho morto.
Na calma do luar procuro asilo
Mas o luar tranquilo
Não entende o calor da mocidade.
E eu luto sempre e cada vez mais prêsa
Nos braços da incerteza
E da ansiedade.
Por que será que a Natureza
Nos meu males não há-de comungar
E me deixa sozinha e sem defesa
Sentindo dentro em mim tanta tristeza...
...Que nem posso chorar?!
Como na vida,
No jardim ando perdida
Sem encontrar a ambicionada calma.
E o luar e as flores e o jardim
Não fazem caso de mim
Nem do espantoso drama da minha alma.
E nesta batalha incalma,
Pergunto de mim pra mim:
Porque existe tanta calma
No jardim,
Se na minha alma
A tormenta não tem fim?!
Nascidos numa réstea de luar
— Embora as minhas mágoas não consolem
E meus dias não tornem mais felizes —
Eu sinto o amor e a vida crepitar
Desde o beijo sensual do pólen
À seiva criadora das raízes!
O perfume das flores vai mais alto,
Galga as nuvens, salto a salto,
Sem procurar sequer entontecê-las.
Sobe sempre o aroma alucinado
No desejo inconfessado
De perfumar as estrelas.
O luar pelo jardim vai dando esmolas
De amor às flores a palpitar.
E as flores vendo o luar às cabriolas
Oferecem a boca das corolas
Aos beijos do luar.
Só eu, sempre só eu, triste e insensata
Sob o luar de prata
Que enche de claridades o Universo,
Sinto que o meu dorido coração
Continua submerso—
Na escuridão!
Sem encontrar um ninho onde me acoite,
Olho o jardim numa íntima censura,
Num rancor desconhecido
E singular,
Porque a minha alma vê — toda amargura —
Que a noite é para ela apenas noite,
Na calma do jardim adormecido,
Sob a luz impassível do luar...
Para Além...
E por que não caminhas para a frente,
Ó alma que não és só o que eu sou,
E te deixas ficar covardemente,
Folha morta caída na corrente
E que esta abandonou?...
Por que tremes, por que hesitas,
Por que não buscas o "fim",
Se nas trevas onde habitas,
Andas perdida de mim?!
É curta a estrada da Vida...
Tens caminhado de cabeça erguida
Numa paz que a ansiedade te não turva.
Mas hoje que uma curva te aparece
Na estrada
Já trilhada,
Tua coragem desfalece
No medo horrível de transpor a curva.
Que haverá para Além e se não vê?
Treva da noite ou raio matutino?
Talvez que, atravessando esse meridiano,
O teu olhar profano
Possa, enfim, distinguir o que é humano
Do que é divino.
Alma prêsa nas garras do Impossível,
Quebra a grade fatal que te prendia
E transpõe numa audácia indizível
A muralha intransponível
Da tua própria covardia.
Avança às cegas, avança,
Seja morte, seja esprança
O Desconhecido.
Eu apenas pretendo conquistar
Um lugar
Aonde possa esquecer
O muito que julguei ser
E o pouco que tenho sido.
Caminha, caminha em frente,
Folha morta caída na corrente
E que esta abandonou.
Transpõe a curva da estrada
Quero ser tudo ou ser nada
A ser só isto que sou!
Vácuo
Vejo-me só, completamente só!
À minha roda o vácuo é absoluto.
Numa réstea de Sol, o bailado do pó
Quedou-se, irresoluto...
O ar é tristonho,
Ficou suspenso
Numa calma estagnada.
Não sonho...
Não penso...
...Não faço nada!
Pela casa em silêncio os meus olhos reparto.
E o silêncio, em silêncio, aumentou seu ataque
Como se a morte fosse aonde eu vou.
Apenas o relógio do meu quarto
Me diz no seu monótono tic-tac
Que a vida não acabou...
A dança da onda
A onda dança na dança
Na dança louca do mar.
Cheia de fogo e de esprança
Cresce em si mesma e avança
Pensando em não recuar.
E a onda
Redonda
Que nada detem,
Num bem que a estonteia
Avança na areia
E vem!
Mas depois, perdida a esprança,
Põe-se a onda a recuar.
Morto o fogo, não avança...
A pobre onda já não dança
A dança louca do mar.
E a onda
Redonda
Triste como um ai,
Num mal que a estonteia
Recua na areia
E vai!
E mais uma vez
Se torna a formar
A onda
Redonda
Na dança do mar...
E cobre as areias
Que a si se renderam
A renda da espuma
Tecida de bruma
Que os anjos teceram.
E a espuma
De bruma
Entrando na dança
Desvairada e nua,
Avança,
Recua,
Recua
E avança!
Tonto da ronda
Que o envolvia
Na onda
Redonda
Do mar,
O perfume salgado da maresia
No redemoinho da onda
Ficou também a dançar...
E os fortes braços
Da onda
— Os braços fortes! —
Quebram-se em doídos abraços
De encontro às rochas doridas.
E a onda volta a ser onda,
Que já padeceu mil mortes
E renasceu em mil vidas!
E a onda
Redonda,
Triste como um ai,
Que nada detem,
Recua na areia,
Avança na areia,
E vem...
E vai...
E vai...
E vem!!!
39º,7
Estou doente. Tenho febre.
Na boca sinto o gosto a fel do azebre.
Minha pobre cabeça dolorida
Sobre a almofada,
É um pedaço de vida
Esfarrapada!
Nem sei bem o que sinto! À minha roda
Vive um mundo invisível e confuso.
Na minha alma em motim
O Assombro tomou conta de mim
E tremo toda
Na posse do intruso.
Das paredes rosadas do meu quarto
Os olhos não aparto
Presos duma cruel fascinação:
Dois olhos monstros, quentes e profundos
Onde palpita a vida de mil mundos,
Onde morte em promessas se insinua,
Através do meu próprio coração
Olham-me a alma devassada e nua.
Quero fechar-me dentro de mim mesma
Mas a terrível avantesma
Cada vez mais me envolve em seu Mistério.
E dentro do meu delírio
Vai crescendo o martírio
A par do seu império.
E os olhos fixos, de expressão ardente,
Brilham como dois sois.
E o meu corpo cansado e quente
Busca sofregamente
A frescura bendita dos lençois.
Fecho os meus olhos com as mãos suadas,
Pálidas de marfim.
Mas os olhos, troçando, às gargalhadas,
Mesmo através das pálpebras cerradas,
Vêem dentro de mim!
Em vão tento não ver essa luz condenável
Fugindo do seu jogo.
Mas minha alma, febril, alucinada,
Sente-se cada vez mais apertada
No abraço imponderável
Daquele olhar de fogo.
Na minha mente ensandecida
Tudo está confundido de tal sorte,
Que nem sei se o que sinto em minha alma esvaída
É já o fim da Vida
Ou o princípio da Morte!
E o drama não tem fim!
E a minha turbação é mais espessa
E os olhos na parede
Riem numa expressão trocista e má.
................................................
Meu Deus, meu Deus! Tem compaixão de mim!
................................................
Estoira-me a cabeça...
................................................
Morro de sêde...
................................................
...Ah!!!
Balada
Um dia, aos meus ouvidos de criança,
Numa alegria como igual não tive,
Baixinho ouvi dizer a voz da Esprança:
"VIVE!"
Passado tempo, a minha pouca idade
Acendeu no meu peito eterna chama,
E então ouvi gritar a Mocidade:
"AMA!"
Depois, chegou o pranto da ilusão
Que na alma guardei como num cofre.
E entre dores e ais, disse a Razão:
"SOFRE!"
Agora ando no mundo entontecida
Sem querer reparar que a vida corre,
Porque não quero ouvir dizer à Vida:
"MORRE!"
O Monstro
Altas horas, o luar adormecido,
— Ausência do luar —
Vem ter comigo ao leito revolvido
E entontecido
Vem-me chamar.
Abro os olhos à escuridão da noite
E como um açoite
Sinto a noite a doer dentro de mim.
E embora eu não responsa ao seu apêlo,
O horrível pesadelo
Não tem fim.
E grito e choro, rouca e aos soluços
De bruços
A cabeça escondida na almofada.
Sou uma pobre coisa nesta vida,
Dolorida,
Destroçada!
Tento fugir do luar ausente,
Alucinadamente,
Mas quanto mais me esforço,
Sobre o meu coração triste e oprimido
O luar adormecido
Pesa como um remorso.
E esse monstro profético e ruim
Na minha alma dilue
Todo o sonho que o sonho em mim gerou.
Então já não sou eu quem vive em mim:
É alguém que eu já fui
Quando não era ainda o que hoje sou.
Só assim compreendo esta tristeza
Que me pesa
Como o anel inflamante das grilhetas.
Só assim compreendo o meu inferno
E porque gosto do Inverno
E das violetas.
Porque esta onda crescente de ansiedade
Vem do fundo de outra idade,
Nasceu duma outra fé.
Talvez que nesta ânsia indefinida
Eu tenha a explicação da minha vida
Que hoje, não sei qual é.
E neste sorvedoiro mau, profundo,
Sou um ave caída
Dum ninho quente e fecundo
Aos trambolhões pelo mundo
Sem rumo dentro da vida.
O monstro volta e volta à minha volta
E a minha cama já toda revolta
É um campo sangrento de batalha.
E o medo com seus olhos de papão
Veste o meu coração
Com um frio de mortalha.
O monstrengo enjaulado no meu quarto
Já farto
Do pavor que demonstro,
Abrindo a boca desmedida e fria
Ri da minha covardia,
O monstro!
Tapo os ouvidos com as mãos geladas
Só para não ouvir as gargalhadas
Daquela boca irreal,
Porque o som das risadas estridentes
Faz-me lembrar os rufos contundentes
Dum tambor colossal.
E a mão do pesadelo, toda escombros,
Aperta a minha mão
E eu abaixo o olhar e vergo os ombros
Como se as garras de um milhão de Assombros
Me esfalecessem a Razão.
E grito e choro, rouca e aos soluços
De bruços,
Na noite escura.
Sou uma pobre coisa nesta vida
Para sempre perdida
No abismo da Loucura!
Fragmento do poema "Rebeldia"
.........................................
Nascido da vertigem
Ou de paixão altaneira
— Sonho ou desejo —
O Amor, é sempre Amor na sua origem,
Quer queime a alma a vida inteira,
Quer caiba todo dentro de um só beijo.
Filho do Bem ou do Mal,
Casto ou perverso,
Em nosso pobre coração mortal,
A causa é sempre igual:
O efeito é que é diverso.
Seja inocente ou corrompido
— Canção que a vida nos embala
Ou lamaçal que a vida a si reduz —
É sempre o mesmo trilho percorrido
Desde Maria de Magdala
A Teresa de Jesus.
Deus colocando as fontes
Na altivez dos montes
Ou na graça florida de uma sebe,
Na voz da água límpida e cantante
Diz ao sedento caminhante:
"Bebe, meu filho. Se tens sêde, bebe!"
E nunca a voz de Deus gritou do Espaço
Dando a eterna mágoa
Ao que numa expressão dorida
Olha a fonte numa ansiedade louca:
"Morre embora de sêde e de cansaço,
Porque essa água
Que te daria vida,
Pertence a outra boca!"
E dando-nos o Sol Omnipotente
Mandou que a sua luz serena ou quente
— Berço de oiro de todas as espranças —
Num só beijo de eternas Primaveras,
Aqueça o coração das feras
E a alma das crianças.
E o Sol é uno e não tem fim,
Suavizando a vida ao desgraçado
Ou as paixões mais vis.
Para todos é sempre o Sol doirado,
Quer abrase o remorso de Caim
Quer vista de oiro o manto esfarrapado
De Francisco de Assis.
Para quê, o grilhão da saciedade,
Manancial do pecado e de ciúmes?
Para quê, a suspeita e a maldade,
Se Deus criou na mesma liberdade
Os pássaros, os homens e os perfumes?
Para quê, mentir à própria consciência
De momento a momento,
Mascarando na treva da aparência
A luz do Pensamento?
Para quê, caminhar triste e oprimida,
Pondo no ardor do Sol o frio do luar?
É preciso avançar de fronte erguida:
Viver a vida com "direito" à vida
Sem o "dever" cobarde de a estragar?
Mater Natura
Quando olho para o Céu, cheio de côr,
Matisado por asas que palpitam,
Como eu invejo a vida sem clamor
Dos pássaros que vivem sem temor
E sem temor se multiplicam!
Como eu invejo as ervas dos caminhos,
A doçura do mel e o drama dos espinhos,
Tudo o que chora ou ri na Terra inteira!
Porque as montanhas, vales, mar e ninhos
Vivem a sua vida
Triste ou florida,
Mas sempre verdadeira!
E a vida não seria má
Se a manchar-lhe a pureza
Não houvesse a mentira e o complicado.
Por que será
Que o que é simples e bom na Natureza,
Nos homens é pecado?!
Se eu pudesse ser Eu tal como sou
Seguindo o meu caminho sem cansaços,
Sem que outros devassassem os meus passos
Perguntando onde vou?...
Seguir por definidas trajectórias
Sem dissimulações nem artifícios...
Ser Eu, sem praticar acções contradictórias
E inúteis sacrifícios!...
Ser Eu
Vivendo a essência do meu próprio Eu
Cheio de fel ou ébrio de prazer.
Viver num mundo todo meu
A vida que o Senhor me deu...
"Ser Eu, na plenitude do meu Ser"!
Ter sonhos bons e límpidos e justos...
Viver além do mundo e das misérias.
Ser como as plantas, ricas de Ignorância.
Ter a vida sadia dos arbustos
Sentindo a seiva dentro das artérias
Em promessas fecundas de Abundância!
Deixar esta existência vã, febril,
Amortalhada pela mágoa
Das coisas irreais.
Florir quando me beije o Sol de Abril
Ou sentir dentro da alma o gosto bom a água
Das primeiras chuvadas outonais.
Compreender o feito delicado
Dos botões a florir,
Adivinhando o aroma inviolado
Das rosas por abrir...
Escutar e entender a voz do vento
E o pesado silêncio do calor...
Alegrar-me a alegria do rebento...
Ante-sentir o gosto sumarento
Dos frutos inda em flor...
Tratar o Sol e a Terra como amigos
Cingindo-os num abraço fraternal.
Não temer nem pecados nem castigos
E como irmã das fontes e dos trigos
Fazer parte do todo Universal!
...
Nocturno
Desço ao jardim na noite silenciosa
Buscando lenitivo
E um pouco de conforto,
Porque a minha alma quer amortalhar, silenciosa,
O germen dum sonho vivo
Nas cinzas dum sonho morto.
Na calma do luar procuro asilo
Mas o luar tranquilo
Não entende o calor da mocidade.
E eu luto sempre e cada vez mais prêsa
Nos braços da incerteza
E da ansiedade.
Por que será que a Natureza
Nos meu males não há-de comungar
E me deixa sozinha e sem defesa
Sentindo dentro em mim tanta tristeza...
...Que nem posso chorar?!
Como na vida,
No jardim ando perdida
Sem encontrar a ambicionada calma.
E o luar e as flores e o jardim
Não fazem caso de mim
Nem do espantoso drama da minha alma.
E nesta batalha incalma,
Pergunto de mim pra mim:
Porque existe tanta calma
No jardim,
Se na minha alma
A tormenta não tem fim?!
Nascidos numa réstea de luar
— Embora as minhas mágoas não consolem
E meus dias não tornem mais felizes —
Eu sinto o amor e a vida crepitar
Desde o beijo sensual do pólen
À seiva criadora das raízes!
O perfume das flores vai mais alto,
Galga as nuvens, salto a salto,
Sem procurar sequer entontecê-las.
Sobe sempre o aroma alucinado
No desejo inconfessado
De perfumar as estrelas.
O luar pelo jardim vai dando esmolas
De amor às flores a palpitar.
E as flores vendo o luar às cabriolas
Oferecem a boca das corolas
Aos beijos do luar.
Só eu, sempre só eu, triste e insensata
Sob o luar de prata
Que enche de claridades o Universo,
Sinto que o meu dorido coração
Continua submerso—
Na escuridão!
Sem encontrar um ninho onde me acoite,
Olho o jardim numa íntima censura,
Num rancor desconhecido
E singular,
Porque a minha alma vê — toda amargura —
Que a noite é para ela apenas noite,
Na calma do jardim adormecido,
Sob a luz impassível do luar...
Para Além...
E por que não caminhas para a frente,
Ó alma que não és só o que eu sou,
E te deixas ficar covardemente,
Folha morta caída na corrente
E que esta abandonou?...
Por que tremes, por que hesitas,
Por que não buscas o "fim",
Se nas trevas onde habitas,
Andas perdida de mim?!
É curta a estrada da Vida...
Tens caminhado de cabeça erguida
Numa paz que a ansiedade te não turva.
Mas hoje que uma curva te aparece
Na estrada
Já trilhada,
Tua coragem desfalece
No medo horrível de transpor a curva.
Que haverá para Além e se não vê?
Treva da noite ou raio matutino?
Talvez que, atravessando esse meridiano,
O teu olhar profano
Possa, enfim, distinguir o que é humano
Do que é divino.
Alma prêsa nas garras do Impossível,
Quebra a grade fatal que te prendia
E transpõe numa audácia indizível
A muralha intransponível
Da tua própria covardia.
Avança às cegas, avança,
Seja morte, seja esprança
O Desconhecido.
Eu apenas pretendo conquistar
Um lugar
Aonde possa esquecer
O muito que julguei ser
E o pouco que tenho sido.
Caminha, caminha em frente,
Folha morta caída na corrente
E que esta abandonou.
Transpõe a curva da estrada
Quero ser tudo ou ser nada
A ser só isto que sou!
Vácuo
Vejo-me só, completamente só!
À minha roda o vácuo é absoluto.
Numa réstea de Sol, o bailado do pó
Quedou-se, irresoluto...
O ar é tristonho,
Ficou suspenso
Numa calma estagnada.
Não sonho...
Não penso...
...Não faço nada!
Pela casa em silêncio os meus olhos reparto.
E o silêncio, em silêncio, aumentou seu ataque
Como se a morte fosse aonde eu vou.
Apenas o relógio do meu quarto
Me diz no seu monótono tic-tac
Que a vida não acabou...
A dança da onda
A onda dança na dança
Na dança louca do mar.
Cheia de fogo e de esprança
Cresce em si mesma e avança
Pensando em não recuar.
E a onda
Redonda
Que nada detem,
Num bem que a estonteia
Avança na areia
E vem!
Mas depois, perdida a esprança,
Põe-se a onda a recuar.
Morto o fogo, não avança...
A pobre onda já não dança
A dança louca do mar.
E a onda
Redonda
Triste como um ai,
Num mal que a estonteia
Recua na areia
E vai!
E mais uma vez
Se torna a formar
A onda
Redonda
Na dança do mar...
E cobre as areias
Que a si se renderam
A renda da espuma
Tecida de bruma
Que os anjos teceram.
E a espuma
De bruma
Entrando na dança
Desvairada e nua,
Avança,
Recua,
Recua
E avança!
Tonto da ronda
Que o envolvia
Na onda
Redonda
Do mar,
O perfume salgado da maresia
No redemoinho da onda
Ficou também a dançar...
E os fortes braços
Da onda
— Os braços fortes! —
Quebram-se em doídos abraços
De encontro às rochas doridas.
E a onda volta a ser onda,
Que já padeceu mil mortes
E renasceu em mil vidas!
E a onda
Redonda,
Triste como um ai,
Que nada detem,
Recua na areia,
Avança na areia,
E vem...
E vai...
E vai...
E vem!!!
39º,7
Estou doente. Tenho febre.
Na boca sinto o gosto a fel do azebre.
Minha pobre cabeça dolorida
Sobre a almofada,
É um pedaço de vida
Esfarrapada!
Nem sei bem o que sinto! À minha roda
Vive um mundo invisível e confuso.
Na minha alma em motim
O Assombro tomou conta de mim
E tremo toda
Na posse do intruso.
Das paredes rosadas do meu quarto
Os olhos não aparto
Presos duma cruel fascinação:
Dois olhos monstros, quentes e profundos
Onde palpita a vida de mil mundos,
Onde morte em promessas se insinua,
Através do meu próprio coração
Olham-me a alma devassada e nua.
Quero fechar-me dentro de mim mesma
Mas a terrível avantesma
Cada vez mais me envolve em seu Mistério.
E dentro do meu delírio
Vai crescendo o martírio
A par do seu império.
E os olhos fixos, de expressão ardente,
Brilham como dois sois.
E o meu corpo cansado e quente
Busca sofregamente
A frescura bendita dos lençois.
Fecho os meus olhos com as mãos suadas,
Pálidas de marfim.
Mas os olhos, troçando, às gargalhadas,
Mesmo através das pálpebras cerradas,
Vêem dentro de mim!
Em vão tento não ver essa luz condenável
Fugindo do seu jogo.
Mas minha alma, febril, alucinada,
Sente-se cada vez mais apertada
No abraço imponderável
Daquele olhar de fogo.
Na minha mente ensandecida
Tudo está confundido de tal sorte,
Que nem sei se o que sinto em minha alma esvaída
É já o fim da Vida
Ou o princípio da Morte!
E o drama não tem fim!
E a minha turbação é mais espessa
E os olhos na parede
Riem numa expressão trocista e má.
................................................
Meu Deus, meu Deus! Tem compaixão de mim!
................................................
Estoira-me a cabeça...
................................................
Morro de sêde...
................................................
...Ah!!!
Balada
Um dia, aos meus ouvidos de criança,
Numa alegria como igual não tive,
Baixinho ouvi dizer a voz da Esprança:
"VIVE!"
Passado tempo, a minha pouca idade
Acendeu no meu peito eterna chama,
E então ouvi gritar a Mocidade:
"AMA!"
Depois, chegou o pranto da ilusão
Que na alma guardei como num cofre.
E entre dores e ais, disse a Razão:
"SOFRE!"
Agora ando no mundo entontecida
Sem querer reparar que a vida corre,
Porque não quero ouvir dizer à Vida:
"MORRE!"
O Monstro
Altas horas, o luar adormecido,
— Ausência do luar —
Vem ter comigo ao leito revolvido
E entontecido
Vem-me chamar.
Abro os olhos à escuridão da noite
E como um açoite
Sinto a noite a doer dentro de mim.
E embora eu não responsa ao seu apêlo,
O horrível pesadelo
Não tem fim.
E grito e choro, rouca e aos soluços
De bruços
A cabeça escondida na almofada.
Sou uma pobre coisa nesta vida,
Dolorida,
Destroçada!
Tento fugir do luar ausente,
Alucinadamente,
Mas quanto mais me esforço,
Sobre o meu coração triste e oprimido
O luar adormecido
Pesa como um remorso.
E esse monstro profético e ruim
Na minha alma dilue
Todo o sonho que o sonho em mim gerou.
Então já não sou eu quem vive em mim:
É alguém que eu já fui
Quando não era ainda o que hoje sou.
Só assim compreendo esta tristeza
Que me pesa
Como o anel inflamante das grilhetas.
Só assim compreendo o meu inferno
E porque gosto do Inverno
E das violetas.
Porque esta onda crescente de ansiedade
Vem do fundo de outra idade,
Nasceu duma outra fé.
Talvez que nesta ânsia indefinida
Eu tenha a explicação da minha vida
Que hoje, não sei qual é.
E neste sorvedoiro mau, profundo,
Sou um ave caída
Dum ninho quente e fecundo
Aos trambolhões pelo mundo
Sem rumo dentro da vida.
O monstro volta e volta à minha volta
E a minha cama já toda revolta
É um campo sangrento de batalha.
E o medo com seus olhos de papão
Veste o meu coração
Com um frio de mortalha.
O monstrengo enjaulado no meu quarto
Já farto
Do pavor que demonstro,
Abrindo a boca desmedida e fria
Ri da minha covardia,
O monstro!
Tapo os ouvidos com as mãos geladas
Só para não ouvir as gargalhadas
Daquela boca irreal,
Porque o som das risadas estridentes
Faz-me lembrar os rufos contundentes
Dum tambor colossal.
E a mão do pesadelo, toda escombros,
Aperta a minha mão
E eu abaixo o olhar e vergo os ombros
Como se as garras de um milhão de Assombros
Me esfalecessem a Razão.
E grito e choro, rouca e aos soluços
De bruços,
Na noite escura.
Sou uma pobre coisa nesta vida
Para sempre perdida
No abismo da Loucura!
Fragmento do poema "Rebeldia"
.........................................
Nascido da vertigem
Ou de paixão altaneira
— Sonho ou desejo —
O Amor, é sempre Amor na sua origem,
Quer queime a alma a vida inteira,
Quer caiba todo dentro de um só beijo.
Filho do Bem ou do Mal,
Casto ou perverso,
Em nosso pobre coração mortal,
A causa é sempre igual:
O efeito é que é diverso.
Seja inocente ou corrompido
— Canção que a vida nos embala
Ou lamaçal que a vida a si reduz —
É sempre o mesmo trilho percorrido
Desde Maria de Magdala
A Teresa de Jesus.
Deus colocando as fontes
Na altivez dos montes
Ou na graça florida de uma sebe,
Na voz da água límpida e cantante
Diz ao sedento caminhante:
"Bebe, meu filho. Se tens sêde, bebe!"
E nunca a voz de Deus gritou do Espaço
Dando a eterna mágoa
Ao que numa expressão dorida
Olha a fonte numa ansiedade louca:
"Morre embora de sêde e de cansaço,
Porque essa água
Que te daria vida,
Pertence a outra boca!"
E dando-nos o Sol Omnipotente
Mandou que a sua luz serena ou quente
— Berço de oiro de todas as espranças —
Num só beijo de eternas Primaveras,
Aqueça o coração das feras
E a alma das crianças.
E o Sol é uno e não tem fim,
Suavizando a vida ao desgraçado
Ou as paixões mais vis.
Para todos é sempre o Sol doirado,
Quer abrase o remorso de Caim
Quer vista de oiro o manto esfarrapado
De Francisco de Assis.
Para quê, o grilhão da saciedade,
Manancial do pecado e de ciúmes?
Para quê, a suspeita e a maldade,
Se Deus criou na mesma liberdade
Os pássaros, os homens e os perfumes?
Para quê, mentir à própria consciência
De momento a momento,
Mascarando na treva da aparência
A luz do Pensamento?
Para quê, caminhar triste e oprimida,
Pondo no ardor do Sol o frio do luar?
É preciso avançar de fronte erguida:
Viver a vida com "direito" à vida
Sem o "dever" cobarde de a estragar?
Mater Natura
Quando olho para o Céu, cheio de côr,
Matisado por asas que palpitam,
Como eu invejo a vida sem clamor
Dos pássaros que vivem sem temor
E sem temor se multiplicam!
Como eu invejo as ervas dos caminhos,
A doçura do mel e o drama dos espinhos,
Tudo o que chora ou ri na Terra inteira!
Porque as montanhas, vales, mar e ninhos
Vivem a sua vida
Triste ou florida,
Mas sempre verdadeira!
E a vida não seria má
Se a manchar-lhe a pureza
Não houvesse a mentira e o complicado.
Por que será
Que o que é simples e bom na Natureza,
Nos homens é pecado?!
Se eu pudesse ser Eu tal como sou
Seguindo o meu caminho sem cansaços,
Sem que outros devassassem os meus passos
Perguntando onde vou?...
Seguir por definidas trajectórias
Sem dissimulações nem artifícios...
Ser Eu, sem praticar acções contradictórias
E inúteis sacrifícios!...
Ser Eu
Vivendo a essência do meu próprio Eu
Cheio de fel ou ébrio de prazer.
Viver num mundo todo meu
A vida que o Senhor me deu...
"Ser Eu, na plenitude do meu Ser"!
Ter sonhos bons e límpidos e justos...
Viver além do mundo e das misérias.
Ser como as plantas, ricas de Ignorância.
Ter a vida sadia dos arbustos
Sentindo a seiva dentro das artérias
Em promessas fecundas de Abundância!
Deixar esta existência vã, febril,
Amortalhada pela mágoa
Das coisas irreais.
Florir quando me beije o Sol de Abril
Ou sentir dentro da alma o gosto bom a água
Das primeiras chuvadas outonais.
Compreender o feito delicado
Dos botões a florir,
Adivinhando o aroma inviolado
Das rosas por abrir...
Escutar e entender a voz do vento
E o pesado silêncio do calor...
Alegrar-me a alegria do rebento...
Ante-sentir o gosto sumarento
Dos frutos inda em flor...
Tratar o Sol e a Terra como amigos
Cingindo-os num abraço fraternal.
Não temer nem pecados nem castigos
E como irmã das fontes e dos trigos
Fazer parte do todo Universal!
...
Beber dessa fonte inesgotável de verdadeira poesia é um bálsamo para qualquer poeta. Maria Helena Vaquinhas de Carvalho, embora de estatura, pequena, abrigava uma alma sem tamanho. Demonstra uma simplicidade única nos seus versos sem rodeios, diretos, perfeitos, verdadeiramente antológicos. Não apenas escreve versos... Ela jorra poesia em cada um deles. E pensar que foi quase ignorada! Que trabalho fecundo você está compondo, Regina Coeli Rebelo Rocha, transcrevendo os versos de Maria Helena! Uma leitura para os que amam sonetos, para os que acham que sonetos aprisionam e para quem escreve sonetos sem atenção à sua forma e aos seus requisitos. Clássico sempre será clássico! Não poderia haver modernidade em sonetos ou deveria ser evitado chamar de soneto um poema apenas pela sua forma em dois quartetos e dois tercetos .Maria Helena é Mestra! Lendo Mestres só crescemos na poesia. Seja IMORTAL, Maria Helena!
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